23 Março 2020
Enquanto muitos católicos se voltam para as transmissões online da missa em tempos de Covid-19, uma especialista está incentivando as lideranças da Igreja a emitirem diretrizes adicionais para as missas digitais, para diferenciá-las de outros programas de TV a que as pessoas assistem.
A reportagem é de Nick Mayrand, publicada por La Croix International, 20-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Existem maneiras de fazer escolhas em nossas transmissões ao vivo e gravações que as marcam como um tipo diferente de espaço, um espaço sagrado, para minimizar as distrações”, disse a Dra. Katherine Schmidt, teóloga do Molloy College, que estuda a relação entre a cultura digital e a Igreja há uma década.
“Se você já fez parte do planejamento de uma grande liturgia, sabe que todos os detalhes têm uma imensa importância”, disse ela ao Crux. “Então, neste momento em particular, por que não importaria onde as câmeras estão colocadas, se o áudio está funcionando bem ou o tipo de postura que o espectador terá?”
Seu trabalho sobre o espaço digital obviamente era “relevante” muito antes da Covid-19, mas agora parece duplamente relevante, dado o aumento do uso por parte da Igreja de espaços digitais durante a pandemia. Você pode nos dar uma visão geral básica do seu trabalho?
Nos últimos 10 anos, tenho tentado situar as coisas que estão acontecendo nos espaços virtuais, especificamente a internet e as mídias sociais, no contexto católico. Nas minhas pesquisas iniciais, eu via muitas reações por parte de pessoas que diziam que esses espaços são alheios à tradição católica, à teologia e à Igreja.
Mas nunca me convenci disso. Desde os anos 1700, a Igreja tem coisas interessantes a dizer sobre os vários tipos de mídia – naqueles tempos, eram os romances em brochura –, e continuamos ouvindo as lideranças da Igreja nas nossas mídias desde então. A primeira parte do meu livro, “Virtual Communion: Theology of the Internet and the Catholic Sacramental Imagination” [Comunhão virtual: a teologia da internet e o imaginário sacramental católico] (Ed. Lexington/Fortress), abrange essa história das declarações da Igreja sobre as mídias e a tecnologia.
Então, eu levantei a hipótese de que nós, católicos, com a nossa profunda sacramentalidade, realmente amamos as mídias. Meu exemplo disso é a Via Sacra. Nós, católicos, sempre gostamos das imagens, de coisas que podemos tocar, dos cheiros e dos espaços. E, assim, em vez de dizer que essas coisas que mediam a realidade à sua própria maneira são completamente diferentes do que ocorre na mídia digital, eu argumento que estamos lidando mais com um continuum. Sim, existem diferenças e limitações na cultura digital, mas não é algo totalmente estranho à visão de mundo católica.
Então, a nossa vida digital e a vida da Igreja não estão em conflito, pelo menos não necessariamente?
É nesse espaço digital que muitos de nós passamos a maior parte das nossas vidas. Portanto, pensar que ele está desconectado da vida espiritual é realmente problemático. Se estou envolvido com as mídias digitais a maior parte do dia – o estadunidense médio passa quase 11 horas por dia na frente das telas –, é teologicamente perigoso pensar que de alguma forma isso não tem nada a ver com a experiência da graça.
Eu sempre tento dizer aos párocos, mesmo que você não adote a tecnologia digital como parte do seu próprio ministério, por favor, não trabalhe ativamente contra ela. Resista à tentação de zombar ou de fazer piada disso em suas homilias e não seja um obstáculo se a sua paróquia quiser administrar grupos no Facebook.
Na verdade, estou muito menos interessada em saber se podemos “fazer missa online” do que em como os espaços digitais aumentam ou atuam ao lado dos nossos espaços litúrgicos. Estou convencida de que espaços digitais como o Facebook e sites paroquiais ajudam a fornecer o que teólogos, sociólogos e psicólogos nos dizem que precisamos, ou seja, uma matriz social mais densa que se estende para além do que fazemos durante uma hora aos domingos.
O que é realmente difícil sobre isso é que grande parte disso fica obscurecido. Não estou dizendo que as pessoas estão escondendo isso, é que simplesmente não vemos todos os e-mails, mensagens de Facebook e outras conexões digitais que estão facilitando os vínculos entre os paroquianos. Mas esses laços são especialmente importantes em uma era “suburbanizada” da Igreja, pelo menos nos Estados Unidos, onde os paroquianos costumam estar geográfica e fisicamente separados uns dos outros, pois não moram mais nos mesmos bairros, nem jogam nos mesmos clubes esportivos etc.
O que você diz a quem critica essas formas online de comunidade como meras imitações das formas de comunidade que ocorrem quando as pessoas estão fisicamente juntas em um mesmo espaço?
Os sociólogos fazem uma distinção entre laços fortes e laços fracos, o que é bastante claro e direto. Tendemos a supor que a internet é apenas um laço fraco, enquanto os relacionamentos offline são fortes. Mas eu acho que estamos nos enganando um pouco em ambos os aspectos. Não apenas existem exemplos de laços fortes e fracos tanto online como offline, como também é importante que a Igreja tenha ambos os tipos de laços.
Também temos que ter muito cuidado para resistir à tentação de ver épocas passadas, seja a comunicação antes da internet ou a Igreja antes dos anos 1960, como “anos dourados”. Se não estivermos historicamente fundamentados, se não formos historicamente mais honestos, isso pode ser muito perigoso.
O teólogo Henri de Lubac alertou sobre isso, dizendo que devemos resistir à nostalgia, especialmente pela Igreja primitiva. Isso não quer dizer que não há problemas hoje, mas não tenho certeza de até que ponto esses problemas são novos.
Por exemplo, o clericalismo existe há muito tempo, mas está aparecendo agora sob uma nova forma de culto à personalidade no Twitter católico. Mas eu não tenho certeza se é apropriado vê-lo como algo completamente diferente ou mais problemático do que a fama desfrutada pelos párocos em algumas décadas do século XX, que, aos olhos da maioria dos paroquianos, não podia estar errada. Com a crise dos abusos, vimos que esse era um enorme problema.
Você mencionou o Twitter católico, que, para aqueles que não são familiares, refere-se a uma rede considerável de pessoas que falam sobre tudo o que é católico através de suas contas no Twitter. Qual a sua perspectiva sobre o lugar particular do Twitter no catolicismo do século XXI?
Algumas coisas me interessam no Twitter católico. Toda vez que recebemos um novo documento magisterial, seja dos bispos dos Estados Unidos ou do próprio Papa Francisco, eu vejo que uma nova forma de “prova textual ideológica” entra em ação. As pessoas publicam capturas de tela de seções específicas dos documentos, geralmente com algum tipo de destaque ou anotação, para defender que o novo documento apoia as suas visões sobre a questão X ou Y.
O Twitter católico também é um exemplo do “efeito silo” que muitos comentaristas da mídia digital levantaram como um problema. As mídias sociais nos permitem criar essas câmaras de eco, esses silos, onde estamos cercados por uma multidão de vozes que concordam conosco sobre uma questão específica ou um conjunto de questões que mais nos interessam. Isso é perigoso para os católicos, que podem passar muito tempo conversando com um pequeno grupo de pessoas que concordam sobre uma questão específica, deixando de lado o sentido mais amplo da missão da Igreja.
Também é perigoso porque existem algumas figuras com o poder de guiar e mobilizar esses silos. Por exemplo, assim que você coloca “Pe.” no seu nome no Twitter, você já representa a Igreja, não apenas as suas próprias opiniões, independentemente de qualquer aviso que você ponha em sua biografia. Então, quando você fala nesses silos do Twitter, suas palavras têm muito mais poder do que as de um leigo, pelo menos para algumas pessoas.
Isso faz parte da razão pela qual eu venho dizendo há algum tempo que a formação dos seminários precisa incluir um curso substancial de alfabetização midiática digital, que eu acho que poderia promover uma maior responsabilidade clerical nos espaços online, incluindo o Twitter católico.
Por fim, falemos da vida da Igreja em quarentena. Quais são as suas sugestões, tanto para as lideranças da Igreja quanto para os paroquianos em relação a essa mudança flagrante para os espaços digitais nas comunidades do mundo todo?
Quando se trata das missas transmitidas ao vivo, o que estamos vendo aqui é um espaço intermediário, um espaço marginal que não é exatamente litúrgico, mas também não deve ser consumido como outro conteúdo online. Não estou absolutamente de acordo com a ideia de que isso simplesmente conta como uma missa. Mas é diferente dos aplicativos de terço e dos podcasts de oração, porque, quando bem feito, há uma dimensão comunitária que é realmente importante e sagrada.
Eu passei algum tempo analisando uma série de missas virtuais desse fim de semana passado, concentrando-me naquelas que não as estavam fazendo antes da pandemia. O que mais me chamou a atenção foi o uso frequente de uma única câmera muito alta e muito longe. É muito alienante e frio. Depois, você tem algumas paróquias que usam vários ângulos de câmera, em que alguém seleciona qual câmera usar em vários pontos durante a liturgia.
Mas também não tenho tanta certeza disso, porque alguém está fazendo a escolha por você sobre onde olhar. Algumas pessoas podem dizer: “Ah, quem se importa?”, mas estamos dizendo há milênios que os menores detalhes da liturgia são importantes. Então, por que não importaria para onde a câmera está apontando?
Por isso, eu acho que neste momento em particular pode ser útil para a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos ou para os bispos individuais emitir algumas diretrizes adicionais que digam: “Ei, se você vai transmitir a sua paróquia ao vivo, aqui estão algumas coisas que você precisa fazer”. Realmente não é diferente de quando dizemos que é preciso usar velas de verdade e um cálice feito de “materiais nobres”. Aqui, seria algo sobre manter a câmera em um determinado ângulo, perto o suficiente do altar, esse tipo de coisas.
Finalmente, por mais imersiva que seja a experiência virtual da missa, eu acho que ainda há um hiato quando vamos à Eucaristia, onde vemos as brechas da experiência virtual que mostram que ela não é tão perfeita. É aquele hiato em que percebemos: “Ah não, eu não posso partilhar de verdade esta Eucaristia”. No nosso imaginário sacramental, é importante nos apegarmos ao fato de que esta é um verdadeiro hiato.
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É preciso distinguir entre as “missas digitais” e as das outras mídias, afirma teóloga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU