10 Abril 2019
É constrangedor escrever um texto com o título acima. É necessário fazê-lo após o ex-ministro da Educação do atual governo dizer que a retirada do poder do presidente João Goulart foi constitucional. Esse evento, principiado pelo general Olympio Mourão, possui uma massa de estudos de pesquisadores do Brasil e exterior que permite dizer que está superada a questão sobre ter sido ou não um golpe de Estado. Foi golpe. O debate está na sua natureza: golpe de classes, golpe político e etc.
O artigo é de Wellington Teodoro da Silva, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Autor do livro “Catolicismo golpe de 1964”, publicado pela Editora da PUC Minas no ano de 2018.
O historiador Eric Hobsbawm marcou minha geração. Escreveu sobre a era das revoluções; a era do capital e a era dos impérios. Essas obras tratam de três temas que fazem parte do longo século XIX. Por seu lado, considera que o século XX foi breve e o trata como a era dos extremos. Sem ofender a memória e a inteligência do mestre e nem reduzir o valor intelectual de suas obras, ocorre-me que o grupo político que está instalado no poder brasileiro busca salvar-se propondo a “era dos absurdos”.
Chamo de salvar a tentativa de manter algum tipo de atividade permanente e relevante no ambiente político. Missão impossível porque não praticam a política. A natureza daquilo que propõe não alcança a dignidade da política no modo tratado por Bernard Crick em sua obra “Em defesa da política”. Essa “era dos absurdos”, se continuar, assassinará a política e os valores de civilidade que oferecem algumas balizas para a sociedade brasileira conseguir colocar-se na busca da convivência plural, digna, amorosa e pacífica.
O ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em entrevista para o jornal Valor Econômico do dia 03 de abril de 2019, afirmou que em 1964 não houve golpe e que o país não viveu uma ditadura.
Esse senhor parece representar um grupo ideológico ou patológico (não sei dizer) que vê esquerda no nazismo e a influência de Stálin em Hitler. Ocorre-me pensar que esse tipo de asserção sequer chega a ser ideológica. Uso ideologia no sentido comum de negação objetiva da realidade, um processo falseador. Ele não a alcança por produzir um discurso que se avizinha da patologia. Os ex-ministro e os que pensam como ele criaram um mundo imaginário e não se importam com a sua efetividade no mundo real.
Olham para a imagem que construíram de Stálin como num espelho. Veem a si mesmos maneira invertida. É assim quando se usa o poder do Estado para universalizar sua a compreensão particular de mundo e do passado político da nação. Desprezam o esforço intelectual da universidade, instituição multissecular, que construiu instrumentos de validação pela comunidade científica sobre o conhecimento construído. Esse conhecimento está aberto à crítica dos setores externos à universidade que nunca se negou ao diálogo.
O ministro fala que “o 31 de março foi uma decisão soberana da sociedade brasileira”. Seria mais plausível se não citasse a palavra soberania e dissesse que o apoio veio de setores dessa sociedade que agiram com vistas a interesses próprios. Por isso, não produziam a vontade geral, mas o autoritarismo de um grupo sobre o restante da nação. Os governos democráticos são eleitos pela maioria para governar para todos. A soberania se associa mais adequadamente à vontade geral. Por exemplo, quando o candidato Bolsonaro disse que vai governar para a maioria e que as minorias deveriam se adequar ele atenta contra a vontade geral, contra a democracia e a soberania do governo.
Vale o exemplo da Marcha da Família com Deus pela Liberdade acontecida em São Paulo em 1964, antes do golpe. Ela foi organizada por leigos católicos sem a concordância de Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, arcebispo dessa arquidiocese. Seus organizadores a consideraram um sucesso, mas o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, afirmou ter sido triste a participação limitada das classes baixas. Onde e com quem estavam as classes baixas citadas pelo embaixador? Em junho de 1963, 72% da população apoiava João Goulart.[1]
Como membro dos promotores da “era dos absurdos”, Vélez afirmou que a subida de Castelo Branco ao poder foi constitucional: “Foi a votação no Congresso, uma instância constitucional, quando há a ausência do presidente. Era a Constituição da época e foi seguida à risca. Houve uma instância de tipo institucional, não foi um golpe contra a Constituição da época, não.”
O estatuto de coisa constitucional foi retirado à força quando houve a cassação de 41 deputados federais no dia 10 de abril de 1964. A eleição de Castelo Branco, candidato único, aconteceu no dia 11 de abril em um Congresso expurgado.
É absurdo saber que quem esteve sentado na cadeira de ministro da educação é uma pessoa que cita John Locke. Chama-o de “pai do liberalismo político” e diz que ele “firmou a ideia do governo representativo”. Por causa desse filósofo, o ex de Bolsonaro disse ter grande apreço pelos parlamentares. Ora, porque não repreendeu a cassação dos parlamentares em 1964? Esse Congresso poderia estar representando povo? Não.
Sobre a ausência do presidente da República é necessário lembrar que a vacância do cargo foi declarada na noite do dia 1º de abril quando João Goulart estava em território nacional.
A Constituição não previa a interrupção do mandato constitucional do presidente da República por meio do movimento militar nas ruas com apoio de setores civis da sociedade. A Constituição de 1946 previa que o presidente da República ficaria suspenso do cargo depois que a Câmara dos Deputados declarasse procedente as acusações que lhe fossem feitas por maioria absoluta dos seus membros. O Supremo Tribunal Federal julgaria os crimes comuns e o Senado Federal os de responsabilidade. O texto Constitucional também dizia que o presidente era o comandante supremo das forças armadas. Cumpria a ele decretar a mobilização total ou parcial dessas forças armadas. A desobediência à Constituição aconteceu no momento em que o primeiro soldado sob o comando do General Mourão pisou fora do quartel para derrubar o presidente.
Os próprios promotores do golpe sabiam que desobedeciam a Constituição e procuraram uma fórmula para ocultar a ilegalidade do ato. Para isso, formularam o Ato Institucional número 1, publicado no dia 09 de abril de 1964. O deputado Bilac Pinto opinou que as Forças Armadas produzissem o documento porque o Congresso não teria autoridade para tanto. Notar que ele estava tratando do mesmo Congresso que elegeria Castelo Branco constitucionalmente, segundo o ex- ministro da Educação. O Ato foi assinado pelos oficiais: General Arthur da Costa e Silva; Brigadeiro Francisco de Assis Correia e pelo Almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald.
Sem poder contar com a legitimidade da Constituição de 1946, o seu preâmbulo trata o golpe de Estado como uma revolução. Por isso, ela não se traduzia na vontade de um grupo mas na vontade de toda a nação. Por ser revolucionário, ele poderia se investir no poder constituinte. Esse poder se manifesta pela eleição e pela revolução que, por sua vez, seria a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte. Dessa forma, sofisma o texto, “a revolução vitoriosa como poder constituinte, se legitima por si mesma”. Por isso, ela se arrogou o poder de destituir o governo anterior bem como constituir um novo; contendo a força normativa, própria do poder constituinte, ela editará normas jurídicas sem limitação normativa anterior à sua vitória.
Ou seja; sem obedecer à Constituição que passou a ser desqualificada como insuficiente para os interesses da nação. A manutenção do Congresso Nacional foi uma decisão dos signatários do Ato. Ao assegurar que a “revolução” não se legitima por meio do Congresso, pelo contrário, é ela, por meio do instrumento jurídico do Ato Institucional, que o legitima, o golpe se consuma juridicamente por meio de sofisma.
Com a troca de ministros no ministério da Educação, aguardamos, os próximos eventos da “era dos absurdos”.
Referências:
Escrevendo História. Câmara dos Deputados
Nota:
[1] FICO, Carlos. O golpe de 1964 – momentos decisivos. Rio de Janeiro: FGV, 2014.
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1964: foi golpe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU