05 Janeiro 2024
"A minha impressão é que aderir a forma do Estado, para garantir e defender a identidade do povo de Israel, foi e continua sendo o grande equívoco do judaísmo. Escolhendo o Estado, num território vital para o povo palestino, inevitavelmente aquela geração escolheu o conflito e a guerra colonialista como características constitutivas do ser hebreu na Palestina. Estado e guerra colonial andam indissoluvelmente sempre juntos", escreve Flavio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, MA.
Segundo ele, "o dia 7 de outubro de 2023, em que Hamas surpreendentemente atacou Israel, por terra e ar, seja mais um dia-chave na história do ocidente. Um evento que faz com que mude a nossa percepção e interpretação da realidade".
"Estou convencido - assegura o autor - que o antissionismo não se sustenta porque enfrenta a questão do Estado a partir de uma exceção estatal arbitrariamente escolhida como tal: o Estado de Israel. Com efeito, o desafio político fundamental é reconhecido somente quando criticamos a existência dos Estados, de todos os Estados".
7 de outubro de 2023 é oportunidade para refletir sobre questões dramaticamente complicadas. Por isto, de antemão faço minha uma consideração de José Ignacio González Faus: “O problema não se dá no estar de um lado ou do outro (ser hebreu ou cristão, muçulmano ou ateu, israelense ou palestino) mas, segundo a linguagem bíblica, ser ‘segundo o coração de Deus’ (1Sam 13, 14) ou ser inimigos daquele coração”[i].
Gostaria, porém - correndo riscos, neste terreno minado – de completar esta proposta de mudança radical do nosso olhar e pensar com algumas considerações de caráter teológico e político.
Tenho a impressão que o dia 7 de outubro de 2023, em que Hamas surpreendentemente atacou Israel, por terra e ar, seja mais um dia-chave na história do ocidente. Um evento que faz com que mude a nossa percepção e interpretação da realidade.
Nestes últimos cinquenta anos, não faltaram acontecimentos marcantes, que proporcionaram mudanças radicais na política internacional e obrigaram a profundas mudanças nas interpretações das conjunturas. Parece mesmo que a história nos encontra sempre despreparados, incapazes de reconhecer crises que se acumulam no tempo e que chegam improvisamente à maturação.
Temos datas-chave de sobra, eventos que ainda interpelam e embaralham as análises de conjunturas, como o ataque ao World Trade Center no dia de 11 de setembro de 2001, a queda do muro de Berlim em 1989, a queda do regime soviético em 1991, as jornadas de junho de 2013 no Brasil, como reflexo de movimentações populares internacionais inéditas, como a chamada Primavera Árabe em 2010-2012.
Um pouco mais atrás no tempo, a derrota dos Estados Unidos por parte do Vietnã do Norte em 1975. Um evento que nos mostra, talvez pela primeira vez, que nas guerras desiguais da modernidade, entre grandes potências econômicas e militares e pequenos povos, aparentemente sem a mínima possibilidade de enfrenta-las, os que deveriam vencer, se não o fazem rapidamente e definitivamente, irão perder a guerra, enquanto os pequenos, se não perdem, sempre vencerão. Foi a ofensiva do Tet, janeiro de 1968, que decretou que os EUA não iriam vencer aquela guerra, mas, infelizmente, reconheceram a derrota somente em 1975. Devo a Adriano Sofri esta observação, que talvez nos diz algo sobre as intenções de Hamas e o desfecho possível da guerra em Israel.
Essas, porém, são considerações interessantes, mas não são prioritárias, quando penso no dia de 7 de outubro de 2023 como mais uma data-chave, para fazer uma leitura do mundo antes e depois destes eventos.
O que me interpelou desde as primeiras horas daquele 7 de outubro foi a questão hebraica.
A partir da reação de Israel ao ataque, em um primeiro momento achei óbvio usar o antigo chavão da distinção entre antissemitismo e antissionismo, mas, em contato com amigos fraternos hebreus, que nunca foram sionistas, mas não hesitaram, já nas primeiras horas, em apoiar sem restrições as retaliações de Israel – a pesar de condenar a política do governo Netanyahu – descobri que esta figura não servia mais e que a opinião pública internacional mostrava, transitando entre direita/esquerda e entre liberais/conservadores um leque renovado e contraditório de atitudes e posturas.
Naqueles primeiros dias, tive grande dificuldade em enfrentar com serenidade a reação dos amigos judeus, radicais na condenação do pogrom de Hamas, com centenas de vítimas civis, jovens, mulheres, crianças, mas também absolutamente convictos da necessidade da retaliação israelense, que também não poupou civis, mulheres e matou milhares de crianças, transformando a menos injusta lei do talião na vingança desmedida de Lameque, que afirmava que, se a vingança de Caim era sete vezes maior, a sua era setenta vezes sete.
O governo genocida de Israel, mas também judeus da diáspora chegam a definir com radicalidade o antissionismo como última versão do antijudaísmo. Exemplo esclarecedor é a nota do Conselho da Assembleia dos Rabinos da Itália (23.11.2023), que expressa o seu desagrado pelas palavras de papa Francisco, que, com “fria equidistância”, definiu ambas as partes do conflito como terroristas: “Nos perguntamos qual foi a utilidade de décadas de diálogo hebraico-cristão, falando de amizade e fraternidade, se, depois disto, quando surge quem tenta exterminar os hebreus, eles, em lugar de receber expressões de proximidade e compreensão, são alvos de acrobacias diplomáticas”.
A minha incapacidade de entender a solidariedade hebraica, que a partir daquele evento, se torna ampla, além das fronteiras de Israel, em cada canto da diáspora, é comprometida também pelo fato que começo a perceber a impossibilidade de distinguir entre sionistas e hebreus. Em suma, me pergunto se também o meu antissionismo não seja uma variante hipócrita do antissemitismo.
A nota dos rabinos italianos nos alerta sobre algo que não podemos ignorar e que está profundamente enraizado na consciência dos judeus, sejam eles conservadores, progressistas, sionistas, cosmopolitas, crentes ou ateus.
Todos eles e elas sabem, diria geneticamente, o que é ser discriminados, perseguidos, expulsos, exilados, mortos, exterminados, acusados de todos os crimes – inclusive o deicídio – , hereges e traidores dos povos que os hospedam, conspiradores e ricos exploradores dos pobres. O que sabem desde o primeiro dia da era cristã, o aprenderam de um jeito absoluto e infernal nos campos de concentração da Europa nazifascista. E, talvez, depois da Shoah, o genocídio de seis milhões de judeus, muitos deles tenham jurado que, diante de uma renovada ameaça de extermínio, não adotariam a mística do Baal Shem Tov, mas reagiriam defensivamente com as armas, até as últimas consequências.
E sabem que o risco continua, que a violência contra eles está à espreita. E de fato nunca parou. Efetivamente, continua circulando no sangue dos ocidentais um antissemitismo incurável, que foi promovido pelas Igrejas cristãs, que sempre fornecerem álibis religiosos a essa discriminação, que não tem equivalentes na história.
O antijudaísmo não encontra seguidores somente entre os netos dos nazifascistas, mas é um vírus que contaminou e contamina liberais e esquerdistas.
É obvio, que não seja somente a ampla solidariedade hebraica que me interpela, porque ela é acompanhada pela demoníaca solidariedade política e militar do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, motivado pelos interesses do sistema capitalista, que não pode renunciar ao controle geopolítico daquela região. A solidariedade do Ocidente com Israel chega a ser escandalosa e não se hesita em condenar sumariamente, junto com Hamas, Hezbollah, Irã, o povo palestino, fechando os olhos ao castigo coletivo, um genocídio, infligido ao civis de Gaza e da Cisjordânia e a repressão do estado e de grupos de extrema-direita contra cidadãos palestinos em Israel. Nos EUA, na França, no Reino Unido, quem apoia a Palestina é demonizado e criminalizado pelo Estado. A mídia ocidental se especializa na defesa do Israel branco, moderno, civilizado e ‘democrático’ e na desumanização dos árabes primitivos e bárbaros.
De outro lado, a esquerda ocidental como um todo, a partir de uma leitura obsoleta do imperialismo, continua privilegiando a oposição ao imperialismo dos EUA, ignorando que os neoimperialismos, inimigos multipolares do Ocidente, são representados por Estados reacionários, autoritários, tirânicos, liberticidas, antidemocráticos. E entre eles, evidentemente, não poderiam ser ignoradas as organizações mais violentas e desumanas, como Hamas e Hezbollah, em todas a suas variáveis. E não deixa de surpreender a opção de muito esquerdistas de apoiar o próprio Putin, que invade a Ucrânia, e o imperialismo panrusso, enquanto oposição aos odiados yankees. Ou a tranquilidade crítica do mundo progressista diante das petroditaduras da Península Árabe ou das oportunidades de mercado proporcionada pelo BRICS. Ou o aumento das doses da mescla escandalosa entre esquerdistas e direitistas num cenário político internacional, em que ficam cada vez mais instáveis e insignificantes as diferenças ideológicas.
De fato, o povo hebraico pode se organizar como um estado, em 1948, somente a partir de uma decisão das potencias que tinham vencido a segunda guerra mundial e a generosa concessão não foi simplesmente ditada para devolver dignidade para o povo dizimado na Shoah, mas, sobretudo, para constituir uma base de poder territorial e militar do Ocidente numa região petrolífera estratégica.
A minha impressão é que aderir a forma do Estado, para garantir e defender a identidade do povo de Israel foi e continua sendo o grande equívoco do judaísmo. Escolhendo o Estado, num território vital para o povo palestino, inevitavelmente aquela geração escolheu o conflito e a guerra colonialista como características constitutivas do ser hebreu na Palestina. Estado e guerra colonial andam indissoluvelmente sempre juntos.
Dá para entender a trágica armadilha em que o povo hebraico se colocou para se proteger. E é dramaticamente compreensível a solidariedade, que emerge neste tempo, de um povo, complexo na sua composição social, que, como todos os povos – até quando uma verdadeira revolução internacionalista, não cancele da face da história os estados nacionais – tem o diabólico direito de formatar no estado a sua identidade nacional.
Com efeito, revela-se contraditória e violenta a pretensão de setores significativos da esquerda de negar território e estado aos hebreus. Porque unicamente eles, como os palestinos, os armênios e os curdos, deveriam ser obrigados a escolher e confirmar uma identidade cosmopolita?
E como podemos privilegiar só o Estado de Israel com o troféu de único pais colonizador, quando, de fato, todos os arranjos territoriais da história da humanidade continuam acontecendo através da violenta expulsão e eliminação dos anteriores ocupantes? A história da colonização do chamado Novo Mundo mostra em forma perfeita, diria arquetípica, como o europeus, com seu impérios e sua religião, massacraram – e continuam massacrando – as populações nativas.
Estou convencido que o antissionismo não se sustenta porque enfrenta a questão do Estado a partir de uma exceção estatal arbitrariamente escolhida como tal: o Estado de Israel. Com efeito, o desafio político fundamental é reconhecido somente quando criticamos a existência dos Estados, de todos os Estados.
Desafio encarado quando lutamos contra o Estado-nação, que, por exemplo, na Abya Ayala, é o Estado branco colonizador, que nega a pluralidade e oprime as nações originárias. Luta que não é adiada para um futuro longínquo, mas que é travada diariamente por minorias étnicas e periféricas, em processos de construção de relativa autonomia respeito ao Estado e ao mercado. Autonomia que é evidentemente obrigada a não ignorar a presença do Estado e do capital, mas que pode ser integrada metodologicamente – o como!!! – na praxe de libertação.
Se somos internacionalistas, consequentemente somos antinacionalistas, radicalmente contra o Estado-nação. Quando a esquerda podia ainda se autodefinir tal com orgulhosa coerência, o internacionalismo era cláusula pétrea, assumida também por importantes militantes hebreus. Rosa Luxemburgo, por exemplo, fala com igual desprezo dos poloneses, ucranianos, tchecos, hebreus e das “nações e mini nações que são proclamadas em todo canto e afirmam os seus direitos a constituir Estados. Cadáveres apodrecidos saem de sepulcros centenários, animados por um novo vigor primaveril, e povos ‘sem história’, que nunca constituíram entidades estatais autônomas, sentem a necessidade violenta de se instituir como Estados” [ii].
Esta de Rosa Luxemburgo deveria continuar sendo a leitura antinacionalista, internacionalista da esquerda da atualidade e, se assim fosse, não teríamos nenhum equívoco antissemita, porque seria simplesmente uma oposição radical, revolucionária ao Estado. Qualquer Estado. Não somente o Estado de Israel, mas todos os Estados.
[i] José Ignacio González Faus, Lettera ai rabbini italiani, Settimana News, 3 dicembre 2023.
[ii] Tra guerra e rivoluzione [1918], trad. de Milano, Jaca Book, 2019, in Michael Walzer, Antisionismo, una versione dell’antisemitismo, Vita e Pensiero, 18.11.2023.
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7 de outubro de 2023. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU