Em Futurabilidad, obra publicada originalmente em 2017, o filósofo italiano Franco Berardi dedica algumas páginas à mensagem do papa Francisco. A eleição de Bergoglio, esse homem vindo do “fim do mundo”, marca uma era em que já não conseguimos ter fé ou esperança, ou mesmo esperar um reino de verdade de justiça. Resta-nos a amizade e a compaixão pregadas por Francisco.
Em sua obra recente, Berardi tem tratado da “dissolução da concepção moderna de humanidade”. A transição para a esfera informacional digital está substituindo uma forma empática de interpretação dos signos e intenções que emanam do outro por outra conectiva, baseada em uma “estrutura sintática” de automatismos programados. Essa mudança provoca uma mutação na sensibilidade humana e em nossa capacidade de solidariedade.
Para ele, vivemos tempos de “absolutismo capitalista”. No capitalismo moderno, os destinos da burguesia e da classe trabalhadora estavam unidos por se darem no mesmo lugar e dependerem de sua associação mútua. Mas essa separação crescente, no capitalismo contemporâneo, implicou o desmantelamento das instituições da civilização social, demonstrando a fragilidade da proteção da razão e da lei, e colocando a violência e o abuso como norma de mediação social.
No mundo do trabalho, o resultado é uma despersonalização do tempo de trabalho. A flexibilização das relações de trabalho avançou no sentido da fractalização do trabalho, que se dá quando o capitalista já não contrata a força de trabalho representada em uma pessoa que trabalha, que tem necessidades e direitos, mas fractais de tempo de trabalho abstrato, organizados em pacotes de tempo, aos quais corresponde um salário que não necessariamente deverá cobrir as necessidades de quem trabalha.
Em Futurabilidad, Berardi trata do processo através do qual o presente se torna futuro. Muitas possibilidades estão inscritas na atual conformação do mundo, mas a criação do futuro resulta da dialética entre os efeitos do poder na seleção dessas possibilidades e sua encarnação em sujeitos dotados de potência. Mas vivemos em tempos de impotência, diante de um mundo que parece grande e complexo demais para receber nossa intervenção.
Em tempos como esses, quando acabou a esperança e não sabemos o que fazer, Berardi nos conta a mensagem de Francisco.
A introdução e tradução é de Lucas Feres, economista e mestre em desenvolvimento econômico pela Unicamp, para a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, publicada mensalmente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Em Habemus Papam - em minha opinião, o melhor filme de seu diretor, Nanni Moretti retrata a impotência dos seres humanos diante da imensidade do sofrimento histórico. No filme, Deus não aparece nunca, e o papa recém eleito, interpretado por Michel Piccoli, se sente incapaz de expressar com palavras esse caos inimaginável que é a realidade na ausência de Deus.
O gênio de Nanni Moretti antecipou assim um drama que sacudiria a Igreja de Roma poucos meses depois da estreia do filme.
Em fevereiro de 2013, Joseph Ratzinger, o papa alemão que havia afirmado a inquestionável superioridade da verdade contra qualquer relativismo, renunciou e manifestou sua debilidade física e espiritual. Foi um ato de coragem e humildade sem precedentes, que devemos interpretar em termos filosóficos, como um reconhecimento da impotência política da razão ética.
Como não sou teólogo, não pretendo ter uma compreensão profunda do significado e intenções por trás de um ato tão relevante. Porém, do ponto de vista da filosofia secular, afirmo que a renúncia de Ratzinger, o papa Bento XVI, marcou o fracasso da tentativa histórica de dominar e submeter as forças desencadeadas do mal, tal como estas se materializam nos instintos selvagens do capitalismo global. Abarrotado por sua própria debilidade, Bento XVI ficou em silêncio e abaixou a cabeça. Essa admissão da própria impotência foi, a meu juízo, o sinal mais forte de sua fortaleza.
Mas não parou por aí. Em uma época em que a violência sectária, a arrogância conservadora e a ambição econômica parecem ter dominado praticamente todos os lugares do mundo, apareceu outro homem na sacada da Basílica de São Pedro, que saudou as multidões com um simples “boa noite”.
Não sou crente e meu ateísmo me dificulta aceitar a ideia de que o Espírito Santo iluminou o clero que se reuniu no conclave papal naqueles dias de março de 2013. No entanto, suponho que pelo menos a sabedoria humana os levou a eleger um novo papa, o papa Francisco, que parece decidido a se colocar, solitariamente, contra a violência étnica, a opressão política e a exploração econômica.
Não pretendo interpretar adequadamente o significado teológico da pregação do papa Francisco. Mas, em perspectiva histórica, me interessam as implicações filosóficas de seus atos e palavras. Em 11 de abril de 2015, inaugurando um Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco publicou a bula Misericordiae Vultus, um documento que oferece uma redefinição explícita da relação entre verdade e compaixão, dando ênfase à superioridade da compaixão sobre a verdade.
A palavra “compaixão” admite ser substituída nesse contexto por “empatia” ou “solidariedade”.
Esse papa, segundo ele mesmo vindo do “fim do mundo”, afirma que devemos pensar a Igreja como um hospital de campanha:
“O mais necessário para a Igreja hoje é que tenha a capacidade de sanar as feridas e consolar o coração dos crentes. Penso a Igreja como um hospital militar de campanha. A uma pessoa gravemente ferida não tem sentido perguntar se está com o colesterol alto. É preciso sarar suas feridas. Depois poderemos ocupar-nos de outras coisas. Sarar as feridas é nossa missão… e temos que começar de baixo”.
(Papa Francisco, entrevista com o padre Antonio Spadaro, “A big heart open to God”, America Magazine, 30/set/2013)
O que surpreende, nesse ponto, é a coragem intelectual do papa de abandonar o discurso da esperança. Assim, ele interpreta o sentimento dominante de nossa época: uma visão desoladora do futuro. No entanto, traduz essa desesperança em termos de misericórdia, compaixão e amizade.
No discurso cristão, a esperança é impossível sem a fé. E hoje, depois da queda do comunismo, da democracia e do progresso social no fim do século passado, a fé parece ter se esgotado. Só sobrevive o capitalismo. Mas nesses anos de arrogância financeira e trabalho precário, caiu também a fé no capitalismo. Durante os anos noventa, defendeu-se que o capitalismo era o modelo de vida social universal e definitivo, ideia que conquistou também muitos intelectuais de esquerda. Agora, vinte anos depois, o capitalismo perdeu quase toda sua credibilidade, mas continua governando, como uma máquina automática que ninguém pode deter. Já não ganha pela força do conhecimento, mas subjuga corpos e almas pela força.
Assim, acabou a fé.
Como não sou crente, não confio em nenhum deus e nenhuma ideologia, não acho que o fim da fé seja algo negativo. Pelo contrário, acho que só liberados da fé poderemos entender a verdadeira tendência da época e aproveitar as oportunidades mais interessantes que essa tendência traz consigo.
Mas, para fazer o possível real, precisamos de amizade, solidariedade, felicidade e capacidade de sentir prazer com as relações físicas. Isso nos falta hoje. O que realmente nos falta não é esperança, nem fé, mas amizade. Por isso a humanidade oscila hoje no abismo entre a guerra e o suicídio.
Alguém poderia considerar como blasfêmia minha interpretação de Francisco, mas não é incongruente com seu significado explícito: Deus não está aqui para ocupar-se de nossas guerras, nossa contaminação, nossa exploração ou a precarização de nosso trabalho. Talvez esteja muito ocupado com algo mais urgente. Temos que arranjar-nos sem sua ajuda.
Logo, devemos abandonar toda a esperança: a máquina do mundo é ingovernável e a vontade humana não tem potência. Só nos resta a amizade. É assim que entendo a mensagem do papa Francisco.
Em um texto fascinante chamado “Pope Francis under a bright red star”, Federico Campagna compara as ações do papa eleito em 2013 com as do pontífice eleito em 1503, Julio II, o “papa guerreiro”, que passou a vida lutando para “expulsar os bárbaros”. Campagna nos propõe uma interpretação política da mensagem de Francisco, a de um papa que se dirige aos ativistas sociais e tenta ser o ponto de referência dessa parte da população mundial que, desde a queda da revolução comunista, não conta com nenhuma outra forma de representação política.
De minha parte, não nego que a pregação de Francisco tenha intenções e efeitos políticos, mas não creio que seja sua mensagem mais importante. O mais significativo, em minha humilde opinião, é sua ideia de que Cristo não veio à Terra para impor justiça, mas a pregar a amizade e a compaixão (como Siddartha Gautama, que também falou da grande compaixão como o único caminho possível para harmonizar a singularidade da existência com o jogo cósmico).
Em 10 de setembro de 1978, um papa de nome Albino Luciani afirmou que “Deus é mais uma mãe que um pai”. Morreu poucas semanas depois dessa afirmação escandalosa. Quando afirma que Cristo tem mais a ver com o amor misericordioso que com a severa verdade, o papa Francisco reelabora o conceito de Luciani; já que deslocar o centro da atenção à misericórdia realça o caráter maternal da preocupação de Deus diante da fragilidade da criatura humana, sobre a obsessão paterna pela lei.
É óbvio que isso deve ser lido em termos políticos: há muitos países no mundo em que se assassinam cristãos por suas crenças religiosas. Mas Francisco não chama a uma cruzada. Ao contrário, em vários momentos reprovou o comportamento hostil das potências ocidentais contra o Islã.
Essa ênfase na misericórdia pode ser lida também no contexto da violência financeira e da austeridade com que a Europa destrói as vidas e o futuro do povo grego (e não só deles). A ênfase do papa na misericórdia também pode ser lida à luz do egoísmo dos países europeus que se recusam a aceitar imigrantes provenientes de países como Síria, Iraque e Afeganistão, países empurrados ao abismo pelas infinitas guerras ocidentais.
Dado que não espero nenhuma redenção depois da morte, creio que a única posição intelectual adequada para essa época é o desespero. Mas também acho que o desespero e a alegria não são inconciliáveis, se o desespero for o ânimo da mente intelectual e, a alegria, o ânimo da mente encarnada. A amizade é a força que transforma o desespero em alegria. Essa é a lição que aprendi desse homem vindo do fim do mundo.
(BERARDI, Franco. Futurabilidad. La era de la impotencia y el horizonte de la posibilidad. Buenos Aires, Caja Negra, 2019, pp. 105-109)