Por: Cesar Sanson | 04 Julho 2016
"A pergunta contida no plebiscito poderia ser reformulada assim: vocês desejam permanecer nas atuais condições de vida ou deixá-las? O que se quereria que respondessem os desempregados, os precários crônicos, os aposentados reduzidos à indigência, as classes médias rebaixadas em relação ao que tinham até bem pouco tempo"?, escreve Gigi Roggero em artigo publicado por Commonware, 24/06/16 e traduzido e reproduzido por Uninômade, 03-07-2016.
Eis o artigo.
Brexit e as eleições na Itália com certeza são duas coisas diferentes, mas pelo menos têm um ponto forte em comum. Em ambos os casos, a maioria não deu um voto por, mas contra algo e alguém. Esse algo são as próprias condições de vida e esse alguém é Renzi ou a União Europeia (UE), responsabilizados por tais condições. Claro que estou simplificando as coisas, — o que para os analistas ilustrados seria uma simplificação grosseira e áspera —, mas certamente ela não está errada. Quando se está cercado e fica difícil conciliar almoço e jantar, é preciso atingir o alvo maior e mais imediato. O tempo dos detalhes e distinções vem depois.
A demonstrar isso, a composição social do voto no Reino Unido, como já havia sido visto na Itália [1]: os centros urbanos desejam permanecer na UE, enquanto as periferias e os territórios atingidos pela crise, deixá-la. Tanto é que a pergunta contida no plebiscito poderia ser reformulada assim: vocês desejam permanecer nas atuais condições de vida ou deixá-las? O que se quereria que respondessem os desempregados, os precários crônicos, os aposentados reduzidos à indigência, as classes médias rebaixadas em relação ao que tinham até bem pouco tempo? Na Grécia, já havia acontecido no “oxi” (não) essa súbita faísca que, no entanto, não chegou a alastrar o fogo pela mata. Mas Tsipras e o Syriza deliberadamente não admitiram que se tratava de um não contra o monstro Europa, pondo fim à história política da breve anomalia que eles significaram.
Ainda uma vez mais, na Brexit se quebra a dialética entre direita e esquerda, que só serve hoje para a autorreplicação de classes políticas e seus intelectuais mais ou menos orgânicos. Na crise, a divisão inicial, instintiva, se cria entre quem deseja conservar o status quo (talvez as esquerdas prometam que seja para reformá-lo ou mudá-lo num futuro), e quem o recusa. De que lado estamos? Este é o ponto. Quem cerra fileiras com a conservação do status quo faz uma escolha de lado. Faz uma escolha de classe. Aqui não serve de grande coisa apelar ao perigo fascista. Pois, realmente, se os fascistas tiveram a astúcia de chafurdar nessa composição social, a responsabilidade é nossa, e não da composição social.
Infelizmente, na esquerda e nos ambientes de movimento que não conseguiram libertar-se de seu germe cancerígeno, a classe só é boa quando “remain” uma abstração desencarnada. Mas quando decide “leave” e o faz da própria cabeça, os comportamentos expressos são estigmatizados e desprezados. Grita-se que o provocador e o fascista dobram a esquina. Na última semana, tivemos a enésima comprovação, nas análises e comentários esquerdistas, do desprezo pelos incultos e bárbaros apoiadores do movimento 5Stelle ou da Brexit, contrapostos sempre e sempre aos esclarecidos raciocínios conscienciosos da City. Nessas posições, subsiste um próprio e verdadeiro racismo social. Em vez de apontar aos processos de recomposição, termina por alimentar uma fissura horizontal dentro da classe. Este é o primeiro e verdadeiro perigo reacionário que tem de ser enfrentado.
Mutatis mutandis, voltou-se assim à teleologia do marxismo ortodoxo da Segunda Internacional. Estamos falando daquele para quem os povos colonizados devem aceitar o seu próprio destino histórico, para quem os cangaceiros do sul da Itália deveriam ter se curvado ao Reino da Sardenha [2]. Entre as fileiras europeístas, que hoje se queixam da idiotia dos proletários ingleses, estão muitos que há pouco se entusiasmaram quando os historiadores militantes dos Subaltern studies nos explicaram como os rebeldes indianos do século 19 contra as tropas imperiais britânicas eram movidos pelas mais diversas pulsões, num misto de crenças e tradições coligadas segundo um instinto comum: a oposição e a recusa ao invasor. E não estamos falando de questão nacional, esse bicho-papão para os burocratas do internacionalismo ideológico, inclusive do que é exportado com armas em punho.
Teríamos realmente a certeza que, entre trabalhadores e precários que lutam na França nestes meses, não haja também o desejo ambíguo de não terminar nas condições de italianos e gregos? Hoje, segundo esses mesmos europeístas, os sujeitos atingidos pela crise deveriam resignar-se em sua vidinha de merda, a fim de salvaguardar o interesse geral dos ideais de esquerda e do papel progressista da Europa. Mas, como se sabe, os bárbaros que estão distantes no espaço e no tempo parecem sempre mais simpáticos e inócuos do que aqueles cujas formas despontam perto de nossas casas, quando passam a ameaçar os padrões de vida daquelas classes que, no fundo, dependem da Europa.
Se não um terremoto (os efeitos foram antecipadamente frisados para instilar o medo e induzir o voto), decerto alguns solavancos a Brexit provoca. O primeiro-ministro Cameron constrangido a demitir-se, os trabalhistas em crise, os mercados em fibrilação, as mídias consternadas, a Europa em pedaços. Nós não sabemos em que direção esses solavancos nos levarão, mas com certeza somente daqui, de dentro, é que poderemos tentar organizar o terremoto. Quem hoje se amedronta e prefere o silêncio, não está do outro lado na dialética entre direita e esquerda, mas na de classe. Porque as revoluções são feitas com os bárbaros. Seria demais esperar que quem, pelo menos nas palavras, quer a transformação do presente estado de coisas se meta hoje a estudar Lênin. Mas, nestes dias, pelo menos aquele romance de Ballard [3] bem que poderia folhear algumas páginas…
Notas da tradutora
[1] – Referência às recentes eleições municipais na Itália, onde o sentimento antipolítico e anticorrupção fortaleceu o movimento 5Stelle (Cinco Estrelas), elegendo dois prefeitos de cidades importantes, em Roma e Turim.
[2] – O “brigantaggio” foi um fenômeno de bandidagem com um fundo ambíguo de protesto social, nas áreas mais pobres do sul da Itália, cujas características guardam traços com o cangaço no nordeste brasileiro. Eles se opunham à formação da Itália unificada na segunda metade do século 19 e foram “orientados” pela 2ª Internacional Socialista a se submeterem em nome da luta de classe.
[3] – Refere-se, provavelmente, ao romance do inglês JG Ballard, Millenium People (2003).
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