29 Novembro 2023
Do lado de fora da Biblioteca Universitária de Gênova a fila é longa: centenas de pessoas esperam o encontro com o historiador israelense Ilan Pappè, organizado no último sábado pelo Bds Genova, Assopace e edições Tamu. Setecentos conseguem, os outros ficam de fora. Um encontro ansiosamente aguardado com um dos principais expoentes da academia israelense e de uma contra-narrativa baseada em pesquisas históricas inapeláveis.
A entrevista é de Chiara Cruciati, publicada por il manifesto, 28-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A história ensina que a descolonização não é um processo simples para o colonizador – assim Pappé encerra o longo debate – Perde os seus privilégios, deve devolver as terras ocupadas, desistir da ideia de um Estado-nação monoétnico. Os pacifistas israelenses pensam que um dia vão acordar num país igualitário e democrático. Não será tão simples, os processos de descolonização são dolorosos: a paz começa quando o colonizador aceita derrubar as suas próprias instituições, a constituição, as leis, a distribuição de recursos. O dia em que terminará a colonização da Palestina, alguns israelenses preferirão ir embora, outros permanecerão num território livre onde não são mais os carcereiros de ninguém. Quanto mais cedo os israelenses entenderem isso, menos esse processo será sangrento. Em todo caso, a história está sempre do lado dos oprimidos, todo o colonialismo está destinado é acabar."
Discutimos à margem da iniciativa com o professor Pappè.
Por anos falou-se da "gazaficação" da Cisjordânia, do cerco a Gaza como modelo de gestão das ilhas palestinianas em que Israel dividiu a West Bank. Agora vai acontecer o contrário? Gaza como a Cisjordânia?
Creio que nem mesmo Israel ainda tenha um plano. Existem várias opções. Uma delas é a criação em Gaza de uma espécie de Área A- ou B+: a ideia dos “moderados”, como Gantz e Gallant, é confiar um pedaço da Faixa à Autoridade Nacional Palestina e criar uma zona tampão de 5 a 7 quilômetros. Uma ideia ridícula: na sua parte mais larga, Gaza tem apenas 12 quilômetros. A outra opção, aquela da ultradireita no governo, é uma limpeza étnica mais ampla possível, expulsando os palestinos para o Egito ou, de qualquer forma, para o sul de Gaza e levando os colonos de volta para o norte. É muito cedo para dizer o que irá acontecer, pois é muito cedo para dizer como o mundo reagirá, se haverá uma guerra no norte com o Líbano, se isso provocará uma Intifada na Cisjordânia.
Depois de ter negado a Nakba durante 75 anos, hoje o governo israelense a invoca, fala de Nakba 2023, de necessidade histórica de expulsão. De onde deriva a perda de qualquer freio, até mesmo verbal, em identificar a solução na limpeza étnica?
Aqueles que negavam a Nakba eram o centro e a esquerda. A direita nunca a negou, aliás, orgulhava-se dela.
Portanto, não é surpresa que use esse termo. A outra razão é que Israel trata o 7 de outubro como um evento que mudou tudo, considera que não precisa mais ser prudente no seu discurso racista, ao falar de genocídio e limpeza étnica. Percebe o 7 de outubro como o sinal verde para agir.
O crescimento gradual, mas inexorável da ultradireita israelense nos últimos 30 anos leva a falar de uma evolução do sionismo de matriz religiosa. As declarações de representantes do governo, a começar por Netanyahu, que se referem à Torá para justificar as barbáries e as políticas de Ben Gvir e Smotrich são um exemplo disso. O que é hoje o sionismo? É possível identificar em tal evolução um processo de implosão?
Mesmo antes do 7 de outubro não tínhamos mais nada a ver com o sionismo. Fomos além, rumo a um judaísmo messiânico. Essas pessoas, como os fanáticos islâmicos, acreditam que têm Deus por trás delas.
É um desenvolvimento ideológico que, ultrapassando o sionismo pragmático e liberal, o arrasta consigo.
Hoje estamos diante de uma ideologia judaica messiânica, racista e fundamentalista que não só acredita que a Palestina pertence apenas ao povo judeu (como Netanyahu fez com a lei do Estado-nação de 2018), mas que pensa ter licença moral para matar e expulsar todos os palestinos. É um desenvolvimento ideológico muito perigoso. Antes de 7 de outubro, a sociedade israelense já vivia um confronto aberto entre sionismo laico e sionismo religioso. Esse confronto ressurgirá e demonstrará que é apenas a rejeição dos palestinos que mantém os israelenses unidos. Para o sionismo é o início do seu fim, o que em termos históricos significa um processo de 20 ou 30 anos. Isso vai acontecer porque se trata de uma ideologia colonialista num mundo que agora caminha noutra direção. Se o sionismo tivesse nascido dois ou três séculos atrás, provavelmente teria alcançado o objetivo de eliminar a população indígenas, como aconteceu na Austrália e nos Estados Unidos. Mas apareceu quando o mundo já havia rejeitado o conceito de colonialismo e os palestinos já tinham amadurecido a sua própria identidade nacional.
Qual é a razão da mudança para direita da sociedade israelense após o assassinato de Rabin e o impulso pacifista de um grande segmento da população?
Ser sionistas liberais sempre foi problemático. Você tem que mentir para si mesmo o tempo todo, por que você não pode ser socialista e colonizador ao mesmo tempo. A sociedade cansou, entendeu que tinha que escolher entre ser democrática e ser judia. Escolheu a natureza judaica. Decidiu que a prioridade era afirmar um estado racista em vez de o partilhar com os palestinos. Era inevitável, a consequência lógica do projeto sionista. O Israel de hoje é muito mais autêntico do que aquele dos anos 1990.
O 7 de outubro representou uma ruptura traumática para a sociedade israelense. A questão palestina foi removida, “administrada”, como Netanyahu afirmou várias vezes. Desse choque poderia nascer a consciência da necessidade de uma solução política?
Isso levará tempo. O futuro imediato será marcado pelo ódio e pelo sentimento de vingança. Será difícil falar de solução, quer seja de dois estados ou de um estado. A longo prazo, porém, é possível que Israel compreenda que os palestinos não irão a lugar nenhum e não ficarão em silêncio, não importa o que Tel Aviv faça. Muito dependerá da Europa e dos Estados Unidos: se continuarão a não exercer pressão, será difícil que as vozes mais razoáveis em Israel sejam ouvidas. A sociedade civil não é suficiente, é preciso que os nomes responsáveis pelas decisões políticas mudem. Esse tipo de processo requer tempo, mas é possível que a partir dessa horrenda tragédia, surja algo positivo. Dependerá também dos palestinos se conseguirão unir-se, se a OLP renascerá. Também há diferenças entre eles: quem vive na Cisjordânia quer ver o fim da ocupação e da opressão, pensa menos no Estado único. Quem vive dentro de Israel, ao contrário, quer isso, assim como os refugiados na diáspora, para quem o Estado único significaria o seu retorno.
A campanha duríssima contra Gaza e o desejo declarado de expulsar os palestinos provocou uma reação impressionante nas ruas de todo o mundo e nos países do sul global, em contraste com as posições dos estados ocidentais. Assistimos a uma mudança de paradigma em nível global que terá efeitos a médio e longo prazo?
Estamos assistindo a um processo de globalização da Palestina, uma Palestina global que é composta por sociedades civis, cidadanias, diferentes movimentos como os indígenas, Black Lives Matter, os feminismos, ou seja, todos os movimentos anticoloniais que talvez pouco conhecem sobre a questão palestina, mas que sabem muito bem o que significa opressão. Essa Palestina global deve ser capaz de se opor ao
Israel global, que é, em vez disso, composto por governos ocidentais e indústria militar. Como se pode fazer? Colocando em rede as lutas contra as injustiças ao redor do mundo. Aqui na Itália significa lutar contra o racismo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Deriva messiânica, o sionismo rumo ao seu fim”. Entrevista com Ilan Pappé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU