04 Fevereiro 2022
“Não à toa, em um ensaio publicado apenas um ano antes daquele de Schmitt, em 1921, Benjamin havia falado do capitalismo como uma religião sem culto. Dessa forma, ao lado da teologia política se coloca, sem contradizê-la, uma teologia econômica ainda mais capilar - como uma força impessoal que governa os homens a partir dos grandes centros financeiros, não muito diferentes da economia providencial de que falavam os Padres da Igreja”, escreve Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado por La Repubblica, 01-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "longe de pôr fim a essas analogias inquietantes, a crise pandêmica parece tê-las reforçado. Não só pela confiança cotidiana, também neste caso não muito distante de uma fé que nos é exigida para com a ciência, com virologistas e epidemiologistas no lugar dos sacerdotes. Mas também pela natureza excepcional dos procedimentos de contenção do vírus, por vezes levados ao limite da práxis democrática".
"Para que o estado de emergência em que vivemos há demasiado tempo não se transforme num estado de exceção permanente, deve permanecer limitado nas formas e nos tempos previstos pela Constituição. Caso contrário, os demônios da teologia política poderiam voltar a galgar o palco contemporâneo", alerta o filósofo italiano.
“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. É a fulminante abertura de um dos textos mais famosos publicados há exatamente cem anos. Trata-se da Teologia política de Carl Schmitt, o mais brilhante e sulfuroso jurista alemão do século passado. Arguto intérprete da República de Weimar, aderiu ao nacional-socialismo, tornando-se um de seus principais teóricos. Depois, no final da guerra, privado do ensinamento universitário, dedicou-se a escrever livros. No entanto, apesar da pesada derrota, continuou a exercer uma vasta influência no pensamento filosófico, político e jurídico não apenas conservador, mas também, e talvez acima de tudo, de esquerda.
Embora altamente controversa, a sua obra tem estado no centro de um debate cada vez mais intenso, mesmo em âmbitos distantes do dele. Basta ler a recente antologia, publicada pela Quodlibet, Critica della teologia politica. Voci ebraiche su Carl Schmitt (Crítica da teologia políticas. Vozes judaicas sobre Carl Schmitt, em tradução livre), organizada por G. Fazio e F. Lijoi, que inclui textos de Walter Benjamin, Leo Strauss, Hans Kelsen, Karl Löwith e Jacob Taubes. Embora divididos quanto ao juízo, todos identificam na Teologia política de Schmitt um texto essencial, ao qual é preciso sempre retornar com um olhar diferente.
Por quê? O que torna aquelas páginas um dos mais poderosos incunábulos de toda a filosofia política do século XX? E o que ainda hoje nos dizem sobre a origem e o destino da política? Em primeiro lugar, vamos relembrar a tese central. Por teologia política não se deve entender, como muitos fizeram, o uso político da religião nem o fundamento religioso da política, mas a analogia estrutural entre conceitos políticos e dogmas teológicos.
Como expressa o próprio autor, "todos os conceitos mais incisivos da doutrina moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados". No centro dessa correspondência não está tanto a relação entre soberano absoluto e Deus todo-poderoso, mas a relação entre estado de exceção na política e milagre na teologia cristã. A soberania é definida precisamente pela decisão em e sobre o estado de exceção. A legitimidade não se reduz à legalidade, mas a excede por todos os lados, ameaçando desestabilizá-la.
Ao contrário daqueles - como Kelsen – que identificam a soberania estatal com o ordenamento normativo, para Schmitt o poder de declarar o estado de exceção revela quem de fato comanda. Daí o caráter altamente dramático de sua concepção: o perfil mais agudo do político se manifesta não nos períodos de normalidade, mas naqueles de crises excepcionais.
Isso explica a extrema atualidade da teologia política de Schmitt. Por mais que sua ideologia possa ser contestada, não pode ser negada sua implicação com uma condição, como a nossa, que há pelo menos vinte anos nos arrasta de uma crise para outra. Mas o que - pode-se perguntar - a teologia tem a ver com isso? Essa pergunta teria parecido óbvia nos cinquenta anos que vão do fim da Segunda Guerra Mundial até a última década do século XX, quando a distinção entre a esfera privada da religião e a esfera pública da política parecia ir por conta própria.
Depois, por um lado, a retomada do terrorismo fundamentalista, pelo outro, o contraste global entre comunidades com diferentes religiões mudaram as cartas na mesa. A religião recomeçou a desempenhar um papel público. E a produzir conflitos identitários entre valores contrapostos. A fronteira outrora bastante nítida entre religião e política começou a ficar confusa.
Não só nos EUA - onde a referência à autoridade divina está presente no preâmbulo da Constituição de vários estados - mas também em outros lugares a fé religiosa recomeçou a circular mesmo em sociedades secularizadas, respondendo a uma ampla demanda de sentido. E as pretensões de ingerência da Igreja Católica nas legislações nacionais sobre o início e o fim da vida não reproduzem, aqui na Itália, tensões com o Estado laico que pareciam superadas?
Mas duas outras dinâmicas entrelaçadas entre si reportam-se ao léxico teológico-político. De um lado a crise econômica, do outro aquela pandêmica. Quanto à primeira, não escapou aos analistas mais atentos a analogia entre a dívida, aparentemente inextinguível dos Países e aquela religiosa, igualmente eterna, dos que creem em relação a Deus. Não por acaso, em alemão, dívida e culpa são chamadas de Schuld. E a confiança em relação aos mercados não remete a uma espécie de fé?
Não à toa, em um ensaio publicado apenas um ano antes daquele de Schmitt, em 1921, Benjamin havia falado do capitalismo como uma religião sem culto. Dessa forma, ao lado da teologia política se coloca, sem contradizê-la, uma teologia econômica ainda mais capilar - como uma força impessoal que governa os homens a partir dos grandes centros financeiros, não muito diferentes da economia providencial de que falavam os Padres da Igreja.
Longe de pôr fim a essas analogias inquietantes, a crise pandêmica parece tê-las reforçado. Não só pela confiança cotidiana, também neste caso não muito distante de uma fé que nos é exigida para com a ciência, com virologistas e epidemiologistas no lugar dos sacerdotes. Mas também pela natureza excepcional dos procedimentos de contenção do vírus, por vezes levados ao limite da práxis democrática.
Certamente, nunca como hoje, a centralidade da ciência tem uma motivação real, e até dramática, no andamento da pandemia. Assim como aqueles procedimentos excepcionais não são impostos por uma vontade soberana interessada em nos controlar, mas por um misto de necessidade e contingência que parece não deixar outro caminho, se não se quer tirar da política sua tarefa primordial, que é a da defesa da vida.
No entanto, algo das palavras de Schmitt apita em nossos ouvidos como um aviso sinistro. Para que o estado de emergência em que vivemos há demasiado tempo não se transforme num estado de exceção permanente, deve permanecer limitado nas formas e nos tempos previstos pela Constituição. Caso contrário, os demônios da teologia política poderiam voltar a galgar o palco contemporâneo.
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A emergência torna-se o soberano. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU