“A alternativa não é, simplesmente, atravessar este momento, mas mobilizar-nos de maneiras que nos beneficiem depois que a guerra acabar. Dados os perigos que enfrentamos, a paixão militar é uma fuga covarde da realidade. O mesmo pode ser dito sobre a complacência confortável e não-heroica”, escreve Slavoj Žižek, escritor e filósofo esloveno, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 13-05-2022.
Conforme o final de abril de 2022 se aproximava, mal completados dois meses da invasão russa na Ucrânia, o mundo se deu conta de uma mudança profunda no significado da guerra para o futuro. Acabou-se o sonho de uma resolução rápida. A guerra já havia sido estranhamente “normalizada”, aceita como um processo que continuaria indefinidamente. O medo de uma escalada súbita e dramática irá assombrar nossas vidas cotidianas. As autoridades na Suécia e em outros lugares estão, aparentemente, recomendando ao público que estoque provisões para atravessar as condições de guerra.
Essa mudança de perspectiva se reflete em ambos os lados do conflito. Na Rússia, fala-se cada vez mais de um conflito global. Conforme afirmou a diretora do RT, Margarita Simonya, “ou perdemos na Ucrânia, ou haverá uma terceira guerra mundial. Pessoalmente, acredito que o cenário de uma terceira guerra mundial é mais realista”.
Tal paranoia é reforçada por teorias conspiratórias malucas acerca de um complô liberal-totalitário nazi-judaico para destruir a Rússia. O ministro das relações exteriores russo, Sergei Lavrov, ao ser questionado sobre como a Rússia poderia afirmar que estaria “desnazificando” a Ucrânia sendo que o próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é judeu, respondeu: “eu posso estar errado, mas Hitler também tinha sangue judeu. [O fato de Zelensky ser judeu] não possui qualquer significado. Os judeus mais sagazes afirmam que a maioria dos antissemitas fervorosos são frequentemente judeus”.
Do outro lado, especialmente na Alemanha, uma nova versão de pacifismo está se consolidando. Se observarmos para além da retórica grandiosa e focarmos no que a Alemanha realmente está fazendo, a mensagem fica clara: “dados nossos interesses econômicos e o perigo de sermos arrastados para um conflito militar, não devemos apoiar demais a Ucrânia, ainda que isso signifique permitir que ela seja tomada pela Rússia”. A Alemanha teme ultrapassar a linha para além da qual a Rússia ficaria realmente furiosa. O problema é que apenas Vladimir Putin decide onde esta linha é traçada a cada dia. Jogar com o medo dos pacifistas ocidentais é uma parte importante de sua estratégia.
Obviamente, todos querem evitar que uma nova guerra mundial estoure. Existem, no entanto, momentos em que demonstrar excessiva cautela apenas encoraja um agressor. Aqueles que são bullies por natureza sempre esperam que sua vítima não reagirá. Para evitar uma guerra de maior escala – para estabelecer alguma espécie de dissuasão – devemos, também, traçar linhas claras.
Até agora, o Ocidente tem feito o contrário. Quando Vladimir Putin ainda preparava sua “operação especial” na Ucrânia, o presidente norte-americano Joe Biden disse que seu governo teria que esperar para ver se o Kremlin buscaria uma “incursão menor” ou uma ocupação total. Isso implicava, é claro, que um ato “menor” de agressão seria tolerável.
A recente mudança de perspectiva revela uma verdade profunda e sombria acerca da posição do Ocidente. Enquanto, anteriormente, expressávamos o receio de que a Ucrânia seria rapidamente esmagada, nosso medo real era exatamente o oposto: de que a invasão levaria a uma guerra sem um fim no horizonte. Teria sido muito mais conveniente se a Ucrânia tivesse caído imediatamente, permitindo que expressássemos nossa revolta, que fizéssemos o luto das perdas, e então retornássemos ao business as usual. O que deveria ter sido uma boa notícia – um país pequeno inesperadamente e heroicamente resistindo à agressão brutal de uma grande potência – tornou-se uma fonte de vergonha, um problema com o qual não sabemos exatamente como lidar.
A esquerda pacifista europeia alerta para os riscos de se adotar, novamente, o espírito heroico-militar que consumiu as gerações passadas. O filósofo alemão Jürgen Habermas chega a sugerir que a Ucrânia é culpada de ter subornado moralmente a Europa. Há algo de profundamente melancólico em seu posicionamento. Como Habermas sabe muito bem, a Europa do pós-guerra apenas pôde renunciar ao militarismo porque estava segura debaixo do guarda-chuvas nuclear dos Estados Unidos. Mas o retorno da guerra no continente sugere que este período pode muito bem ter acabado e que o pacifismo incondicional requereria compromissos morais cada vez mais profundos. Infelizmente, atos “heroicos” serão outra vez necessários, e não apenas para resistir e conter a agressão, mas também para suportar problemas como as catástrofes ecológicas e a fome.
Em francês, a lacuna entre o que oficialmente tememos e o que realmente tememos é muito bem representada pelo chamado ne explétif, um “não” que não possui qualquer significado em si mesmo, pois é apenas usado por razões de sintaxe e pronúncia. Ele aparece principalmente em orações subordinadas subjuntivas após verbos com conotação negativa (temer, evitar, duvidar); sua função é enfatizar o aspecto negativo daquilo que o antecedeu, como em: “Elle doute qu’il ne vienne.” (“Ela duvida que ele /não/ venha”), ou “je te fais confiance à moins que tu ne me mentes” (“Eu confio em você a menos que você /não/ minta para mim”).
Jacques Lacan usou o ne explétif para explicar a diferença entre uma vontade e um desejo. Quando digo que “temo que a tempestade /não/ venha”, minha vontade consciente é a de que ela não venha, mas meu verdadeiro desejo está inscrito no “não” que adicionei: temo que a tempestade não venha porque sou secretamente fascinado por sua violência.
Algo semelhante ao ne explétif também se aplica aos temores da Europa com relação ao corte do fornecimento de gás russo. “Tememos que uma interrupção no fornecimento de gás provocará uma catástrofe econômica”, dizemos. Mas e se o receio que expomos é falso? E se realmente tememos que uma interrupção no fornecimento de gás russo não provoque uma catástrofe? Como recentemente me disse Eric Santner, da Universidade de Chicago, o que significaria se fôssemos capazes de nos adaptar rapidamente? Acabar com a importação de gás russo não significaria o fim do capitalismo, mas, de todo modo, “forçaria uma mudança real na forma de vida europeia”, uma mudança que seria muito bem vida, a despeito da Rússia.
Ler o ne explétif de uma maneira literal, tomar atitude acerca do “não”, talvez hoje seja o mais genuíno ato político de liberdade. Considerem a afirmação, veiculada pelo Kremlin, de que cortar o gás russo seria o equivalente ao suicídio econômico. Dado aquilo que precisa ser feito para colocar nossas sociedades em um caminho mais sustentável, isso não seria uma libertação? Parafraseando Kurt Vonnegut, teríamos evitado entrar para a história como a primeira sociedade que não se salvara porque tal gesto não teria um bom custo-benefício.
A mídia ocidental dedica todas as forças em reportar os bilhões de dólares que foram enviados para a Ucrânia; entretanto, a Rússia ainda recebe dezenas de bilhões de dólares pelo gás que fornece à Europa. O que a Europa se recusa a considerar é que ela poderia exercer uma forma extraordinariamente poderosa de pressão não-militar sobre a Rússia enquanto atua de maneira significativa pelo planeta. Além disso, renunciar ao gás russo permitiria um tipo diferente de globalização – uma alternativa dolorosamente necessária tanto à versão liberal-capitalista do ocidente quanto ao modelo autoritário russo-chinês.
A Rússia não quer apenas desmantelar a Europa. Ela também se apresenta como uma aliada do mundo em desenvolvimento contra o neocolonialismo ocidental. A propaganda russa explora habilmente as lembranças de muitos países em desenvolvimento acerca dos abusos do Ocidente. Bombardear o Iraque não foi pior do que bombardear Kiev? Mosul não foi tão impiedosamente arrasada quanto Mariupol? É claro, enquanto o Kremlin apresenta a Rússia como um agente decolonial, ele oferece generoso apoio militar a ditadores locais na Síria, na República Centro-Africana e em outros lugares.
As atividades da organização mercenária do Kremlin, o grupo Wagner, que é mobilizado em nome de regimes autoritários por todo o mundo, nos permite observar como seria uma globalização de tipo russo. Conforme afirmou recentemente Yevgeny Prigozhin, o amigo de Putin por detrás deste grupo, a um jornalista ocidental: “Vocês são uma civilização ocidental no leito de morte que considera os russos, os maleses, os centro-africanos, os cubanos, os nicaraguenses e muitos outros povos e países a escória do Terceiro Mundo. Vocês são um punhado de pervertidos patéticos ameaçados, e existem muitos, bilhões, de nós. E a vitória será nossa!”. Quando a Ucrânia declara orgulhosamente que defende a Europa, a Rússia responde que defenderá aqueles que, tanto no passado quanto no presente, foram vítimas da Europa.
Não devemos subestimar a eficácia desta propaganda. Na Sérvia, a última pesquisa de opinião mostra que, pela primeira vez, a maioria dos eleitores se opõe à adesão à União Europeia. Se a Europa deseja vencer a nova guerra ideológica, ela terá que modificar seu modelo liberal-capitalista de globalização. Qualquer coisa que não seja uma mudança radical irá fracassar, transformando a União Europeia em uma fortaleza cercada de inimigos determinados a penetrá-la e destruí-la.
Eu tenho consciência clara das implicações de se boicotar o gás russo. Isso provocaria o que eu tenho referido repetidas vezes como “comunismo de guerra”. Nossas economias teriam de ser reorganizadas por completo, como é o caso em uma guerra aberta ou, igualmente, em um desastre de grandes proporções. Isso não é tão distante quanto pode parecer. O óleo de cozinha já está sendo racionado pelos mercados no Reino Unido por causa da guerra. Se a Europa renunciar ao gás russo, a sobrevivência demandará intervenções similares. A Rússia está contando com a incapacidade da Europa de realizar qualquer coisa “heroica”.
É verdade, tais mudanças irão aumentar o risco de corrupção e abrirão novas oportunidades para o complexo militar-industrial realizar lucros adicionais. Mas estes riscos devem ser mensurados diante dos desafios maiores, que vão muito além da guerra na Ucrânia.
O mundo está lidando com múltiplas crises simultâneas que evocam os quatro cavaleiros do apocalipse: praga, guerra, fome e morte. Estes cavaleiros não podem ser simplesmente dispensados como figuras do mal. Como notou Trevor Hancock, o primeiro líder do Partido Verde no Canadá, eles estão “impressionantemente próximos do que podemos chamar de os quatro cavaleiros da ecologia, que regulam o tamanho das populações na natureza”. Em termos ecológicos, os “quatro cavaleiros” têm um papel positivo, evitando excessos populacionais. Quando se trata de seres humanos, porém, essa função regulatória não tem funcionado:
“A população humana mais do que triplicou nos últimos 70 anos, de 2,5 bilhões em 1950 para 7,8 bilhões hoje. O que aconteceu? Por que não somos controlados? Haveria um quinto cavaleiro que faria com que populações entrassem em colapso em algum momento, como acontece com os lemingues?”
Até recentemente, observa Hancock, a humanidade fora capaz de conter os quatro cavaleiros por meio da medicina, da ciência e da tecnologia. Mas, agora, as “mudanças ecológicas massivas e aceleradas que provocamos” estão saindo de nosso controle. “Então, a não ser, é claro, que um meteoro ou um supervulcão nos varram da face da terra, a maior ameaça à população humana, o quinto cavaleiro, digamos, somos nós”.
Se seremos destruídos ou salvos, cabe a nós decidir. Por mais que a consciência global destas ameaças esteja aumentando, ela não se transformou em ações significativas, e os quatro cavaleiros estão em um galope cada vez mais acelerado. Depois da praga da Covid-19 e do retorno das guerras de grande escala, crises de fome pairam sobre o ar. Todos já têm resultado ou irão resultar em mortes em massa, e o mesmo vale para os severos desastres naturais provocados pelas mudanças climáticas e pela perda de biodiversidade.
Devemos, é claro, resistir à tentação de glorificar a guerra como uma experiência autêntica que nos levantaria de nosso hedonismo consumista complacente. A alternativa não é, simplesmente, atravessar este momento, mas mobilizar-nos de maneiras que nos beneficiem depois que a guerra acabar. Dados os perigos que enfrentamos, a paixão militar é uma fuga covarde da realidade. O mesmo pode ser dito sobre a complacência confortável e não-heroica.