18 Outubro 2022
Após a gigantesca mobilização que varreu o país em 2019 e 2020, o Chile dá um passo atrás e desperdiça a chance de enterrar de vez o legado de terror e exclusão social deixado pela ditadura militar.
A reportagem é de Juan Ortiz, publicada por Extra Classe, 17-10-2022.
O estudante de Fisioterapia Fabrizio Meirelles estava na casa de um amigo, em Santiago do Chile, quando recebeu a notícia. Naquela noite de 4 de setembro, os resultados do plebiscito apontavam para a rejeição do texto da nova Constituição chilena com quase dois terços dos votos. “Levei um baque forte. A tristeza daquele momento virou um sentimento de desesperança e, ao longo da semana, vi muitos amigos sentirem o mesmo. Choramos juntos”, relata.
Como muitos dos seus colegas de faculdade, Fabrizio esperava que o Chile avançasse rumo a uma educação pública gratuita, como previa o 37º artigo da proposta de Constituição, que foi rejeitada. Atualmente, ele trabalha como entregador para pagar seus estudos na Universidade do Chile.
A derrota veio de forma acachapante: a nova Constituição foi derrotada por 61,86% a 38,13% dos votos. E de virada. Dois anos antes, a população chilena havia escolhido, com 80% de aprovação, a criação de uma nova Carta Magna.
A troca do texto constitucional foi uma das reivindicações do estalido social, a série de mobilizações massivas que varreu o Chile a partir de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram a protestar nas principais cidades do país. “Enfrentamos muitos riscos, muita gente ficou cega por disparos da polícia. Ter conseguido algo tão importante com as mobilizações foi como uma luz, uma promessa de mudança”, lembra Fabrizio.
A Convenção Constitucional foi composta por maioria progressista e, no fim de 2021, o ex-líder estudantil Gabriel Boric venceu a disputa para a presidência. Os ventos pareciam favoráveis às aspirações da esquerda. Era o momento ideal para enterrar o texto criado em 1980, na ditadura de Augusto Pinochet. Porém, a desmoralização do processo constituinte ajudou a alimentar justamente o movimento contrário – o do rechazo.
Desde sua formação, a Assembleia Constituinte foi alvo de críticas. Primeiro, pela demora com as longas discussões sobre o próprio funcionamento da Convenção. E, depois, pelo descrédito em relação à atuação de alguns dos seus representantes que meteram os pés pelas mãos.
Em uma tentativa de expor as desigualdades do sistema de saúde, um dos sete vice-presidentes constituintes, Rodrigo Rojas Vade, resolveu usar como exemplo sua própria luta contra a leucemia. Acabou desmascarado pelo jornal La Tercera, admitiu que não estava com câncer e renunciou. Com o microfone aberto sem saber, o secretário-geral da Convenção, John Smok, deixou escapar a pergunta fatal ao se dirigir à Maria Elisa Quinteros, que presidia os trabalhos: “O que vamos fazer com este circo, presidenta?”.
O ato falho foi rebatido pelo artista Agustín Maluenda, o palhaço Pastelito, que pediu para não compararem a desorganização da Convenção com o trabalho circense. “O que aconteceria se o governo do Chile fosse dirigido por um circo? Seria organizado, seria sério”, reagiu Maluenda.
A série de trapalhadas colocou em xeque a credibilidade da convenção. “São episódios que foram se somando e colocaram em dúvida se o processo era realmente sério”, avalia o cientista político Diogo Ives, pesquisador no Observatório Político Sul-Americano.
Com o apoio de partidos e figuras de direita, a campanha do rechazo ganhou as ruas antes mesmo que os artigos do novo texto fossem votados.
A isso se somou a falta de didática da Convenção sobre temas complexos em discussão, aumentando o ruído a respeito das mudanças. “Houve muitos problemas de diálogo com a população no decorrer do processo constituinte. Os defensores do rechazo conseguiram fazer uma campanha transversal, para incorporar toda a sociedade chilena”, observa a cientista política Talita Tanscheit, pesquisadora da Universidade Diego Portales, em Santiago.
Uma parcela da esquerda cantou vitória antes da hora, o que também ajuda a explicar a falta de mobilização do apruebo. “Acharam que, como a direita não tinha o terço necessário para aprovar as pautas, podiam passar tudo o que quisessem. Mas a direita ainda detém os meios de produção, os meios de comunicação, o dinheiro e é fortíssima no legislativo”, alerta Tanscheit.
A rejeição do texto também foi encarada, de certa forma, como uma derrota de Boric. O governo convive com uma alta desaprovação alimentada por conflitos na região de Araucanía e, sentindo a possível vitória do rechazo, apresentou propostas de alteração à nova Constituição antes mesmo da realização do plebiscito.
O rascunho final da nova Constituição incluiu a consolidação dos direitos de indígenas, mulheres, pessoas com deficiência, e da população LGBTQIA+. Também colocou o acesso à água, saneamento, educação, saúde, moradia, alimentação e previdência como garantias básicas.
Além disso, o texto reconheceu direitos para o meio ambiente e os animais e determinou o “domínio absoluto, exclusivo, inalienável e imprescindível” de todos os recursos minerais do país. Organizado em 11 capítulos e 388 artigos, o livro virou best-seller no Chile. Porém, não escapou das controvérsias.
Um dos argumentos para o rechazo, dizem analistas, é que a proposta constitucional teria extrapolado as demandas do estalido social. “Houve muita ênfase na criação de um Estado plurinacional e na substituição do Senado por uma nova Câmara com poderes menores”, exemplifica Ives.
A plurinacionalidade reconhece a participação e autonomia dos povos originários na organização estatal, como ocorre na Bolívia e no Equador. Segundo uma pesquisa do Ipsos feita no fim de agosto, o tema aparecia entre os principais pontos de maior divergência, junto com a reorganização do sistema de justiça, o direito à propriedade e o sistema de saúde. E o resultado: mesmo em território mapuche, o projeto da nova Constituição chilena foi rejeitado.
Além disso, ao contrário do caráter facultativo dos referendos anteriores e da própria eleição presidencial, o plebiscito chileno do início de setembro teve participação obrigatória, levando às urnas uma grande parcela da população pouco acostumada a atuar nos ritos democráticos. Isso pode ter sido uma das principais chaves para a rejeição da Constituição.
Uma pesquisa do Datavoz mostrou que essa parte dos chilenos exibia aversão em relação à política ou tinha dúvidas sobre seu posicionamento. “A mãe de um amigo muito próximo votou em branco, porque não se sentia bem informada. No início, eu achei que o voto obrigatório poderia ajudar no processo, porque forçaria as pessoas a se informar sobre suas escolhas, mas aparentemente não foi assim”, constata Fabrizio. De acordo com Talita Tanscheit, “o Chile é um país de três terços: um mobilizado em torno da esquerda, outro em torno da direita e um não mobilizado. As pesquisas indicam que foi justamente esse terço não mobilizado que deu a vitória ao rechazo”.
Apesar da decisão no último plebiscito, é consenso entre a maioria dos partidos, de esquerda e de direita, que a Constituição atual deve ser aposentada. E isso significa que tudo vai começar novamente, do zero. “Deve ser convocada uma nova eleição para escolher uma Assembleia Constituinte, com voto obrigatório e paridade de gênero”, adianta Diogo Ives.
Uma das principais diferenças desse novo processo é que agora será indicado um comitê de especialistas. Ainda se discute como será a composição desse comitê e qual será o escopo de atuação dele – se terá apenas caráter consultivo ou se irá participar da elaboração do rascunho, como defendem alguns partidos de direita.
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Chile. ‘Rechazo’ adia fim do legado de Pinochet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU