22 Janeiro 2022
Mais de meio século após a efetivação de um dos programas mais aberrantes da ditadura pinochetista, o Chile inicia um plano piloto para agilizar a busca de 700 vítimas de adoções ilegais, cometidas durante o último regime militar. A justiça chilena estima que o número total de crianças adotadas sem o consentimento de suas mães e pais, naquele período, pode chegar a 20.000.
A reportagem é de Dominique Galeano, publicada por Página/12, 16-01-2022. A tradução é do Cepat.
A iniciativa piloto, anunciada nesta semana pelo governo chileno, terá uma duração de um ano e oferecerá acompanhamento às famílias de 700 vítimas de adoções ilegais. Além disso, facilitará o acesso à coleta de amostras de DNA de vítimas que vivem no exterior. Mesmo assim, as feridas estão longe de cicatrizarem.
Quando em 2014 uma série de denúncias de famílias apontavam para a responsabilidade do sacerdote chileno Gerardo Joanan por seu papel como intermediário nas adoções ilegais, a problemática das apropriações de crianças chegou à imprensa do Chile por meio do relatório do Centro de Investigação Jornalística do Chile (CIPER, em espanhol). Segundo o CIPER, foram utilizados três tipos de manobras para realizar o roubo de crianças: fazer com que as mães assinassem documentos que não entendiam, mentir informando que seus filhos nasceram mortos ou declarar as mulheres incapazes para a criação de seus filhos.
Em 2017, a Suprema Corte do Chile nomeou Mario Carroza, um destacado magistrado especializado em direitos humanos, para que assumisse a investigação. Em 2019, Carroza sacudiu o país com o resultado: “podemos chegar a um número de 20.000 crianças”, entre 1970 e 1999, ano em que segundo o magistrado também se registrou um aumento nas adoções de crianças chilenas.
Carroza também havia especificado que ainda falta determinar se saíram de maneira irregular, “com documentos que não eram corretos”. Entre os destinos dos milhares de meninos e meninas chilenas estava Suécia, Itália, França e os Estados Unidos.
Conforme explica a pesquisadora da Universidade Austral, Karen Alfaro, em sua pesquisa Niños y niñas chilenos adoptados por familias suecas. Proximidad diplomática en tiempos de Guerra Fría (1973-1990), os primeiros registros da Polícia de Investigações do Chile atribuíam a responsabilidade das adoções irregulares ao Centro Sueco de Adoção, com seus funcionários (principalmente assistentes sociais) participando como “captores das crianças, principalmente de famílias pobres”. No entanto, a trama do tráfico de crianças também contou com a cumplicidade de hospitais públicos, médicos, orfanatos e creches.
Alfaro estudou a documentação diplomática da Embaixada do Chile em Estocolmo, entre eles relatórios descritivos sobre a difusão da imagem do Chile e sua infância em meios de comunicação suecos, e a reação das autoridades do regime militar diante da chamada “campanha antichilena” da comunidade de exilados chilenos que denunciavam as violações aos direitos humanos da ditadura militar de Pinochet.
Em sua pesquisa, a historiadora considera que “a adoção transnacional de crianças chilenas pobres na Suécia foi avaliada pela ditadura militar como um mecanismo de proximidade diplomática e política, pois permitia estabelecer vínculos com instituições e setores da extrema direita na Suécia”.
Nos últimos anos, aumentaram as denúncias sobre adoções ilegais ocorridas durante a última ditadura chilena. Em alguns casos, as denúncias foram iniciadas na Suécia por crianças separadas de forma ilegal de seus pais, hoje adultos que tentam reconstruir sua história pessoal. Além disso, em outubro de 2021, o governo da Suécia anunciou que começaria a investigar mais de 2.000 adoções irregulares de crianças chilenas, durante a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile.
Para Maria Diemar, a investigação de 2017 do documentarista chileno Alejandro Vega foi um de seus primeiros passos para conhecer as circunstâncias de sua adoção. Diemar pediu a Vega que revisasse seus documentos de adoção e o jornalista confirmou a sua suspeita: os documentos de Diemar tinham erros e omissões. O filme de Vega afirma que a maioria das mulheres que eram separadas de seus bebês eram pobres e, em alguns casos, também pertencentes a comunidades indígenas mapuches. Como a mãe de Diemar, segundo relatou ao jornal matutino britânico The Guardian.
Tanto a investigação de Alfaro como a de Vega concordam que as adoções ilegais se tornaram um negócio altamente lucrativo. Vega descreve as adoções como um “negócio muito lucrativo, em um período sombrio”. O jornalista também tem acesso aos formulários nos quais os pais e mães adotivos escolhem as características fenotípicas das crianças que buscavam adotar.
De acordo com Alfaro, os pais e mães adotivos na Europa e nos Estados Unidos pagavam às agências internacionais de adoção quantias que iam de 6.500 a 150.000 dólares por cada criança. Uma parte dos honorários era destinada aos profissionais chilenos que ajudavam a identificar as crianças aptas e a separá-las de seus pais.
Nas denúncias que chegavam aos meios de comunicação chilenos, as mães que finalmente tinham a oportunidade de se reencontrar com seus filhos, após mais de 30 anos, revelavam que não tinham aceitado dar seus bebês para a adoção e que não tinham assinado nenhum documento, pois naquele momento não sabiam ler e escrever.
“As agências internacionais de adoção tinham representantes no Chile que montaram redes de intermediários pagos, em sua maioria funcionários públicos, para buscar crianças para a adoção”, afirma Alfaro ao jornal The Guardian. “Havia assistentes sociais pagos para emitir relatórios falsos de abandono de crianças, e havia dinheiro para que médicos e enfermeiras gerassem certificados de nascimento que dissessem que o bebê havia morrido ao nascer, e juízes pagos para aprovar a transferência da guarda”.
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Chile. Como foi o roubo de 20.000 crianças durante a ditadura de Pinochet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU