07 Novembro 2023
"A ideia de que a solução para o antissemitismo possa vir do sionismo parece, então, como uma hipótese a ser verificada: o nacionalismo judaico como resposta à questão judaica."
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 05-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre as coisas mais tristes a que assistimos, a partir de 7 de outubro último, está o uso impróprio e impreciso, por homens irresponsáveis, de termos como antissionismo, não de raro intencionalmente confundido com antissemitismo. Uma contribuição para uma reflexão mais adequada é propiciada por uma troca epistolar de mais de um século atrás, que tentarei apresentar aqui brevemente.
Como é útil recordar hoje uma polêmica que já dura mais de 100 anos, ou seja, a discussão entre Hermann Cohen e Martin Buber a respeito do “sionismo”, que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial, em 1916[1]. Comparadas às nossas discussões atuais, muitas vezes tão superficiais ou imprecisas, essas cartas entre os dois filósofos parecem singularmente distantes, mas como que dotadas de uma profecia singular. São o documento de uma primeira aparição - quase inédita na época - de uma irrelevância substancial da fé para a cidadania e a dignidade do cidadão. A ideia de que a solução para o antissemitismo possa vir do sionismo parece, então, como uma hipótese a ser verificada: o nacionalismo judaico como resposta à questão judaica.
Mas procedamos por ordem: em primeiro lugar, devemos dizer que se trata de uma discussão entre duas entre as personalidades judaicas mais importantes e cultas da Alemanha da época. Elas manifestam e apresentam, no entanto, uma visão bastante distinta da possível solução para a questão judaica da qual tinham uma percepção vívida e profunda.
Hermann Cohen aposta na igualdade do judeu, na identificação do judeu com a condição de estado alemã em que vive, e acusa o sionismo de representar uma forma de fuga, de nova automarginalização, de regressão em relação ao judaísmo ético puro do judeu alemão.
Martin Buber, por outro lado, centra-se na diferença do judeu, na sua diversidade garantida pela escolha sionista, isto é, de recomeçar a partir de Deus e não do homem, na Palestina e não na Alemanha, numa visão mais comunitária e social do que liberal e individual.
As duas visões, portanto, tornam a assimilação dependente da aceitação de uma identidade essencialmente alemã, e o sionismo dependente de uma espécie de estranheza em relação à cidadania europeia.
Mas esse é apenas um primeiro aspecto, que já é em si muito interessante. Ainda mais interessante é o fato de que essas posições contêm, de certa forma, o seu oposto.
A visão de Cohen, que se apresenta como profundamente liberal, acaba por identificar o judeu com o alemão, a ponto tornar a identidade religiosa dependente da identidade político-moral e público-estatal. Não se pode esquecer o que Cohen afirmou em 1916 e que, depois de Auschwitz, ressoa em nossos ouvidos de uma forma quase sinistra (obviamente sem nenhuma culpa dele):
“Por mais importante que seja para nós, homens modernos, a religião no problema geral da história é válida para nós apenas como uma das especificidades concêntricas dentro da unidade da cultura moral. Para nós, a pedra angular de toda a civilização humana é constituída pelo Estado. O eu do homem continua sendo uma ambiguidade empírica até ser objetivado como pureza na autoconsciência política" (254).
Essa perda da identidade do sujeito ao ser órgão de um Estado constitui uma das mais fortes premissas para aquela perfeita máquina de destruição que será o Estado alemão e o cidadão alemão à caça do judeu.
Pelo contrário, com clareza profética Buber acredita que existe um grande perigo em tal visão.
Ele diz, em contraste muito nítido com Cohen,
“Nego este mundo em que a religião é ‘controlada’ à luz da ética e a ética à luz do Estado" (274).
E disso, a referência a Sião do sionismo, pelo menos nessa versão buberiana (que não é de forma alguma a única, é bom lembrar), é precisamente contra o Estado liberal, contra essa irrelevância da religião para a ética e para a política, mas por uma nova relevância, que só pode ser construída noutro lugar, numa diferença até mesmo local que tem todos os traços de uma região utópica:
“Não se trata do Estado judeu, que, se surgisse hoje, também seria erguido de novo nos mesmos princípios de todo Estado moderno; não se trata de uma minúscula formação de poder a mais no enxame; trata-se de um acordo que, independentemente da engrenagem dos povos e afastado da política externa, possa reunir todas as forças para a edificação interna e, portanto, para a realização do judaísmo" (275).
E, além disso, conclui, polemizando novamente com Cohen e reafirmando as razões de uma diversidade qualificadora:
“Os outros garantem aos alemães que não são diferentes deles, para não serem considerados estrangeiros. Afirmamos ser diferentes e podemos acrescentar, como verdade da nossa alma que ninguém pode desconhecer, que não somos estrangeiros" (281).
As razões da assimilação de Cohen conduzem a uma espécie de idolatria do Estado, enquanto a lógica do sionismo de Buber sublinha vigorosamente as razões de uma diversidade não estrangeira, mas precisa de uma sua “circunscrição vital” (quase um novo gueto?).
Quase poderíamos dizer: Cohen aceita totalmente a lógica da modernidade e assume a identidade judaica apenas dentro do quadro ético-político do Estado moderno, com a privatização da religião.
Buber não aceita essa lógica e, portanto, reivindicando um valor original do ato de fé religiosa, submete a identidade judaica à condição de crente, quase recriando as condições de uma nova forma de “guetização”.
Ambos têm boas razões, em 1916, mas apenas o último é capaz de uma palavra realmente profética. E é profético na medida em que permanece interessada, não desinteressada, sobre a importância teológica da identidade judaica. E não seria talvez justamente a perda dessa articulação, a definição do judaísmo através de um sionismo pensado apenas politicamente, sem profundidade ética e religiosa, apenas por meio de fronteiras, exércitos, diplomacia ou “muros”, que hoje constitui uma das especificas carências da reflexão comum sobre a questão judaica?
Não haveria também aqui uma espécie de "gueto" teológico, irrelevante para os problemas da dignidade, do respeito e do reconhecimento do judeu, bem como do homem?
E nesse gueto não corre hoje o risco de se encontrar não só a teologia judaica, mas também aquela islâmica e cristã?
Reler essas cartas de mais de um século atrás permite-nos compreender quão profundas e urgentes são as questões na definição das identidades dos povos, em razão da interpretação também teológica da sua história.
[1] O debate entre os dois filósofos publicado no apêndice de H. Cohen, La fede d’Israele è la speranza. Interventi sulle questioni ebraiche (1880-1916), Florença, Giuntina, 2000, 221-281. Os números entre parênteses ao longo desse parágrafo referem-se a essa publicação.
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Sionismo e antissionismo 100 anos atrás. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU