26 Março 2020
"Uma espiritualidade cristã em tempos de coronavírus não exige de Deus nenhum sinal ou a sua proteção, isso para não o tentarmos. O que deveríamos aprender é a fidelidade incondicional a Ele, sobretudo neste momento sombrio de nossa história, como o próprio Jesus que soube perseverar com a sua cruz", escreve Ademir Guedes Azevedo, cp, padre, missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Sem dúvida estamos vivendo dias difíceis. O pânico põe em risco o autocontrole das emoções. Aos poucos renasce com novas interfaces o instinto de sobrevivência darwiniano onde o mais forte e com capacidade de adaptação toma o primeiro lugar. Consequentemente, os idosos e os pobres correm o risco de serem descartados.
Por outro lado, antigas imagens de Deus renascem ao interno da comunidade cristã. Para entendê-las temos que recordar os momentos tristes da história. Na segunda metade do sec. XIV explodiu a Peste Negra (peste bubônica), dizimando um terço da população europeia. Como toda sociedade teocêntrica, acreditava-se que Deus estava revoltado, pregou-se demasiado a ira divina. Para aplacar tal fúria buscaram-se os bodes expiatórios: judeus foram perseguidos e bruxas queimadas. Dizia-se que tudo estava acontecendo porque a gravidade de nossos pecados desagradava a Deus.
Em plena Segunda Guerra Mundial o ilustre teólogo Dietrich Bonhoeffer deu-se conta que, diante da dor e morte dos inocentes, temos que falar de Deus a partir de uma linguagem não religiosa. Para ele, o vocabulário religioso que insiste numa imagem metafisica de um Deus todo poderoso já não consegue justificar a força do mal na humanidade. Além disso, Bonhoeffer denuncia profeticamente o comportamento de buscar o divino apenas quando tudo vai mal, transformando Deus em um tapa-buraco.
Notemos que a recente epidemia do coronavírus fez explodir uma série de reações religiosas e psicológicas deturpadoras do essencial. Dizia-se que a grande doença do sec. XXI seria a depressão, entendida como a exaustação do próprio eu - o cansaço de si mesmo – ou o infarto psíquico da própria imagem, causado pela corrida frenética de sucesso e bem-estar pessoal. Diante da explosão da epidemia estamos testemunhando, infelizmente, um comportamento de medo em relação ao próximo. Se com a depressão o grande inimigo do homem era a sua própria imagem (o eu), agora com o coronavírus alguns insistem em dizer que o outro é o novo inimigo que devemos evitar. Esse tipo de reação ameaça o valor sagrado da alteridade. No entanto, para sairmos deste labirinto temos que ouvir as autoridades e, sobretudo, as recomendações da OMS que propõe o tempo de quarentena, dando-nos assim a oportunidade de estarmos mais unidos e nutrirmos mais ainda o respeito pela vida do próximo. Aqui reside a verdadeira alteridade.
Do ponto de vista religioso, a situação é ainda mais delicada. Muitos grupos e comunidades intensificam orações, adorações e multiplicam missas. Quero acreditar que tudo isso é realmente para evitar aglomerações, nos apoiarmos mutuamente e aprendermos acerca da solidariedade e da compaixão com o próximo, e não para fazer barganha com Deus. Se jogarmos a culpa em Deus com comentários do tipo: Por que Ele está permitindo isso? Retornamos aos tempos da peste bubônica e entraremos em campo com a multiplicação de orações para tentarmos aplacar a ira dele. É justamente isso que devemos refletir a partir de uma ótica que retoma o Evangelho e não a partir de uma tradição medieval.
J. B. Metz, ao ser vítima das barbáries do campo de concentração nazista, levantou a seguinte pergunta: “Ainda é possível crer em Deus depois de Auschwitz?” Para atualizarmos a sua provocação, nestes dias podemos dizer assim: “Como crer em Deus em tempos de coronavírus?”
Pois bem, um antigo rabino certa vez afirmou: “É verdade que Deus fala, mas nem sempre Ele responde”. Às vezes, a nossa forma de rezar pretende obrigar a Deus a dar-nos respostas e sinais. Tomados pelo desespero do coronavírus podemos cair na pior de todas as tentações, aquela que tenta a divindade do Pai, ou seja, a exigência da demonstração de seu poder. No deserto Jesus também foi exposto a isso quando o demônio lhe pedia para transformar as pedras em pães.
Porém, o próprio Jesus nos ensina outra relação com o Pai, a partir de sua fé e obediência absoluta, sobretudo diante das consequências de sua fidelidade ao Reino de Deus. Só o grito de Jesus na cruz pode nos ensinar uma nova espiritualidade libertadora para os nossos dias. O Filho grita e reclama ao Pai de seu abandono. Porém, Deus silencia. No entanto, mesmo que pareça que o Pai abandona o Filho, este por sua vez não abandona jamais ao Pai. Eis aqui a verdadeira fé!
Uma espiritualidade cristã em tempos de coronavírus não exige de Deus nenhum sinal ou a sua proteção, isso para não o tentarmos. O que deveríamos aprender é a fidelidade incondicional a Ele, sobretudo neste momento sombrio de nossa história, como o próprio Jesus que soube perseverar com a sua cruz. Quem se lança nas águas profundas da perseverança aprende que, “Quanto mais escura for a noite, mais clara será a madrugada” (Dom Helder Câmara). Que assim seja!
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Uma espiritualidade cristã em tempos de coronavírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU