Resignar-se e insurgir-se: a lição chilena. Artigo de Franco ‘Bifo’ Berardi

Fonte: Wikimedia Commons

22 Setembro 2022

 

“Ninguém pode parar o apocalipse que cinco séculos de devastação imperialista produziram. Mas é possível criar ilhas, embora limitadas no tempo e no espaço, nas quais a depressão é suspensa e uma vida feliz é possível, sem reivindicar a eternidade”. A análise é de FrancoBifoBerardi, em artigo publicado por Ctxt, 20-09-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

Naziliberalismo

 

O ciclo neoliberal começou em 1973, quando os economistas estadunidenses da escola neoliberal usaram um assassino chamado Pinochet para destruir o experimento democrático de Salvador Allende a favor da acumulação de capital.

 

A insurreição chilena do outono de 2019 forçou o governo Piñera a aceitar o processo eleitoral que levou à vitória de Boric e ao início do processo constituinte. Então dissemos: onde tudo começou ali também pode terminar.

 

Poderia. Era a última ilusão. Sabemos agora que não foi assim, e talvez devêssemos que abandonar a ilusão de que uma iniciativa política (uma ação voluntária) seja capaz deter o apocalipse que cinco séculos de capitalismo imperialista prepararam e que agora se desenvolve de forma irrefreável, sem poder ser detido pelo menos pela ação voluntária humana.

 

Isso deveria nos levar a escolher uma estratégia de deserção das comunidades insurrecionais autônomas do destino da humanidade planetária.

 

Durante muito tempo acreditamos que os movimentos sociais tinham a possibilidade de transformar toda a sociedade. Nesse sentido, interpretamos as insurreições como o estopim das revoluções, ou seja, interpretamos o ato da revolta e da deserção como o estopim de um processo de derrubada dos equilíbrios sociais e de transformação radical da sociedade como um todo.

 

Esse modelo, que funcionou (sempre de forma imperfeita) no século XX, não funciona mais. Não há mais nenhuma possibilidade de parar e reverter tendências que são irreversíveis por natureza e que não dependem mais da vontade política, nem mesmo daquela dos grandes poderes políticos que fingem estar no poder e que nada podem fazer (exceto acrescentar destruição à destruição em curso).

 

Trata-se, portanto, de abandonar as ilusões. Resignar-se ao fim da ilusão moderna (democracia, prosperidade, progresso) e preparar-se para multiplicar as insurreições, ou seja, os momentos de autonomia coletiva que podem levar a ações coletivas de deserção e de autoconstituição secessionista.

 

No tropel mundial de levantes sem um projeto comum do outono de 1919, o Chile parecia ser o lugar onde, mais do que em qualquer outro, manifestava-se a consciência do contexto histórico de longo prazo e das opções a serem tomadas no futuro imediato: reescrever a Constituição de baixo para cima como uma carta de direitos sociais e, sobretudo, como uma afirmação da primazia da sociedade sobre o mercado. O Chile parecia ser o lugar onde a ditadura naziliberal poderia terminar. Isso não aconteceu.

 

O liberalismo global foi estabelecido em 1973 mediante a ditadura militar e a violência. Nos anos de Thatcher e Reagan, a contrarrevolução vivida no Chile e na Argentina foi generalizada para todo o Ocidente como violência econômica contra qualquer tentativa de defesa da sociedade.

 

 

Além disso, não devemos esquecer que a filosofia do neoliberalismo baseia-se nos mesmos princípios do nazismo de Hitler: seleção natural, imposição da lei do mais forte na esfera social, eliminação de qualquer diferença entre a sociedade e a selva.

 

O projeto naziliberal impôs-se no mundo através da eliminação das vanguardas operárias, da reestruturação técnica da produção, da privatização das escolas, do sistema de saúde, do transporte público e da ocupação privada dos meios de comunicação.

 

Os atores da história do século XX

 

A história oficial do século XX fala-nos de um conflito em que intervieram três atores principais: o movimento operário comunista que (infelizmente) se materializou na experiência soviética, o nazifascismo de origem europeia que se enraizou com virulência na América Latina após a Segunda Guerra Mundial, e o liberalismo, forma extrema de domínio capitalista do lucro privado.

 

Após a Segunda Guerra Mundial, a democracia se impôs graças à aliança (puramente militar) entre os anglo-americanos e os soviéticos, e o nazifascismo desapareceu da história.

 

Essa narrativa é falsa, e hoje é importante entendê-la não por razões puramente historiográficas, mas porque essa narrativa confunde a nossa compreensão dos acontecimentos. É falsa porque na verdade os atores foram e são dois: a sociedade, às vezes capaz de autonomia (insurreição), e o liberalismo nazista.

 

Nunca houve uma oposição radical entre o capitalismo anglo-americano e o nazifascismo. Primeiro em 1914 e depois em 1939, um conflito interimperialista opôs dois blocos, o das potências colonialistas estabelecidas e o das potências colonialistas emergentes, mas como qualquer outra guerra interimperialista, este conflito não implicou uma alternativa sistêmica. Da mesma forma, hoje assistimos a uma guerra entre a OTAN e a Rússia neoczarista, entre as democracias liberais e o nacional-soberanismo, na qual não se questiona o caráter capitalista e extrativista do modelo econômico dominante.

 

O fascismo e o nazismo não são apenas demonstrações de violência delirante, mas também e principalmente o último recurso do supremacismo branco e do imperialismo capitalista. Quando o supremacismo se vê ameaçado pelo surgimento de nacionalismos conflitantes ou pelo surgimento de civilizações irreconciliavelmente hostis, ele abandona a forma democrática-liberal e veste a camisa marrom.

 

 

A relação entre o supremacismo branco e o nazismo é clara para os marxistas africanos e afro-americanos, como Cedric Robinson, que em Race and Capitalism (Pluto Press, 2019) defende que a escravidão e o racismo sistêmico são totalmente comparáveis com o nazismo de Hitler.

 

Se quiséssemos praticar a macabra enumeração de números, descobriríamos que o colonialismo britânico ou espanhol é responsável por massacres e genocídios semelhantes em número e atrocidades ao concebido por Hitler, e que a ascensão dos Estados Unidos da América é inseparável do genocídio dos povos indígenas e da deportação e escravização de pelo menos dez milhões de africanos.

 

A partir de 2016, vivemos em uma época que parece caracterizar-se por uma luta até a morte entre democracias liberais, autoritarismo e soberanismo com conotações abertamente racistas e fascistas. Esta descrição é completamente falsa.

 

Na verdade, os nacionalistas autoritários são os mais zelosos na hora de aplicar políticas neoliberais de cortes de impostos para os ricos, privatização forçada dos serviços sociais, precarização dos empregos e cortes salariais.

 

E os democratas liberais são os mais zelosos na hora de executar políticas supremacistas e racistas, como mostra o caso italiano em que o assassinato de migrantes por água foi legalmente sancionado por um democrata chamado Marco Minniti que entregou aos torturadores líbios um número incalculável de mulheres, homens e crianças que fugiam das guerras e da miséria semeadas pelo Ocidente.

 

Na história do Chile, essa unidade indissolúvel do nazismo e do liberalismo tornou-se evidente já na década de 1970.

 

As duas cabeças do dragão

 

Não prevejo que o Bem ou o Mal prevaleçam na guerra entre a democracia liberal e o soberanismo autoritário, porque não acredito que a democracia liberal seja o Bem, nem acredito que o fascismo que cresce em todos os lugares seja o Mal. Penso que são as duas cabeças do dragão produzido pelo capitalismo global em sua fase agônica, e prevejo que a guerra entre essas duas cabeças preparará o fim da civilização humana.

 

Nada mais, nada menos.

 

Então vamos com calma e tentemos entender as coisas.

 

Os conformistas democrático-liberais excluem o fato de que a maioria os odeia, tanto que votam em quem os odiados pensadores conservadores mostram que odeiam, abominam e, acima de tudo, temem.

 

Em suma: quando Trump começou sua ascensão nos tranquilizamos dizendo: ele é tão nojento, ele é tão pouco sincero, que certamente a maioria dos estadunidenses, que por natureza são bons e democráticos, o desprezará completamente.

 

Aconteceu o contrário: a maioria dos estadunidenses, que são racistas e vingativos por natureza, desdenhou Hillary Clinton.

 

Os democratas italianos alertaram o eleitorado: cuidado, aqueles ali são fascistas, ou seja, vilões. Votem em nós que somos liberais e democratas, ou seja, bons.

 

Perderão, porque a maioria dos italianos, empobrecidos e amargurados por quarenta anos de reformas liberais, pretende prejudicar esses presunçosos exploradores que acreditam representar o bem.

 

Pela enésima vez acreditamos na democracia

 

No outono de 2019, pensávamos que o levante marcava o início de uma fase em que o domínio naziliberal seria finalmente colocado em xeque e, portanto, atribuímos valor universal ao processo chileno.

 

 

Depois da eclosão veio a sindemia, depois as eleições, depois o plebiscito que decretou por grande maioria a revogação da Constituição de 1980, e depois o início do processo constituinte que levou à proposta de uma constituição moderadamente pós-liberal. Não é minha intenção discutir os detalhes do processo constituinte, os erros e as fragilidades que o caracterizaram. Limito-me a assinalar que o referendo de 04 de setembro sancionou a derrota da nova constituição feminista, ecologista e plurinacional.

 

Pela enésima vez, acreditamos na democracia.

 

Pela enésima vez, a sociedade foi derrotada.

 

Pela enésima vez, o capitalismo afirmou sua insuperabilidade.

 

A principal razão da derrota sofrida pelo movimento operário no século XX, a razão da afirmação do modelo neoliberal que subjugou o organismo humano e o meio ambiente terrestre a uma exploração devastadora da qual agora começamos a medir a profundidade, reside, a meu ver, na incapacidade de criar formas de autonomia econômica para a sociedade, e na fé que o movimento operário teve, desde sua origem, na força da lei e, especialmente, em um modelo de gestão da vida social que leva o nome de democracia.

 

A experiência demonstrou que a democracia liberal não corresponde de forma alguma a uma condição de liberdade de decisão ou a uma forma efetiva de governo da máquina socioeconômica. A democracia, como a conhecemos no século XX em algumas partes do mundo ocidental, é uma máquina de dissipação sistemática da energia política da sociedade e de reafirmação sistemática do domínio dos automatismos.

 

As duas condições que fariam da democracia um modelo eficaz de gestão da sociedade (a livre formação da vontade coletiva e a eficácia das decisões políticas) não existem em nenhum dos países que orgulhosamente se proclamam democráticos.

 

A vontade coletiva (opinião e decisão) é de fato dominada e guiada por máquinas midiáticas onipresentes, cujo controle está nas mãos da classe proprietária.

 

E inclusive quando as dinâmicas democráticas entregam o poder político ao movimento operário, como aconteceu em algumas ocasiões na história recente (pensemos na Grécia em 2015), o poder dos automatismos financeiros, técnicos e militares sequer chega a ser arranhado pelos governos.

 

 

Acreditar na democracia e na força da lei foi um erro letal que levou o movimento operário a sucumbir, deixando a sociedade nas garras da violência econômica.

 

O domínio do modelo neoliberal, contemporâneo à derrota dos movimentos autônomos em todo o Ocidente nas décadas de 1960 e 1970, baseou-se na afirmação filosoficamente enganosa de que a democracia permite a afirmação efetiva do livre arbítrio na sociedade.

 

Não há liberdade na formação da vontade coletiva e, em todo caso, não há eficácia da vontade política, uma vez que ela se formou. Portanto, a lei não serve para nada sem a força para impô-la, como mostra a história de um país, a Itália, que apesar de ter uma Constituição muito avançada em termos de princípios, nunca aplicou coerentemente os princípios afirmados na Carta Magna.

 

Desertar e rebelar-se

 

A objeção que pode ser feita ao meu raciocínio é fácil de imaginar: existe um caminho alternativo à democracia?

 

Sabemos que a derrubada violenta do poder do Estado levou à criação de Estados autoritários que não criaram as condições para uma sociedade livre de exploração.

 

 

Mas o que aprendi com a experiência chilena dos últimos anos é o seguinte: a insurreição é possível e pode criar as condições para o florescimento de uma sociedade autônoma, provisória no tempo e limitada no espaço, mas não está em condições de transformar de forma permanente o conjunto das relações sociais nem pelo método democrático nem pelo método revolucionário.

 

A promessa da modernidade, de igualdade, prosperidade e paz, esvaneceu-se e devemos nos resignar. A palavra resignação não tem uma boa reputação, a menos que se acredite que deve se curvar à vontade de Deus.

 

Não creio que a vontade de Deus governe o curso dos assuntos humanos, mas acredito que resignar-se ao fim das ilusões não é em si uma coisa ruim.

 

A resignação e a insurreição podem andar juntas, desde que abandonemos a ideia de que a insurreição pode vencer.

 

Nos muros das cidades chilenas alguém escreveu: “Não era depressão, era capitalismo”.

 

A ativação dos corpos desejantes e a mobilização da inteligência coletiva agem como cura para a síndrome depressiva, isso é bem conhecido.

 

Nos meses de outono de 2019, o capitalismo não foi abolido, mas continuou a dominar o trabalho e a vida social. Portanto, essa frase escrita nas paredes não significa que a depressão vai terminar (ou parar) quando o capitalismo não mais existir. Pelo contrário, significava que viver em condições de subjugação e competição provoca depressão, mas rebelar-se coletivamente, interromper a vida regular da cidade, experimentar formas criativas de vida urbana e de consumo coletivo tem uma função terapêutica, e também pode ter (desde que nos resignemos à impossibilidade da totalização dialética) a função de inventar modelos de vida social frugal e feliz. A deserção do território simbólico da ordem estabelecida age como criação de uma dimensão simbólica autônoma que pode se dar regras, pode se defender, pode proliferar – desde que não pretenda derrubar o irreversível.

 

Esta é a lição que aprendi com a experiência chilena: ninguém pode parar o apocalipse que cinco séculos de devastação imperialista produziram. Mas é possível criar ilhas, embora limitadas no tempo e no espaço, nas quais a depressão é suspensa e uma vida feliz é possível, sem reivindicar a eternidade.

 

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