02 Junho 2022
Para Franco Berardi, “as políticas de ódio e intolerância que atualmente proliferam no mundo não são emergentes de uma insatisfação ou uma frustração coletivas, mas pequenos pesadelos individuais voltados tecnologicamente a um espaço externo que aprendemos a ter em comum como espécie, mas que agora parece definitivamente lançado a uma catastrófica e mortífera transição ao desconhecido”, comenta Federico Romani, em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 02-06-2022. A tradução é do Cepat.
A publicação de El tercer inconsciente vem prolongar essa historicização da “psicosfera” (o espaço psíquico constritor, onde convergem desejo, emoção e medo) à qual o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi parece envolvido há anos, com minúcia e dedicação reconcentradas, como um maratonista tenso, bem treinado na arte da resistência física e mental.
Em uma época em que as “filosofias do Apocalipse” proliferam e acompanham o ritmo do iminente fim da humanidade, o ciclo que se iniciou com Fenomenología del Fin, seguiu com La Segunda venida e agora se consolida, já delineia claramente um imaginário conceitual, uma caixa de ferramentas epistemológicas e – principalmente – uma aposta estética que se distancia tanto do oportunismo do calendário marcado pela mudança climática como da paixão niilista, que recuperou o sentido da palavra “morte” para a filosofia contemporânea, mas ao preço de desvalorizá-la como horizonte de sentido.
Berardi escreve em uma época marcada por um tipo de sensibilidade intelectual muito danificada, que espia um futuro de diferentes holocaustos (ecológicos, econômicos, culturais), mas sua preocupação principal não é o futuro – que já considera fundido no mais escuro das trevas –, mas a exploração dos fatores e agentes que instalaram o “princípio da dissolução”.
Seu método está mais próximo da arqueologia do que da reflexão filosófica propriamente dita, e a concisão de seu estilo e a forma compacta de sua exposição o aproximam cada vez mais do gênero literário que começa a definir o século XXI: teoria-ficção.
A destruição da ordem simbólica e política que Berardi identifica como a antessala do fim da humanidade é apresentada a partir de um fundamento narrativo que parece ser retirado do filme Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan: o planeta Terra, esgotado e exausto pelas políticas extrativistas características do Antropoceno, agredido e dizimado por quase quatro séculos de depredação industrial, tenta se desfazer do gênero humano através da drástica modificação das condições climáticas e a proliferação e contágio de doenças virais em escala global.
Esses eventos disruptivos, cada vez mais ferozes e traumáticos, precipitam-se, por sua vez, sobre uma humanidade mentalmente arrasada pelo pânico, a depressão e a psicose, e que contempla atordoada e indefesa sua própria marcha para a aniquilação.
Seu lento e progressivo suicídio em escala universal é sofrido por nossa espécie como um tipo de coven estético cozido sob pressão em uma panela onde, durante décadas, coincidiram uma mobilização ilimitada das energias do desejo e uma intensificação tecnológica que, em algumas partes do planeta, já alcançou as formas monstruosas do totalitarismo cibernético (leia-se China).
O inconsciente neurótico que Freud descreveu em 1930 como “o lado sombrio da racionalidade” (em O mal-estar na cultura) ficou aquém de produzir as novas formas de imaginação e experiência que Deleuze e Guattari estimularam em O Anti-Édipo (1972), para se tornar, ao contrário, uma bolha psíquica de depressão e sentimento de vingança, quando o “semiocapitalismo” contemporâneo retirou esse projeto de dentro de nós para arrastá-lo a um exterior dominado pelas políticas do “desempenho” e da autoexploração.
Para Berardi, esse novo “inconsciente” coletivo possui os elementos narrativos de um romance de Philip K. Dick, mas desenvolvidos por meio dos campos conceituais e os complicados aparatos teóricos de William Burroughs.
São citados dois dos mais importantes autores de ficção do século XX – que são, à sua maneira, escritores do século XXI – para esclarecer como a pandemia de covid acelerou uma série de profecias virais e cibernéticas que romances como O homem duplo (1977) ou The Place of Dead Roads (1983) narraram quase em tempo real, e que no descuido semântico e analítico de outras épocas foram qualificados como “ficção científica”.
Junto com Dick e Burroughs, J. G. Ballard compreenderia profundamente as tensões que seu tempo incubava, e através de Crash (1973) abriria as “paisagens interiores” da mente para demonstrar que a violência e o horror do futuro não eram distopias do espaço ou do tempo, mas, precisamente, uma série de pressões calculadas sobre o campo onde nascem e se afirmam esses dois conceitos: a mente.
Esquizofrenia (Burroughs) e paranoia (Dick) são, então, os prismas através dos quais é preciso interpretar as grandes narrativas que dão sentido à época final da humanidade.
Berardi recupera algumas preocupações das escolas pessimistas clássicas (quando afirma que a aceleração da estimulação nervosa está aniquilando a esfera da experiência, nada mais faz do que trocar Walter Benjamin por Jean Baudrillard), mas as aborda sob a ameaça de fenômenos de concentração que não se manifestam mais em fascismos militaristas de direita ou esquerda (nazismo alemão ou comunismo soviético), mas em invasões e colonizações do âmbito mental.
As políticas de ódio e intolerância que atualmente proliferam no mundo não são, então, para Berardi, emergentes de uma insatisfação ou uma frustração coletivas, mas pequenos pesadelos individuais voltados tecnologicamente a um espaço externo que aprendemos a ter em comum como espécie, mas que agora parece definitivamente lançado a uma catastrófica e mortífera transição ao desconhecido.
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Franco Berardi: ideias para esperar o colapso final - Instituto Humanitas Unisinos - IHU