07 Mai 2020
"Um dos nossos problemas é esse: o absurdo que nos assombra no momento político atual é tão grande que ficamos abestados e perdemos o sentido do óbvio. É tão terrível que perdemos os princípios básicos do sonho acordado e da memória", escreve Wellington Teodoro da Silva, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Autor do livro “Catolicismo golpe de 1964”, publicado pela Editora da PUC Minas no ano de 2018.
Tem uma história que é mais ou menos assim: na década de 1970, dom Paulo Evaristo Arns convidou um grupo de intelectuais para pensar o Brasil do amanhã, o Brasil do futuro. Quando os convidados se encontraram, perguntaram-lhe porque pensar no futuro se o país passava pela ditadura cruel. O problema que se impunha era grave e estava no presente. Dom Paulo disse que tudo aquilo iria passar. Não havia dúvidas. E quando passasse? O que fazer?
Passaria mais rápido se o futuro fosse antecipado no nível da imaginação: aquilo que Pierre Furter trata como “sonhos acordados” em seu estudo sobre Ernst Bloch. Esses sonhos são operações criativas que nos fazem viver o futuro no imaginário. Eles antecipam os futuros possíveis nos permitindo orientar as ações do presente. Ao falar, pensar e desejar um futuro impedimos que a realidade do presente nos esmague. As ideias sobre aquilo que virá são tessituras de sentido elaboradas a partir da compreensão de que a história é o terreno do impermanente. Tudo o que existe não é, está sendo.
Os “sonhos acordados” são uma espécie de matéria prima da utopia e fazem a esperança associar-se irresistivelmente à condição humana. Esperança e vida humana são indissociáveis. Segundo Furter: “O “sonho acordado” manifesta uma verdadeira fome psíquica pela qual o homem imagina planos futuros e outras situações em que supere os problemas, as dificuldades e as obrigações de um hoje onipresente” (FURTER, 1974. p. 82).
Mas como falar de esperança se estamos numa pandemia e a pessoa que ocupa, sem dignidade, a cadeira da presidência da República responde com um “E daí?” e “Não sou coveiro” quando perguntado sobre as milhares de mortes? Vivemos aquela impotência de quem se vê sequestrado pelo absurdo, disforme, grotesco em discursos degenerados pelas vilanias. O momento presente nos esmaga quando constatamos que isso não espanta milhares de brasileiros que seguem o apoiando. Ficamos perplexos quando descobrimos que o problema não é apenas desse homúnculo, nem de seus apoiadores, mas de toda uma nação que criou condições para o absurdo, a indiferença e o ódio acontecerem de modo desavergonhado, arrogando ares de virtude e honestidade. É isso: o discurso de ódio se apresenta para os seus seguidores como virtude do homem honesto, franco e decidido.
É difícil dizer que devemos pensar com esperança e sonhos se tudo isso está acontecendo na democracia. Não vemos mais que uma névoa cobrindo o futuro. Ela nos impede de nos orientar no presente com vistas a um projeto comum. A lógica é essa: bombardear o presente com ódio e mais ódio, violência sobre violência, de modos que o absurdo encubra o futuro e impeça sonhos comuns. Essas declarações não são isoladas e fizeram a trajetória desse triste personagem. Formam um conjunto de discursos que, uma vez no poder (pelo voto!) chega ao limite de nos fazer questionar se a humanidade é um projeto feito para dar certo.
Ninguém poderia prever uma distopia como a que vivemos agora. Dentre os absurdos de sua fala, destaco alguns, que parecem ser poucas dentro do conjunto: homenagem a torturador no Congresso Nacional; dizer que o estupro é um merecimento que algumas mulheres não alcançam; violência física contra o filho gay; um filho seu não namoraria uma negra porque foi bem educado; favorável à ditadura; fuzilar inimigos políticos, referindo-se aos petistas, além de chamar imigrantes de escória.
Não é adequado pensar que sua eleição foi devida ao antipetismo. Outros tantos candidatos também eram antipetistas. Há algo mais. Vemos amplos setores da sociedade refletidos no espelho que chamamos Bolsonaro. Ele vocaliza os preconceitos que amplos setores da sociedade possuem. Ao olhar Bolsonaro não vemos apenas sua pessoa: vemos uma legião. Vemos um símbolo ou um totem para aqueles que o elegeram e, sobretudo, os que seguem o apoiando. Estamos vendo aquilo que sequer imaginávamos que pudesse existir. Não poderíamos imaginar esses contra-valores nem nos piores pesadelos. Mas, eles estão aí.
Nesse momento em que o aspecto terrível do presente nos afoga, alguns intelectuais anunciam calamidades. Ora, elas estão postas. Não é necessário anuncia-las. É possível que aconteçam mais! Há quem diga que coisas piores virão com a mesma segurança de estar falando da luz do sol. Pensar o futuro não é fazer futurologia e nem ser intelectual do fim dos tempos. A esperança está enraizada e se nutre da inteligência humana e é uma de suas filhas diletas, que mais lhe honra. Surge da compreensão que o presente é transitório e resultados de sínteses continuadas do humano situado entre o passado e o futuro. Dada a impermanência, a inteligência é atividade criativa por natureza e a vida é o produto mais nobre da criação.
Esse ódio (o nome é esse!) acontece como reação a um processo de modernização da nação habituada a se organizar em estamentos onde cada membro tem seu lugar fixo. Se o estamento inferior, os empobrecidos, subalternos da sociedade, se movimentam verticalmente ele racha o edifício abalando todo um cosmo construído. O cosmo abalado cria o caos, anomia. Um mundo com seus valores se desmorona e é necessário reagir para o mundo voltar a ser um lugar seguro para os estamentos superiores. Setores da classe média que apoiam horrores sem pudor estão reagindo a um mundo em processo de decomposição: o mundo dos estamentos e dos privilégios. Nesse mundo, há direitos apenas para aqueles que estão nos andares de cima. Ora, o nome disso é privilégio. Existe até a justificativa econômica dos neoliberais: direitos são caros.
Penso que essa é a reação feia, disforme, grotesca do monstro que se vê flechado e antevê seu desaparecimento. Ele se debate com os maiores urros e energia tentando evitar sua morte. Em vão. Esses urros acontecem para assustar e nos fazer-nos acreditar que vão conseguir conter a queda do edifício de privilégios estamentais e instauração dos direitos. São os mesmos setores que viam com horror os aeroportos e universidades serem ocupados pelos subalternos da sociedade. Isso lhes parecia uma ofensa moral: “Quem pensam que são?!”; “É com eles que dividirei meu espaço?!”. Sim é com eles que vocês dividirão espaço. O glamour do aeroporto foi dessacralizado. O fetiche de “andar de avião” deixou de ser símbolo de distinção. A universidade deixa de ser privilégio e passa a ser direito. Esses setores da classe média não vão perdoar nunca. Não perdoaram os direitos da empregada doméstica. Acabou o mundo encantado de serviçais pagos, inclusive, com roupas usadas e um prato de comida. Não perdoam a carteira assinada e o salário mínimo.
Muitos setores marginalizados e subalternizados saíram dos armários e viram o brilho do sol que aquece e ilumina. Não voltarão. Dentro das várias camadas de sentido da realidade devemos aprender a ver aquelas compostas por pessoas que, como o autor desse texto, são as primeiras de toda a família a conseguir frequentar um curso universitário e também aqueles que não precisam mais esconder seus afetos como se fossem peçonhas. A realidade é complexa. Tem várias camadas de sentidos e podemos observar que no caos que nos assusta existem frestas que levarão ao colapso desse edifício de ódio.
Os movimentos da história produziram o presente do modo como está e os mesmos movimentos produzirão uma realidade que superará o que está dado. Peter Berger nos diz que a essência da alienação é esquecer o caráter de coisa construída das realidades. Tudo é construção. Não estamos fora desses processos nem somos reféns da história: somos construtores. O alienado confere a uma dada situação social ou política o caráter de coisa definitiva: “É assim!”. Desse modo, acredita que não pode ser diferente.
A história não é algo fora da atividade do humano no tempo. Nós produzimos o que existe e somos por ele produzidos dentro da dialética de construção da realidade pensada por Berger. Não somos meros espectadores de forças estruturais que sufocam a pessoa humana em seus movimentos impessoais. A dialética alcança em sua trama densa e tensa o humano diante das estruturas e as estruturas diante do humano. Nada lhe escapa.
Há um problema a ser evitado: uma ideia de futuro que deixa de ser um sonho e passa a ser uma ideologia no sentido negativo desse conceito. É a idolatria do futuro, segundo Erich Fromm. Ela pode produzir em nós um fetiche, uma ideia fixa. Crimes inomináveis foram cometidos por sistemas que fetichizaram o porvir. Vale citar as ideologias nazista e bolchevique (observação em tempos de terraplana: essa afirmação não dá vagas para propor que o nazismo seja de esquerda).
O movimento da inteligência imaginária no sentido da superação do mal do nosso tempo deve acontecer compreendendo que somos o futuro que sonhamos tanto quanto o passado e a memória.
Vale alertar que o passado também pode ser uma ideologia. Grupos reacionários idealizam o passado tanto quanto bolcheviques idealizaram o futuro. São capazes das mesmas crueldades. São as pontas da mesma ferradura. Negam-se ao mesmo tempo em que se afirmam porque participam do mesmo sistema de pensamento fetichizante. Basta ver muitos grupos de católicos reacionários e a sua idealização da Idade Média.
É necessário pensar e construir o futuro no presente e no mesmo presente manter o passado pensado, refletido. Estruturamos o nosso estar no mundo nessa intensa formulação de presente, passado e futuro porque somos seres de profundo sentido temporal. Essa afirmação é tão besta e óbvia! Um dos nossos problemas é esse: o absurdo que nos assombra no momento político atual é tão grande que ficamos abestados e perdemos o sentido do óbvio. É tão terrível que perdemos os princípios básicos do sonho acordado e da memória.
Além de Pierre Furter, Eric Fromm nos dá um itinerário interessante para pensar esse tema e compreender que a esperança é uma genuína produção da inteligência humana. Ele inicia seu livro “A revolução da esperança” dizendo o que a esperança não é. Escrito como resposta a uma encruzilhada, segue útil para a atual para a nossa atual encruzilhada. Se o presente nos afogar, se acreditarmos que ele é um imperativo que seguirá impondo seus termos, teremos perdido a política e experimentaremos uma queda antropológica ao inferno.
A esperança é um elemento decisivo em qualquer tentativa para ocasionar mudança social na direção de maior vivência, consciência e razão. Mas a natureza da esperança muitas vezes é mal compreendida e confundida com atitudes que nada têm a ver com esperança, e na verdade, são exatamente o oposto. (FROMM, p.24).
Esperança não é ter desejos e anseios por um carro ou casa melhores. Isso é cobiça, segundo Fromm. Não é esperança nos compreendermos passivamente, em mera espera, diante do mundo. Ela é uma virtude e como toda virtude é uma postura ativa diante das realidades. Afirma que a espera passiva é uma forma disfarçada de desesperança. Também diz que ela não é uma idolatria do futuro.
A esperança é sobretudo saber que a realidade toda é impermanente. Está para a mudança. A compreensão dessa transitoriedade nos impõe a ação que age nas fissuras do edifício atual abalando-o ao ponto de produzir sua queda. Ela se radica na compreensão de que manter uma dada realidade é tão difícil quanto muda-la. Aquilo que “está” acontecendo no tempo presente tem tanta chance de permanecer quanto de mudar. Mudar uma realidade política é tão fácil ou difícil quanto mantê-la. Vale lembrar novamente Peter Berger que diz que as realidades (todas!) passam por dois processos: construção e manutenção. Ambas devem continuadamente receber esforços humanos.
A esperança, como diz Erich Fromm, é um estado de ser. Devemos mobilizar nossas experiências, compreensões e sentimentos em sua compreensão e no seu exercício transformador. Não temos alternativa a não ser exercitar, como defende o teólogo André Biéler, nossa política como esperança: a esperança é política. Por sua vez, a política é a liberdade, o exercício do humano livre e diferente, feito igual pelo direito, conforme escreveu Hannah Arendt. A ação do humano livre, sustentada pela igualdade de direito entre os diferentes, é a política e a esperança na criatividade da razão. Comente atentado contra a liberdade, portanto contra a política, quem não alimenta o sentimento da esperança. Se deixar afogar pelos aspectos terríveis do presente é antipolítico.
Nós cristãos cremos que a Vida é a realidade última, universal e sagrada. Por isso, alimentamos uma memória perigosa contra todas as formas de ódio do presente: a Vida venceu a morte. Desse modo, estamos proibidos de não ter esperança e de não alimentar o futuro.
A nós que recusamos o ódio e sabemos que o amor é o nosso lugar existencial, cumpre a tarefa de fazer o que frei Thomas Cardonnel escreveu em 1962: não queremos tomar o poder. Queremos mudar a natureza do poder.
ARENDT, Hannah. O que é política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado – elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
BIÉLER, André. A esperança é política. Coimbra: Livraria Almedina, 1972.
FROMM, Ercih. A revolução da esperança – por uma tecnologia humanizada. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1968. 3ª edição.
FURTER, Pierre. Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
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O futuro contra Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU