20 Mai 2020
Para Franco Berardi, o ar de Bolonha é um tanto nocivo para seus pulmões de asmático. Nesta cidade italiana, o filósofo, que todos preferem chamar de Bifo, está escrevendo seu Diário da psicodeflação. Uma espécie de diário da pandemia que, na instantaneidade de sua escrita, reúne uma análise límpida e sensível desta realidade inesperada, com a leitura dos seis jornais que costuma realizar.
Em seus textos filosóficos, Berardi fala da mutação trazida pela lógica conectiva. Essa instância onde a relação com os outros se lê a partir dos símbolos, da informação, diferente da lógica conjuntiva, onde são os corpos que se encontram sem a mediação.
Inspirado na visão molecular de Félix Guattari - de quem foi amigo durante sua estadia em Paris -, Bifo estabelece a noção de semiocapitalismo para definir um sistema baseado na proliferação de signos pela informatização do processo de produção.
Consequentemente, também entende a Covid-19 como um vírus semiótico. Por e-mail, considera que deve ocorrer um deslocamento da política para conferir maior protagonismo a uma esfera social que resgate, nesta desaceleração, o valor do útil, entendido como conhecimento, acima da abstração econômica que causou uma aceleração competitiva.
Berardi – militante que integrou o movimento autonomista – se nega a pensar a esquerda nos termos do passado. O salário está em uma relação de forças cada vez mais desfavorável para os trabalhadores que perderam sua potência política. Bifo criou o conceito de cognitariado, palavra que une o desempenho intelectual com a categoria de proletariado. Essa precarização da inteligência sempre conectada e sobre-explorada precisaria recuperar um corpo social na ação coletiva. Mas suas manifestações são, para Berardi, mais poéticas que políticas.
No cenário da peste, “a vontade política não tem controle sobre o infovírus. Bifo retoma Williams Burroughs e Philip K. Dick como se suas imagens lhe permitissem povoar o mundo a partir de uma “fenomenologia da sensibilidade”.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 15-05-2020. A tradução é do Cepat.
Dizem-nos que devemos suspender o encontro real entre os corpos e permanecer em uma lógica conectiva. A mutação do vírus não seria a possibilidade de acreditar que essa forma conectiva é uma totalidade, que pode substituir a forma conjuntiva?
A conexão é uma relação com o outro que pode ser funcional, mas não tem a sutileza que pertence à conjunção, ao contato ambíguo e insinuante, à palavra que sempre está aberta a novas interpretações e novas evoluções. Claro que a epidemia instala um problema muito profundo de deserotização da relação social e de desrealização da experiência. Aprendemos a fazer quase tudo online, mas nem tudo é possível e acredito que, em nível antropológico, psíquico e também político muita coisa estará em jogo em relação ao que não pode ser reduzido à conexão. O sexo, a fome, e a existência corpórea, em geral. Como perceberemos o corpo do outro na rua, no café, na cama, quando sairmos da quarentena? Que tipo de mutação psíquica vai sendo produzida na geração Z?
É provável que saiamos do distanciamento com um medo instintivo do corpo do outro, dos lábios, da boca do outro. Deveríamos discutir este problema de um ponto de vista psicanalítico e poético. Mas penso que também pode ocorrer um efeito contrário. Ou seja, o encanto da virtualização poderia se romper e um movimento poderoso de aproximação e de afetividade poderia se manifestar, porque a dimensão online se tornará a lembrança de uma época angustiante, como um sintoma da doença. Vejo o espaço de um verdadeiro movimento cultural, estético e social.
Você destaca que para Baruch Spinoza a potência é o corpo. O corpo faz parte do passado? Digo isso em função de um discurso que, com a justificativa do cuidado, está implantando a ideia de que o corpo não pode nada, porque é o lugar do contágio.
A tela é o lugar da segurança, mas é também o da anestesia, da remoção do prazer da sensualidade. Podemos imaginar uma humanidade conectiva que se liberte definitivamente da ternura física, da sedução dos olhos, dos lábios, das mãos que se tocam delicadamente? Eu não a consigo imaginar. Se a imagino, parece-me a pior distopia, um mundo eficiente, exato, perfeitamente compatível com a matemática financeira e com o autômato, sensivelmente morto. Talvez se trate de um problema geracional.
Para alguém que se formou no mundo mediterrâneo dos anos 1960, a ideia que a sexualidade possa se deslocar ao nível da tela, parece-me algo inimaginável. Nos anos 1980, a ciberutopia imaginou técnicas de teletransmissão da percepção, do prazer. Os livros de William Gibson propunham tais tipos de cenários, mas era uma utopia muito distópica, ao mesmo tempo. Uma transformação deste tipo pode produzir um efeito de depressão psíquica generalizada.
A pandemia consegue uma subtração do corpo social, ao mesmo tempo, torna-o mais visível. Como fazer para recuperar o corpo em um contexto onde o distanciamento social é a norma de disciplinamento?
Claro que a explosão do coronavírus representa, antes de tudo, a irrupção do corpo longamente removido do campo econômico e do campo discursivo. Em uma dimensão social em que o distanciamento se torne regra universal, a violência política se fará onipresente. É um perigo muito concreto no futuro. O tecnototalitarismo, o uso massivo da tecnologia de inteligência artificial e de captura de dados, explosões de violência psicótica...
Eu acredito que a pandemia atual marca a saída definitiva da época moderna da expansão e o ingresso na época da extinção. Extinção é uma palavra que não pertencia ao discurso político, mas, a partir de 2019, os movimentos mais interessantes que se desenvolvem em nível mundial, como “Fridays for Future”, fundado por Greta Thunberg, ou “Extinction Rebellion”, impuseram esta palavra à reflexão política. A extinção está implicada nas pandemias que se tornam mais prováveis em um planeta globalizado e nas catástrofes ambientais. Temos que reinventar o prazer, a afetividade e o corpo erótico em uma condição marcada pelo horizonte da extinção.
Podemos pensar este momento mais a partir de um marco evolutivo que histórico? Parece que essa transformação que os movimentos sociais não conseguiram realizar, o surgimento do vírus propiciou. Poderíamos pensar, conforme destaca Donna Haraway, que os novos agentes da história são os “bichos” ou vírus?
O vírus não pode acabar com o capitalismo. O vírus não pode atuar como um sujeito consciente. Mas o vírus está mudando o contexto de nossa ação de maneira profunda. O que parecia impensável há um ano se torna quase inevitável e necessário. A diferença entre a dimensão histórica e a evolutiva consiste essencialmente em que a história é a dimensão onde a vontade humana forja os processos sociais e técnicos e os submete a uma forma política intencional. Na evolução, a vontade humana não é um fator significativo. Quando falamos de evolução, o que importa são os fatores tecnológicos, os processos de mudança macro (como a mudança climática) e micro, como a dimensão molecular do vírus e sua difusão.
Pensava que esta desaceleração fragiliza a reprodução do sistema, mas também interrompe a possibilidade de transformá-lo.
Sim, concordo. Mas tenho que dizer uma coisa. Depois da derrota dos movimentos Occupy, tinha deixado de esperar uma mudança social voluntária e política. Não espero muito da vontade política, espero muito da esfera inconsciente, psíquica, estética. Hoje, me parece que o jogo está aberto, tudo está em discussão.
Não se corre o risco de que a nostalgia desse mundo anterior suprima qualquer possibilidade de transformação revolucionária?
Entendo muito bem que o desejo de voltar ao mundo como era antes, à normalidade de ontem, possa produzir um efeito de disponibilidade a um aperto do domínio. A solução tecnototalitária se torna mais provável. O que me interessa agora é a abertura de uma nova consciência de nossa fragilidade, de nossa impotência, da mortalidade como horizonte necessário da vida individual e da humanidade em seu conjunto. Uma consciência que nos permita uma relação mais amistosa com a natureza e nossos semelhantes. A igualdade havia sido destruída na imaginação política dos últimos quarenta anos. Agora, se apresenta como uma possibilidade mais próxima.
Tanto como a renda universal...
Paradoxalmente, a expressão neoliberal “There is no alternative” agora caminha em um sentido contrário. A renda básica parecia impensável no contexto pré-vírus porque não havia alternativa ao trabalho assalariado, agora parece que a renda básica é necessária para suportar a vida social, a demanda econômica. Não é uma opção, é uma medida indispensável, mas temos que ir além. A relação entre trabalho e sobrevivência não pode continuar, temos que considerar o direito à vida como algo universal, independente do trabalho. É preciso sair da concepção fundada sobre o projeto privado e a desigualdade porque “There is no alternative” não funciona mais.
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“‘There is no alternative’ não funciona mais”. Entrevista com Franco “Bifo” Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU