Oligarcas intelectuais legisladores. Artigo de Evgeny Morozov

Foto: Françoise Foliot / Ética, Direito e Inteligência Artificial

16 Agosto 2025

Com carteiras de investimento que funcionam como argumentos filosóficos, os bilionários da elite tecnológica buscam hoje adaptar a realidade às suas próprias hipóteses e apostas. A estante de livros substituiu o iate como principal barômetro de status. E esses novos oligarcas intelectuais fabricam ideias com a eficiência de uma linha de montagem: ousadas, desconcertantes, distópicas.

O artigo é de Evgeny Morozov, publicado por Nueva Sociedad, junho/julho de 2025.

Evgeny Morozov é escritor e pesquisador bielorrusso, estuda as implicações políticas e sociais da tecnologia. É autor, entre outros livros, de O desencanto da internet: os mitos da liberdade na rede (Destino, 2012) e A loucura do solucionismo tecnológico (Katz/Clave Intelectual, 2015).

Eis o artigo.

Causa uma certa emoção confusa presenciar, ao longo dos últimos anos, a grande quantidade de ideias ousadas, muitas vezes desconcertantes e, em algumas ocasiões, horríveis que surgem das fileiras da elite tecnológica dos Estados Unidos.

Pensemos nas heresias de Balaji Srinivasan e Peter Thiel que, ao celebrar o “Estado em rede” [1] e as cidades flutuantes em alto-mar (seasteading) [2], conceberam uma doutrina de fuga para os aristocratas digitais. Onde Srinivasan imagina feudos de blockchain com cidadania sob medida e forças policiais no modelo pay-per-view [3], Thiel anseia por plataformas oceânicas onde os ricos possam flutuar além do alcance dos Estados, enquanto suas fantasias libertárias balançam como iates de luxo em águas internacionais [4].

Em outros âmbitos, a overdose solucionista do Vale do Silício inflou uma bolha de ideias que rivaliza com as financeiras: um mercado frívolo em que a cotação das grandes narrativas sobe mais rápido que as stock options. Assim, Sam Altman esboça despreocupadamente planos de ação planetários para a (não) regulação da inteligência artificial [5] e até para garantir o bem-estar da IA (“capitalismo para todos!” [6]), enquanto os criptoacólitos (Marc Andreessen, David Sacks) [7], os aspirantes a colonizadores celestiais (Elon Musk, Jeff Bezos) [8] e os revivalistas nucleares (Bill Gates, Bezos, Altman) oferecem suas próprias soluções ambiciosas e empolgantes para problemas de origem aparentemente desconhecida [9]. (Quem está consumindo toda essa energia que, de repente, precisamos com tanta urgência? Um verdadeiro mistério, sem dúvida).

Mas temas mais mundanos, desde política externa até defesa, também se tornaram para eles uma preocupação crescente. Eric Schmidt – um homem cuja personalidade poderia ser confundida com um documento em branco no Google Docs – não apenas escreveu dois livros junto com Henry Kissinger, mas também colabora regularmente com a Foreign Affairs e outras fábricas semelhantes de dogmas e catastrofismos. E está em busca de assuntos importantes e substanciais, como aqueles que exigem solenes acenos de cabeça nos almoços dos think tanks. “A Ucrânia está perdendo a guerra contra os drones”, proclama um artigo seu de janeiro de 2024 [10]. Será este – pura coincidência, certamente – o mesmo Eric Schmidt que, apenas alguns meses antes, lançou uma empresa de drones?

Agora que as elites tecnológicas se juntaram ao banquete, a especulação sobre o futuro da guerra – que antes era domínio exclusivo de “intelectuais da defesa” murmurando discretamente nos corredores da RAND Corporation [11] – tornou-se um entretenimento em horário nobre. Alex Karp, da Palantir, e Palmer Luckey, da Anduril – com fortunas combinadas que superam os 11 bilhões de dólares – se apresentam como rudes Davids lutando contra os esbanjadores Golias do Pentágono. Inevitavelmente, Elon Musk, o Zelig do tecnocapitalismo, também tem opiniões firmes sobre o assunto: nas guerras do futuro, que priorizam a destruição de infraestrutura – afirmou em uma recente aparição em West Point – “qualquer sistema de comunicação terrestre, como cabos de fibra óptica e torres de telefonia móvel, será destruído” [12]. Que coincidência existir alguém que já controla uma empresa de internet via satélite para nos salvar!

Os “intelectuais específicos” de Michel Foucault, que ganhavam autoridade por seu domínio técnico especializado, soam anacrônicos ao lado de alguém como Palmer Luckey, o menino prodígio da realidade virtual convertido em contratante da Defesa. Depois de trocar o paletó de tweed por chinelos, bermuda cargo e camisa havaiana, ele desfila em entrevistas se proclamando “um propagandista” disposto a “distorcer a verdade” [13]. Nesse novo panteão, o sóbrio analista da era da Guerra Fria dá lugar a um novo arquétipo: espetacularmente rico, viciado em estrelato e ideologicamente desinibido.

Desqualificar esses fundadores e executivos como simples showmen – mais “oferta pública” do que “intelectuais públicos” – seria um erro. Para começar, eles fabricam ideias com a eficiência de uma linha de montagem: seus posts em blogs, podcasts e no Substack avançam com a sutileza de um trem de carga. E suas “opiniões polêmicas”, apesar da embalagem vulgar, frequentemente se baseiam em diversas tradições filosóficas. Assim, o que parece comida de fast-food intelectual – nuggets ultraprocessados de pensamento fritos em capital de risco – muitas vezes esconde ingredientes nutritivos provenientes de uma despensa gourmet bastante sofisticada.

Não surpreende que o bilionário bibliófilo seja o novo fetiche do Vale do Silício e que a estante de livros tenha substituído o iate como principal termômetro de status [14]. Uma estante repleta de títulos estranhos e improváveis: Albert O. Hirschman certamente ficaria surpreso ao ver a poderosa análise de seu livro Saída, voz e lealdade ser usada para construir Estados em rede, cidades privadas e colônias flutuantes [15].

Os flertes de Thiel com Leo Strauss e René Girard, tão comentados, constituem apenas um ramo dessa árvore genealógica filosófica. Outro, mais robusto, é o de Karp, cuja tese de doutorado sobre Adorno e Talcott Parsons serve agora como base intelectual para o império de vigilância da Palantir. Suas comunicações com investidores vêm adornadas de citações eruditas; recentemente, nelas apareceu até Samuel Huntington.

Ainda assim, de alguma forma, a “Realpolitik para otimistas” de Karp parece decididamente antiadorniana. “A capacidade dos EUA de organizar a violência de forma superior”, disse ele à Fox Business em março, “é a única razão pela qual o mundo melhorou nos últimos (…) 70 a 80 anos” [16]. A Escola de Frankfurt vai parar no Nasdaq, com uma escala na CIA: onde Adorno e Horkheimer viam que a racionalidade iluminista ocultava violência, Karp vê que a violência organizada revela os benefícios globais da hegemonia americana – e uma lucrativa oportunidade de lucro para ajudar a melhorá-la ainda mais (desta vez, com algoritmos, drones e IA!).

A retórica militante de Karp expõe a impaciência do Vale do Silício com o pensamento divorciado da ação. Karl Marx certamente brindaria à sua guinada para a práxis: em vez de simplesmente “interpretar o mundo”, eles têm a vontade, os meios e, agora, aparentemente, as “bolas” para mudá-lo [17]. O retorno de Trump lhes deu canais diretos para a máquina federal: agora Andreessen atua como técnico de contratações, Thiel posiciona seus tenentes no governo e os aliados de Musk circulam livremente pelo Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês) [18]. A estratégia? A mesma que destruiu “indústrias dinossauro”: perturbar primeiro, eliminar depois.

Os vocabulários taxonômicos em que confiamos – com suas categorias arrumadinhas de “elites”, “oligarcas”, “intelectuais públicos” – ficam aquém diante dessa nova espécie. Os reis-filósofos do Vale do Silício não são simplesmente os patrocinadores de antigamente que financiavam think tanks ou organizações sem fins lucrativos, nem plutocratas acidentais que rabiscavam manifestos entre a compra de um iate e outro. Eles projetaram um híbrido mais agressivo: carteiras de investimento que funcionam como argumentos filosóficos, posições de mercado que operacionalizam convicções. E, enquanto os bilionários da era industrial criavam fundações para imortalizar suas visões de mundo, esses personagens erguem fundos de investimento que também atuam como fortalezas ideológicas. É a evolução hegeliana do capitalismo (tese) ao filantrocapitalismo (antítese) e à guerra cultural como negócio (síntese).

Consideremos o campo de batalha do investimento ético, esse confessionário corporativo com a marca ESG (critérios ambientais, sociais e de governança, em português ASG), onde as duvidosas tentativas de Wall Street de medir a virtude como se fosse um relatório trimestral de lucros se tornaram um detonador da guerra cultural. Para os não iniciados, os critérios ESG representam o reconhecimento tardio do mundo financeiro de que talvez poluir rios, explorar a mão de obra e nomear conselhos de administração compostos exclusivamente por amigos de golfe possa, eventualmente, afetar os resultados. As empresas recebem pontuações ESG que supostamente medem seu compromisso ambiental, sua responsabilidade social e suas práticas de governança: uma espécie de classificação de crédito moral para corporações ansiosas em demonstrar que evoluíram além de explorar abertamente tanto a natureza quanto a dignidade humana.

O peculiar – quase perversamente fascinante – é como as elites do Vale do Silício têm empregado sua artilharia nesse campo de batalha, aparentemente tão distante de seus reinos digitais. O drama, que se desenvolveu em boa parte nos últimos anos, avançou como uma inevitabilidade mecânica: o desprezo de Musk (“uma farsa”) [19], a denúncia de Chamath Palihapitiya (“uma fraude completa”) [20], os rituais funerários que Andreessen preparou (“ideia-zumbi”) [21].

Mas esses homens transcendem a simples opinião. Quando a práxis chama, o Vale do Silício responde com investimento, não com mera filantropia. Pouco depois de comparar os critérios ESG ao comunismo chinês e classificá-los como “cartel ideológico” [22], Thiel financiou o Strive Asset Management, um fundo de investimento anti-ESG. Na época, era dirigido por Vivek Ramaswamy, antigo tenente de Musk no DOGE, que baseou toda a campanha presidencial em um único tema: atacar o “capitalismo woke” [23]. Andreessen, depois de apoiar um fundo de investimento pró-Maga chamado New Founding, ajudou também a fundar a 1789 Capital, outro bastião anti-ESG hoje sustentado por Don Trump Jr. A genialidade? Transformar posições intelectuais em arbitragem de mercado, enquanto manejam (e muitas vezes possuem) megafones digitais para remodelar a própria realidade contra a qual suas apostas de investimento são feitas.

Será que a marca intelectual do Vale do Silício deixou sulcos mais profundos do que imaginávamos? Enquanto personagens como Andreessen fazem cosplay de intrépidos “Little Tech” [24], e se eles forem algo maior do que sugere essa pantomima? Uma hipótese espinhosa e inquietante se apresenta: e se nossas elites tecnológicas multitarefas forem as mesmas forças – astutas, poderosas, às vezes delirantes – que impulsionam a “transformação estrutural” da esfera pública que Jürgen Habermas diagnosticou em seus primeiros escritos?

O jovem Habermas – antes de a teoria dos sistemas inflar sua prosa e os matizes diluírem sua fúria – identificou o vilão com clareza meridiana: a decadência do debate crítico e aberto se devia à influência corruptora do poder concentrado. Nunca palavras foram mais certeiras. E, ainda assim… ao atualizar sua análise de 1962 em 2023, Habermas, o acadêmico patrício, optou por se preocupar com temas como a “direção algorítmica”, uma curiosa inquietação semelhante a ajustar molduras de fotos enquanto a casa afunda em um buraco.

Hoje fica cada vez mais evidente que são os oligarcas tecnológicos – e não suas plataformas controladas por algoritmos – que representam o maior perigo. Seu arsenal combina três ferramentas letais: gravidade plutocrática (fortunas tão enormes que distorcem a física básica da realidade), autoridade oracular (suas visões tecnológicas tratadas como profecias inevitáveis) e soberania de plataformas (a propriedade das interseções digitais onde se desenvolve a conversa da sociedade). A tomada de controle do Twitter (agora X) por Musk, os investimentos estratégicos de Andreessen no Substack, a corte de Peter Thiel no Rumble, o YouTube conservador: eles colonizaram tanto o meio quanto a mensagem, o sistema e o mundo vivencial.

Devemos atualizar nossas taxonomias para dar conta dessa nova espécie de oligarcas intelectuais. Se o intelectual público de ontem se parecia com um meticuloso arqueólogo que escavava artefatos culturais para exibi-los em revistas literárias eruditas, o modelo atual é o especialista em demolições, que espalha explosivos ideológicos por estruturas sociais inteiras e os detona à distância segura oferecida por suas contas offshore. Eles não escrevem sobre o futuro; eles o instalam, testando teorias em populações inconscientes no maior experimento não regulamentado da história.

O que os distingue das elites abastadas do passado não é a ganância, mas a verborragia: uma produção torrencial que esgotaria até Balzac. Onde os senhores da indústria financiavam think tanks para branquear interesses transformando-os em policy papers, nossos intelectuais oligarcas dispensaram o intermediário. Esqueçam os algoritmos: os intelectuais oligarcas dirigem a própria conversa, e o fazem com granadas de memes filosóficos. Lançadas às 3 da manhã no X, invariavelmente viram manchetes internacionais na hora do café da manhã.

Onde deveríamos situar personagens como esses nos debates tradicionais sobre intelectuais? No final da década de 1980, Zygmunt Bauman delineou dois arquétipos intelectuais: os “legisladores”, que desciam das montanhas com os mandamentos da sociedade gravados em pedra, e os “intérpretes”, que se limitavam a traduzir entre dialetos culturais sem prescrever regras universais. Ele rastreou a erosão da postura legislativa causada pela pós-modernidade. Os grandes relatos morreram. A autoridade universal definhou. Tudo o que restou foi interpretação.

Nossos intelectuais oligarcas começam como intérpretes por excelência. Posicionam-se como médiuns tecnológicos, canais passivos para futuros inevitáveis. Seu dom especial? Interpretar as folhas de chá do determinismo tecnológico com perfeita clareza. Não prescrevem; simplesmente traduzem o evangelho da inevitabilidade. Isso cumpre a função “intelectual” de sua identidade de dupla hélice.

Mas a cadeia de DNA oligárquica se enrola com mais força. Munidos de suas visões proféticas, exigem sacrifícios específicos: do público, do governo e de seus funcionários. Altman gerencia voos de luxo entre capitais como um Kissinger tech, oferecendo tratados de paz para guerras de inteligência artificial que nem começaram. Musk traça o destino cósmico da humanidade com a certeza de um plano quinquenal soviético. Thiel e Karp reformulam a estratégia de defesa, enquanto Andreessen reinventa o dinheiro e Srinivasan, a governança. Seu talento interpretativo se transforma, como um camaleão, em mandato legislativo.

Nesse processo, os intelectuais oligarcas do Vale do Silício construíram as portas de uma catedral a partir do que os pós-modernos uma vez reduziram a escombros: um grande relato com a palavra “tecnologia” (mas também “disrupção”, “inovação”, “inteligência artificial geral”) inscrita em cada pedra e carregada com o peso da inevitabilidade. Folheiam volumes como What Technology Wants, de Kevin Kelly, não como leitores, mas como editores, anotando suas próprias exigências entre linhas. O magnata tecnológico, que antes se contentava em prever o futuro, agora exige que nos ajustemos a ele.

A metamorfose atinge sua etapa final não em manifestos nem em threads de tuítes, mas na colonização dos salões do poder em Washington. Observe-os deslizar da sala de reuniões para a Sala do Gabinete, com a suavidade do mercúrio e o impulso de seu propósito, após terem fundido magistralmente interpretação e legislação: primeiro profetizam as exigências da tecnologia, depois elaboram políticas para satisfazer os deuses que eles mesmos inventaram.

Enquanto os soldados da Guerra Fria da RAND sussurravam nos corredores do Pentágono, nossos intelectuais oligarcas orquestram a sinfonia da realidade: controlando plataformas midiáticas, despejando capital de risco como bombardeios de saturação e aperfeiçoando a estratégia de “inundar a zona” de Steve Bannon ao nível de ciência hidráulica [25]. Combinando poderes antes dispersos entre diversos âmbitos sociais, propõem futuros na segunda-feira, financiam na terça e forçam a materialização na sexta. E quem questiona os profetas cujas revelações anteriores deram origem a PayPal, Tesla e ChatGPT? Seu direito divino de prever emana de sua comprovada divindade.

Seus pronunciamentos enquadram a consolidação e expansão de suas próprias agendas não como interesses corporativos, mas como a única possibilidade de salvação do capitalismo. O “Manifesto Tecno-otimista” [26] – aquela encíclica digital que urge os EUA a “construir” em vez de lamentar – transborda de referências ao estancamento econômico e prescreve a audácia empresarial como único antídoto contra a esclerose sistêmica. Invocando Nietzsche e Marinetti [27], legisla a aceleração como virtude e condena o impulso cauteloso como heresia. “Acreditamos que não há problema material algum”, entoa, “que não possa ser resolvido com mais tecnologia”. Isso não é apenas uma declaração; é um catecismo para o futuro desejado.

Thiel, em sua insistência constante de que o Ocidente perdeu a capacidade de inovação audaciosa, também evoca a imagem de um deserto tecnológico que o Vale do Silício deve irrigar. Enquanto isso, Altman executa uma dança em dois tempos: primeiro declara que a IA devorará empregos e depois propõe a renda básica universal como única solução lógica, não apenas com floreios retóricos, mas com dólares para pesquisa e com a Worldcoin, sua outra startup menos conhecida (afinal, por que não cobrar – talvez perpetuamente! – em troca de permitir que Sam Altman escaneie sua íris?). Estas não são apenas trivialidades egoístas, mas imperativos existenciais: rejeite suas propostas e verá a civilização ruir.

Essa autopromoção messiânica – oligarcas tecnológicos que se autoproclamam porta-vozes oficiais da humanidade – faria Antonio Gramsci recorrer apressadamente aos seus Cadernos do Cárcere. O marxista italiano teorizou sobre os “intelectuais orgânicos” como vozes que surgem das classes ascendentes, especialmente do proletariado, e traduzem interesses particulares em imperativos universais na batalha pela hegemonia cultural. A amarga conclusão? O capital venceu a esquerda em seu próprio jogo: os intelectuais oligarcas agora funcionam como os intelectuais orgânicos não oficiais do capital, e o capitalismo aperfeiçoou em uma década o que os socialistas não conseguiram em um século.

Entre a fria aritmética da busca por lucros e o teatro messiânico do salvamento da civilização se estende a contradição mais reveladora dos intelectuais oligarcas: eles devem extinguir as mesmas chamas revolucionárias que seus impérios ajudaram a acender. Sua campanha obsessiva contra o woke revela o reflexo mais antigo do poder: a contenção de suas próprias contradições.

Observemos Musk denunciar o “vírus mental woke” [28], ou Karp atacar o woke, acusando-o de ser “uma forma de religião pagã superficial” [29]. Enquanto isso, Andreessen retrata universidades de elite como seminários marxistas que produzem “comunistas que odeiam os EUA” [30]. Joe Lonsdale, outro magnata tecnológico (e cofundador da Palantir), impulsionou a Universidade de Austin, a universidade antiwoke que espera produzir em massa “capitalistas que amem os EUA”.

Rastrear as origens dessa ansiedade oligárquica requer revisitar as previsões de Alvin Gouldner sobre a ascensão da “Nova Classe” no final da década de 1970. Gouldner identificou uma “intelligentsia técnica” cujo DNA carregava em si um potencial revolucionário. Embora parecessem dóceis –“apenas desejam desfrutar de suas obsessões opiáceas com enigmas técnicos”–, seu objetivo fundamental era “revolucionar permanentemente a tecnologia”, desestabilizando os fundamentos culturais e a arquitetura social com sua recusa em adorar os deuses do passado.

A aliança que Gouldner vislumbrou – engenheiros racionais unindo forças com intelectuais da cultura para desafiar o capital entrincheirado – constituía sua “Nova Classe”, uma força potencialmente revolucionária contida por seus próprios privilégios. Como demonstraram as décadas seguintes, a utopia de Gouldner nunca se materializou totalmente (embora reacionários como Steve Bannon e Curtis Yarvin, com sua noção conspiratória da “Catedral”, possam discordar). No entanto, o Vale do Silício emergiu como uma estranha exceção. Suas bases – se não sempre seus generais – se impregnavam de ideais contraculturais, defendendo diversidade e hierarquias achatadas. Pesquisadores que exploram as trincheiras tecnológicas documentaram o surgimento de uma “subjetividade pós-neoliberal”, uma consciência alérgica à desigualdade e cada vez mais hostil à teologia empresarial que exigia oferecer a vida privada como sacrifício no altar corporativo [31].

A evidência não é meramente anedótica. Um estudo exaustivo [32], que rastreou doações a entidades políticas em 2023 entre 200 mil empregados de 18 indústrias, revelou que os trabalhadores tecnológicos se caracterizavam particularmente por sua mentalidade antissistema, só superados em fervor liberal-progressista pelos boêmios das artes e do espetáculo. A fonte dessa radicalidade reside precisamente no que Gouldner depositava sua fé: o que ele chamou de “cultura do discurso crítico” inerente ao trabalho técnico [33]. Assim, os pesquisadores descobriram que os empregados não técnicos das mesmas empresas não exibiam essa disposição rebelde, confirmando que é a própria programação, e não apenas a proximidade com mesas de pingue-pongue, que contribui para sua mentalidade dissidente.

O mais revelador desse estudo era a profunda lacuna entre os trabalhadores tecnológicos liberais e seus chefes de direita: uma brecha mais ampla do que em qualquer outra indústria, exceto em duas. Essa lacuna era uma bomba-relógio e explodiu no início do primeiro governo de Donald Trump. Motivados por políticas mal executadas, mas agressivas – em relação a imigração, raça e guerra – os empregados do Vale do Silício passaram de digitadores obedientes a dissidentes digitais.

Impulsionados pelas redes sociais e pelas crescentes tensões raciais após o assassinato de George Floyd por policiais, os trabalhadores tecnológicos surgiram como um desafio inesperado. Os oligarcas foram emboscados internamente: suas legiões de tendência progressista recusavam-se subitamente a colocar seu talento técnico a serviço das máquinas de guerra do Pentágono [34] ou das ordens de deportação do Immigration and Customs Enforcement (ICE) [35]. Essas rebeliões – no Google, Microsoft e Amazon – ameaçaram não apenas contratos, mas o próprio pacto que unia o Vale do Silício ao complexo industrial-militar.

O segundo front da rebelião – a consciência climática – surgiu com fervor evangélico quando os funcionários da Amazon apresentaram seu manifesto verde, declarando-se capazes de “expandir as fronteiras do possível” para a salvação do planeta [36]. Para os oligarcas, essa dupla rebelião contra o militarismo e a favor do ambientalismo – sem mencionar outros problemas, como os critérios ESG – representava um tumor maligno a ser rapidamente extirpado.

Incapazes de reprogramar sua força de trabalho por meios diretos, os intelectuais oligarcas do Vale do Silício adotaram uma solução mais elegante: condenar a infiltração woke com a devoção de caçadores de bruxas medievais, enquanto ocultavam a segurança nacional atrás da retórica do dever patriótico.

Karp, após ter coroado o woke como “o risco fundamental para Palantir e os EUA”, agora exigia lealdade geopolítica de seus empregados assalariados. Devem apoiar Israel e se opor à China [37]; quem não concordar, tem a liberdade de procurar emprego em outro lugar. Como disse à sua audiência em Davos em 2023: “Queremos [funcionários] que desejem estar do lado do Ocidente. Podem não concordar com isso, benditos sejam, mas não trabalhem aqui” [38]. Recentemente, Andreessen até confidenciou ao Times que não era raro suspeitar que alguns funcionários ingressassem em empresas tecnológicas com o objetivo explícito de destruí-las por dentro [39].

A estratégia por trás de todas essas declarações é brutalmente simples: realinhar a intelligentsia tecnológica com o poder do velho dinheiro, depurando suas fileiras de pensamento subversivo. O sonho de Gouldner de uma aliança técnico-cultural se quebrou, destroçado por telegramas de demissão, zombarias à consciência social como fraqueza e paranoia patriótica sobre a concorrência chinesa.

Os intelectuais oligarcas emergiram como uma entidade social estável e coerente, como subproduto dessa batalha pela hegemonia. E certamente não se retirarão nem depois de esmagarem seus inimigos woke e defensores de critérios ESG. Chegam à Washington de Trump não como convidados, mas como arquitetos. Sua máquina de distorção da realidade – a hidráulica do dinheiro, o domínio das plataformas, as burocracias que se ajoelham para transformar a fantasia privada em políticas públicas – exerce uma força sem precedentes. Carnegie e Rockefeller inspiravam respeito, mas não possuíam este arsenal letal: o megafone das redes sociais, a aura de celebridade, a motosserra do capital de risco, a chave mestra da Ala Oeste da Casa Branca. Ao reescrever regulamentos, canalizar subsídios e recalibrar expectativas públicas, os intelectuais oligarcas transmagram sonhos febris – feudos de blockchain, propriedades em Marte – em futuros aparentemente plausíveis.

Felizmente, o que parece a fortaleza monolítica do poder tecno-oligárquico oculta falhas estruturais invisíveis para observadores devotos. Sua aparente capacidade de distorcer a realidade à vontade se enfraquece paradoxalmente ao construir câmaras de eco que asfixiam o essencial espírito crítico, ao mesmo tempo em que celebram a liberdade de expressão.

Divorciados do toque cáustico dos fatos sem adornos, esses pontífices do Vale do Silício perdem seus instrumentos de navegação. E em um cenário já saturado de culto aos fundadores, o contato com a verdade sem filtros torna-se cada vez mais escasso. (Não contem com hagiógrafos da corte como Walter Isaacson [40] para contá-la!).

Esta é uma das muitas maneiras pelas quais a política difere radicalmente dos negócios. O capitalismo de risco padrão ainda enfrenta o frio veredicto do mercado. Os investidores que alçaram a WeWork como o futuro do trabalho viram como a pandemia estourou sua bolha. O mercado, por mais defeituoso que seja, costuma testar hipóteses de investimento.

Mas o poder oligárquico oferece uma tentação ainda mais sombria: por que ajustar previsões à realidade quando se pode manipular a realidade para validá-las? Quando Andreessen Horowitz sentencia que as criptomoedas são as inevitáveis sucessoras do sistema bancário, o próximo passo não é adaptação, mas ativação: influenciar o governo Trump para transformar a profecia em política. A colisão entre fantasias de capital de risco e fatos obstinados torna-se evitável quando se controlam os mecanismos para reconfigurar os próprios fatos. Esta é, portanto, a tática final: os intelectuais oligarcas reconfigurando legislação, instituições e expectativas culturais até que profecia e realidade se fundam em uma só alucinação (cortesia do ChatGPT, é claro).

A realidade, no entanto, mantém seus limiares críticos, uma lição que os burocratas soviéticos aprenderam quando suas ficções cuidadosamente construídas colidiram com as limitações materiais. O Partido Comunista Chinês, mais astuto em seus métodos, construiu sistemas de coleta de informações em vários níveis – fóruns digitais, funcionários locais, ONGs autorizadas – que fornecem inteligência crucial sobre distúrbios potenciais.

Os intelectuais oligarcas demonstram precisamente o instinto oposto: seguem o caminho soviético. O aparato doge de Musk buscou transformar os funcionários restantes em manequins que assentem, enquanto sua coorte caça dissidentes em plataformas digitais com eficiência algorítmica. Ao optar por negar a realidade ao estilo soviético em vez de monitorá-la ao estilo chinês, criaram câmaras de eco que, em última instância, acabarão por fragilizar seus grandiosos projetos.

A ironia é profunda: esses homens que veem comunistas à espreita por toda parte estão prestes a aperfeiçoar o pecado capital da tecnocracia soviética, confundindo seus elegantes modelos com a realidade indomável que pretendem domesticar.

Não deveria nos surpreender: quando os intelectuais oligarcas se apoderam do aparato mais poderoso da história, transformam-se, inevitavelmente, em apparatchiks, desta vez passando férias nas tendas improvisadas do Burning Man [41] em vez dos sanatórios de luxo da Crimeia. Elon Musk pode ter começado como um Henry Ford, mas terminará como um Leonid Brejnev.

Notas

[1] B. Srinivasan: The Network State, disponível aqui aqui.

[2] Joe Quirk y Patri Friedman: La colonización del mar, Innisfree, Londres, 2017.

[3] Gil Durán: "The Tech Baron Seeking to Purge San Francisco of ‘Blues’" en The New Republic, 26/4/2024.

[4] J. Quirk: "Peter Thiel Speaks for 6 Minutes about Seasteading" en The Seasteding Institute, 25/9/2018, disponible en www.seasteading.org/peter-thiel-speaks-about-seasteading/.

[5] Pranav Dixit: "‘AI Will Impact Geopolitical Balance’: Sam Altman Pitches iaea-Like Body for ai Regulation on Bill Gates’ Podcast" en Business Today, 12/1/2024; "Openai ceo Says Possible to Get Regulation Wrong, but Should not Fear It" en Reuters, 25/9/2023.

[6] S. Altman: "Moore’s Law for Everything" en moores.samaltman.com, 16/3/2021.

[7] Erin Griffith y David Yaffe-Bellany: "How Crypto Insiders Turned ‘Debanking’ Into a Political Storm" en The New York Times, 10/12/2024.

[8.
Thomas Moore: "World’s Richest Men Elon Musk and Jeff Bezos Heading for Space Showdown" en Sky News, 17/1/2025.

[9] Keith Speights: "Billionaires Bill Gates, Jeff Bezos, and Sam Altman Are Investing in Nuclear Energy Hand Over Fist. Should You?" en Nasdaq, 11/11/2024.

[10] E. Schmidt: "Ukraine Is Losing the Drone War" en Foreign Affairs, 22/1/2024.

[11] Organización creada en 1948 por la Douglas Aircraft Company para ofrecer servicios de investigación y análisis a las Fuerzas Armadas de EEUU [n. del e.].

[12] "Inside West Point: The Future of Technology in Warfare with Mr. Elon Musk" en YouTube de West Point, 5/2/2025, disponible en www.youtube.com/watch?v=uitr09tdmxm.

[13] Elke Schwarz: "The Silicon Valley Venture Capitalists Who Want to ‘Move Fast and Break Things’ in the Defense Industry" en The Conversation, 16/1/2025.

[14] Henry Farrell: "Silicon Valley’s Reading List Reveals Its Political Ambitions" en Bloomberg, 21/2/2025.

[15] A. O. Hirschman: Salida, voz y lealtad. Respuestas al deterioro de empresas, organizaciones y Estados, FCE, Ciudad de México, 1977.

[16] Video disponible en Conservative War Machine: X, 13/3/2025, https://x.com/warmachinerr/status/1900301843496055202.

[17] Raphael Sätter: "Exclusive: doge Staffer ‘Big Balls’ Provided Tech Support to Cybercrime Ring, Records Show" en Reuters, 26/3/2025.

[18] Este artículo fue escrito antes de la sonada salida de Musk del gobierno [n. del e.].

[19] Eloise Barry: "Why Tesla ceo Elon Musk Is Calling esg a ‘Scam’" en Time, 25/5/202.

[20] "ESG Investing Is ‘A Complete Fraud’, Says Venture Capitalist Chamath Palihapitiya" en CNBC, 26/2/2020, disponible en www.cnbc.com/video/2020/02/26/chamath-palihapitiya-esg-investing-complete-fraud.html.

[21] Melia Russell: "Melia Marc Andreessen Is Getting Raked Over the Coals for Calling Social Responsibility the ‘Enemy’" en Business Insider, 17/10/2023.

[22] "Peter Thiel Eviscerates the esg Movement", video en Balaji Srinivasan Clips, 22/10/2022, YouTube, disponible en www.youtube.com/watch?v=_8pesai3nh4.

[23] Ver Hannah Levontova: "How ‘Woke Capitalism’ Became a Right-Wing Obsession" en Mother Jones, 1/2-2024. Ramaswamy fue precandidato a la Presidencia de EEUU en las elecciones de 2024 pero se retiró en enero de 2024, luego de quedar en cuarto lugar en el caucus de Iowa [n. del e.].

[24] M. Andreessen y Ben Horowitz: The Little Tech Agenda, 5/7/2024, disponible en https://a16z.com/the-little-tech-agenda/.

[25] Luke Broadwater: "Trump’s ‘Flood the Zone’ Strategy Leaves Opponents Gasping in Outrage" en The New York Times, 28/6/2025.

[26] M. Andreessen: The Techno-Optimist Manifesto, 16/10/2023, disponible en https://a16z.com/the-techno-optimist-manifesto/.

[27] Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) fue el impulsor del movimiento futurista, la primera vanguardia italiana del novecento, que sirvió como base para el fascismo [n. del e.].

[28] Anthony Robledo: "Musk Says Estranged Child’s Gender-Affirming Care Sparked Fight against ‘Woke Mind Virus’" en USA Today, 22/7/2024.

[29] Ben Werdmuller: "Palantir’s Earnings Call Rhetoric Is Terrifying" en WERDI/O, 8/5/2024.

[30] Ross Douthat: "How Democrats Drove Silicon Valley Into Trump’s Arms" en The New York Times, 17/1/2025.

[31] Robert Dorschel: "A New Middle-Class Fraction with a Distinct Subjectivity: Tech Workers and the Transformation of the Entrepreneurial Self" en The Sociological Review vol. 70 No 6, 2022.

[32] Niels Selling y Pontus Strimling: "Liberal and Anti-Establishment: An Exploration of the Political Ideologies of American Tech Workers" en The Sociological Review vol. 71 No 6, 11/2023.

[33] Alvin Gouldner on the New Class & the Culture of Critical Discourse, disponible en www.autodidactproject.org/other/gouldner2.html.

[34] Daisuke Wakabayashi y Scott Shane: "Google Will Not Renew Pentagon Contract That Upset Employees" en The New York Times, 1/6/2018.

[35] Sheera Frenkel: "Microsoft Employees Protest Work With ice, as Tech Industry Mobilizes Over Immigration" en The New York Times, 19/6/2018.

[36] James F. Peltz: "Jeff Bezos Expanded Amazon’s Climate Change Pledge. His Workers Want More" en Los Angeles Times, 20/9/2019.

[37] Alexander C. Karp y Nicholas W. Zamiska: "Why Silicon Valley Lost Its Patriotism" en The Atlantic, 12/2/2025.

[38] Ryan Browne: "Palantir ceo Tells Tech Workers Who Don’t Like the Company’s Military Deals, ‘Don’t Work Here’" en CNBC, 18/1/2023.

[39] R. Douthat: ob. cit.

[40] Foi presidente e CEO da CNN e editor executivo da Time Magazine. Também ocupou cargos públicos. Escreveu biografias autorizadas de Steve Jobs e Elon Musk, entre outros livros.

[41] Festival anual que acontece na “cidade” de Black Rock, Nevada, e que dura apenas durante o evento. O encontro se baseia em dez princípios: inclusão radical, doações, desmercantilização, autoexpressão radical, autossuficiência radical, esforço comunitário, responsabilidade cívica, imediatismo, participação e não deixar rastros.

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