24 Julho 2024
Jeffrey Winters fala como um acadêmico, mas muitos poderiam considerar suas ideias subversivas ou revolucionárias. E este professor de Ciência Política da Universidade de Northwestern (Illinois, EUA) dedicou 25 anos ao estudo de um tema complexo: o poder da riqueza e como se transforma em influência política.
A entrevista é de Ángel Bermúdez, publicada por BBC Mundo, 17-07-2024. A tradução é do Cepat.
Desse esforço nasceu o seu livro Oligarchi (Oligarquia), no qual não só traça a história do poder e do privilégio das oligarquias desde a Antiguidade até hoje, mas também desenvolve uma teoria original sobre o assunto.
Nesta conversa com a BBC Mundo a propósito da publicação em espanhol desse texto, o jornalista Ángel Bermúdez conversa com Winters sobre algumas de suas abordagens mais polêmicas, como, por exemplo, sua afirmação de que todas as democracias liberais da atualidade são, ao mesmo tempo, oligarquias.
Aborda também as razões pelas quais considera que a participação democrática se tornou ineficaz no confronto com o poder das oligarquias, bem como o paradoxo de que as sociedades democráticas – que consagram a igualdade política – sejam atualmente “incrivelmente desiguais do ponto de vista econômico”.
Do que falamos quando falamos da oligarquia?
A oligarquia refere-se ao poder político da riqueza. Desde a Antiguidade, em Atenas e Roma, quando a palavra oligarquia apareceu pela primeira vez, sempre se referia ao poder daquelas poucas pessoas que possuem enormes riquezas.
O poder político pode assumir muitas formas como, por exemplo, ocupar cargos políticos ou controlar capacidades coercivas, como um caudilho militar, mas uma das fontes mais importantes de poder político ao longo da história tem sido a posse de uma riqueza enorme e, hoje, temos oligarcas da mesma maneira que os tínhamos no mundo antigo.
Por que deveríamos nos preocupar com a oligarquia agora?
Deveríamos estar preocupados porque todos os países democráticos do mundo são também simultaneamente oligarquias. São uma mistura das duas.
Os países que permitem a concorrência política entre partidos e gozam do direito de voto também têm um pequeno número de pessoas que utilizam o enorme poder da sua riqueza para financiar candidatos mesmo antes de todos os cidadãos comparecerem às urnas. Geralmente, o poder do dinheiro determina primeiro quem é um candidato viável.
Uma segunda razão é porque, especialmente nas democracias de hoje, temos uma desigualdade maior do que nunca na história. Isto é irônico porque normalmente pensamos na desigualdade como um problema nas sociedades não democráticas, mas, na verdade, as democracias liberais são incrivelmente desiguais do ponto de vista econômico.
Uma razão para isto é que nos últimos 250 anos os oligarcas usaram o seu poder para garantir que a democracia não tornasse a sociedade mais igualitária em termos econômicos.
Assim, a explosão de desigualdade que vemos no mundo e a explosão de raiva que vemos nos cidadãos está relacionada com o fato de a oligarquia ser mais forte hoje nas democracias do que tem sido em décadas.
Como é possível que a democracia não consiga resolver este problema de desigualdade devido à oligarquia?
A democracia tem uma capacidade limitada para resolver esta questão porque as leis já foram escritas pelas próprias democracias para favorecer a capacidade dos oligarcas de usarem o poder da sua riqueza.
Dou um exemplo. Nos Estados Unidos tivemos um caso muito famoso em 2010 chamado Citizens United, em que o Supremo Tribunal equiparou o uso do dinheiro na política ao exercício da liberdade de expressão. Isso abriu as comportas à utilização do dinheiro para influenciar o sistema político.
E hoje nos Estados Unidos, devido à existência de comitês especiais de ação política, não só a quantidade de dinheiro que os oligarcas podem usar é praticamente ilimitada, mas também é em grande parte secreta, porque não sabemos exatamente quem está influenciando na política, senão muito depois de o dinheiro ter sido usado.
Quando se fala de um pequeno grupo de pessoas muito ricas que usam o seu poder e riqueza, a maioria das pessoas pensaria nas elites. Como você diferencia elites e oligarcas?
A elite também se refere a uma minoria de pessoas que têm um enorme poder, mas que se baseia em outras coisas que não a riqueza. Por exemplo, alguém como Barack Obama ocupou cargos políticos quando era presidente, portanto era membro da elite, mas não era rico. Alguém como Gandhi era membro da elite porque era tremendamente poderoso, mas não tinha riqueza. Alguém como Oprah Winfrey pode ter um enorme poder por ser uma celebridade.
Como se explica que nas democracias liberais, nas quais as eleições são livres e todos os cidadãos têm direito de votar, os oligarcas possam ter tanta influência?
Voltemos ao exemplo dos Estados Unidos: muito antes de alguém poder votar numa eleição primária ou numa eleição para um cargo público, temos uma coisa chamada primárias da riqueza.
As primárias da riqueza são aquelas em que o candidato que quer concorrer primeiro vai até todas as pessoas ricas e diz: “O que vocês querem? Deixe-me ter certeza de que as políticas irão favorecê-las”. Então os ricos decidem quem irão apoiar.
Normalmente, as primárias para os ricos começam um ou dois anos antes de qualquer tipo de campanha para cargos públicos. E se você quer concorrer, mas não consegue atrair o dinheiro dos ricos, na maioria das vezes não consegue ser competitivo.
Assim, o papel do poder da riqueza é limitar os candidatos a um número muito pequeno de pessoas que já são aceitáveis para os oligarcas. Depois de os oligarcas terem eliminado os outros candidatos, abrem então a possibilidade para o povo decidir entre os candidatos A, B e C, todos eles completamente palatáveis para os oligarcas.
Deixe-me ser claro: os cidadãos têm a possibilidade de escolher? São livres? Podem votar livremente? Sim, mas temos de compreender que a combinação de oligarquia e democracia limita severamente as opções e políticas que são possíveis porque procuram garantir que a desigualdade, a desigualdade extrema e a concentração de riqueza se mantenham.
Por vezes este processo fracassa e a democracia produz candidatos ou partidos que não são palatáveis para os oligarcas. Quando isso acontece, geralmente é a própria democracia que entra em colapso, porque os oligarcas consideram isso inaceitável.
Um exemplo muito claro foi o caso de Allende no Chile. A democracia produziu um partido e um candidato que eram completamente inaceitáveis para as empresas e os ricos, e o resultado foi o assassinato e o fim da democracia. E isso aconteceu em muitos lugares ao redor do mundo.
Portanto, uma das coisas que devemos compreender sobre a relação entre oligarquia e democracia é que a democracia é possível desde que a oligarquia não seja ameaçada.
No seu livro afirma que os oligarcas tiveram sucesso durante séculos em fazer as pessoas acreditarem que é um erro tentar uma redistribuição significativa da riqueza...
Quando a democracia estava nascendo, os oligarcas estavam extremamente preocupados com a possibilidade de que isso provocasse uma redistribuição da riqueza. Tinham muito medo e, na verdade, não queriam que a democracia se estabelecesse. E acontece que, de fato, a democracia foi estruturada de uma forma que torna extremamente difícil a redistribuição da riqueza.
Eles também tentaram usar o poder da riqueza para moldar as ideias na sociedade. Muitos oligarcas em todo o mundo financiam centros de pesquisa, institutos e departamentos de economia nas principais universidades para espalhar a ideia de que sem oligarcas e sem riqueza concentrada, não serão criados empregos e as economias entrarão em colapso.
Eles também apresentaram a ideia de que os oligarcas são realmente benéficos para a sociedade porque são filantropos e doam dinheiro para medicamentos e outras causas que apoiam.
O que nunca é dito é que a principal coisa que os oligarcas fazem com o seu dinheiro é defender a sua própria riqueza. A partir das décadas de 1950 e 1960, surgiu o que chamo no livro de “indústria da defesa da riqueza”, que é uma indústria multibilionária composta por advogados, contadores, lobistas e profissionais de gestão de fortunas, cuja única função é garantir que os oligarcas não tenham que pagar impostos.
Existem duas maneiras pelas quais a desigualdade aumenta. Uma ocorre no ponto de produção, isto é, na relação entre as pessoas que trabalham e os proprietários dos locais de trabalho.
A outra forma como a desigualdade é afetada é através da política governamental de redistribuição. É por isso que a maioria das sociedades tenta lidar com a desigualdade através de impostos progressivos. Os pobres pagam uma percentagem mais baixa de impostos, enquanto os ricos deveriam pagar mais.
A função da indústria da defesa da riqueza é garantir que os impostos progressivos não sejam implantados. Por exemplo, pessoas como Warren Buffett, Elon Musk ou Jeff Bezos pagam uma taxa de imposto significativamente mais baixa do que o cidadão médio dos EUA.
Por quê? Primeiro, porque a indústria de defesa da riqueza molda a legislação, ajudando a redigir leis no Congresso para deixar lacunas legais para os ricos.
Em segundo lugar, a própria indústria da defesa da riqueza movimenta o dinheiro por todo o planeta para jurisdições secretas, fideicomissos ou paraísos fiscais para tornar impossível que agências como IRS [o serviço de receita do Governo dos Estados Unidos] possam saber onde está a riqueza.
Finalmente, a própria indústria da defesa da riqueza pressiona o Congresso para cortar o financiamento do IRS, limitando as suas capacidades de investigação para que não consiga encontrar o dinheiro, perseguir ou investigar os oligarcas.
No seu livro menciona que a oligarquia representa o 1% do 1% e que, quando mobilizam seu poder para proteger suas fortunas, quem acaba pagando mais impostos são os um pouco menos ricos e a classe média. Pode explicar isso?
No livro defino um oligarca como uma pessoa que atinge um nível econômico que lhe permite pagar pela indústria de defesa da riqueza. Ou seja, ele usa sua riqueza para defender a riqueza.
Nos Estados Unidos, por exemplo, existe o grupo que chamo de oligarcas e o grupo que está abaixo deles são os ricos (mass affluent). Este termo é aplicado pela própria indústria de defesa da riqueza para se referir a pessoas que, na realidade, não são ricas o suficiente para poderem comprar os seus serviços [estima-se que estas pessoas tenham ativos líquidos entre 100.000 e 1 milhão de dólares]. E como eles sabem disso? Porque já tentaram convertê-los em clientes, mas não tinham dinheiro para custear os seus serviços.
Dou um exemplo desses serviços. Nos Estados Unidos existe uma coisa chamada carta de opinião fiscal. É um documento elaborado por um escritório de advocacia que conta com especialistas tributários que, a partir da análise da legislação, indicam que você não precisa pagar determinados tributos.
Essa carta normalmente custa entre 1 milhão e 3 milhões de dólares, mas pode economizar entre 30 milhões e 300 milhões de dólares em impostos em um ano. A maioria das pessoas não pode obter a carta de opinião fiscal porque custa mais do que ganha.
A propósito, se você receber uma carta de opinião fiscal, significa que os advogados fizeram uma interpretação do código tributário dos Estados Unidos que tem mais de 80.000 páginas. Nem mesmo o IRS entende isso!
Como se tornou tão complexo? A resposta é que a indústria de defesa da riqueza fez isto deliberadamente desta forma para que os seus clientes pudessem interpretar a lei, em vez de terem de segui-la.
E isso também acontece na Europa Ocidental?
Com certeza. Uma das coisas interessantes sobre a Europa é que muitas vezes pensamos que os países escandinavos têm mais socialismo e mais bem-estar. Mas os oligarcas da Suécia, da Finlândia ou da Dinamarca também não pagam quase nada em impostos.
Então, como financiam o bem-estar dos pobres nos seus países, o acesso aos cuidados de saúde, à educação, etc.? A resposta é que eles usam impostos regressivos. Basicamente, estes são impostos pagos pela classe média e pelas pessoas logo acima dela, os ricos. Eles pagam todos os impostos, mas os oligarcas não pagam.
Você disse que embora muitas vezes se pense que a democracia representativa implica a superação da oligarquia, esta ideia não é verdadeira. E que a oligarquia não está apenas presente nas democracias modernas, mas também que a participação democrática habitual não é um antídoto eficaz contra ela. Por quê?
A democracia e a oligarquia não são [um jogo] de soma zero. A razão pela qual temos oligarquia não é porque não temos democracia suficiente. A razão pela qual temos a oligarquia é o poder da riqueza concentrada. Assim, independentemente de o país ser autoritário ou democrático, a presença dos oligarcas é determinada por duas coisas: a concentração do poder da riqueza e a capacidade de converter esse poder da riqueza em influência política.
A forma do poder da riqueza é muito importante. Se retrocedermos 1.000 anos na história, talvez eu fosse muito rico porque tinha 10.000 cabeças de gado, mas não era fácil para mim converter o meu gado em poder político.
Mas se avançarmos para os séculos XX e XXI, teremos uma explosão de riqueza financeira que é muito mais facilmente convertida em influência política do que se eu possuísse terras ou minas. Assim, na história, a forma do poder da riqueza mudou. E hoje estamos na maior potência de riqueza do mundo. Esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto é que se compararmos o poder dos oligarcas nos Estados Unidos e na China descobriremos que é muito diferente. Sob o Partido Comunista, controlado por Xi Jinping na China, existem centenas, senão milhares, de bilionários. Mas para esses oligarcas usar o poder da sua riqueza para controlar o governo é muito mais arriscado e perigoso, em comparação com os Estados Unidos.
Xi Jinping demonstrou isso com Jack Ma [cofundador do Alibaba]. Ele falou abertamente e irritou Xi Jinping e de repente desapareceu da vista do público e perdeu o controle da sua empresa. A China é um dos poucos lugares no mundo onde, se você for um oligarca, poderá ir para a prisão ou ser executado.
Em termos práticos, como é que a existência da oligarquia afeta a vida dos restantes 99,9%?
A existência da oligarquia significa que o poder de tornar a sociedade cada vez mais desigual é ilimitado. O principal interesse dos oligarcas é concentrar cada vez mais riqueza nas suas próprias mãos. Quando comecei a estudar os oligarcas, há cerca de 25 anos, eram necessários centenas e centenas de oligarcas para igualar a riqueza dos 50% mais pobres do mundo. Hoje, cerca de 50 oligarcas têm tanta riqueza quanto os 4 bilhões de pessoas mais pobres do mundo.
Nos Estados Unidos, há 25 anos, eram necessários cerca de 30 oligarcas para igualar a riqueza total da metade mais pobre do país. Hoje, são apenas três pessoas. Que impacto isso tem? Em primeiro lugar, a esperança de vida das pessoas ricas em comparação com as pessoas que não são ricas é muito diferente. Devido à crescente desigualdade no mundo, milhões de pessoas morrem 5 a 10 anos mais cedo do que morreriam se a desigualdade fosse menor.
Outra diferença? Os filhos saem de casa muito mais tarde. Estão atrasando a hora de casar, de comprar a primeira casa, de ter o primeiro filho e têm cada vez menos. Tudo isto acontece porque a sua situação econômica é muito mais precária. As suas vidas estão mais em risco devido à crescente desigualdade.
E, à medida que a desigualdade aumenta, aumenta a sua disposição de considerar atores políticos mais extremistas, porque a sua esperança no futuro diminui. E em todo o mundo vemos que mesmo os jovens, em particular, estão mais abertos a figuras políticas muito extremistas. Tudo isto é resultado do sucesso dos oligarcas em aumentar a desigualdade em todo o mundo.
Diria, então, que os oligarcas e o sistema de proteção das rendas criam desigualdade e que a desigualdade extrema é uma ameaça à democracia?
Com toda certeza.
O que pode ser feito a este respeito?
Vimos no passado que países de todo o mundo têm a capacidade de limitar e reduzir o poder oligárquico, embora não necessariamente a de eliminá-lo totalmente.
Um exemplo simples? Os controles que podem ser impostos ao uso do dinheiro na política. Estas são medidas que já foram utilizadas antes em democracias de todo o mundo e vimos que são possíveis. Mas para isso é preciso que haja uma mobilização mais forte da sociedade em torno destas questões.
Outra coisa que pode ser feita é algo que está agora sendo seriamente discutido entre os Estados Unidos, a União Europeia, o Brasil e as Nações Unidas: a possibilidade de um imposto global sobre a riqueza. E por que isto é importante? Porque se os países se coordenarem nesta questão da tributação da riqueza, isso significa que os oligarcas não podem usar a geografia global contra cada país.
Vimos também que quando os cidadãos comuns se organizam e mobilizam, especialmente através de coisas como os sindicatos, o seu poder político para desafiar os oligarcas aumenta significativamente.
Portanto, há coisas que podem ser feitas, mas devem ser feitas de uma forma que tenha consciência do problema e responda diretamente a ele. Não devemos ver o poder da riqueza e do poder oligárquico como inevitável. Existem coisas muito concretas que podem ser feitas.
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“Durante os últimos 250 anos, os oligarcas usaram o seu poder para garantir que a democracia não tornasse a sociedade mais igualitária”. Entrevista com Jeffrey Winters - Instituto Humanitas Unisinos - IHU