“O processo de construção de outra economia, que elimine as desigualdades raciais, de classe e de gênero e que seja ambientalmente sustentável, requer a ampliação e a diversificação dos sujeitos participantes. A baixa presença de pessoas negras nessa construção tem como consequência o risco de o racismo estrutural persistir se reproduzindo. Se quisermos encontrar uma nova proposta econômica que não exclui, não oprime e não mata a negritude, é preciso se perguntar qual é a proporção de pessoas negras envolvidas na mobilização dessa nova economia. De fato, a invisibilidade da participação da juventude negra faz com que os problemas colocados pelo capitalismo, que marginaliza os corpos negros, nem sejam tratados. Assim, como nos lembrou o Papa Francisco no encerramento do encontro em Assis, é necessário garantir que os grupos que são cruelmente afetados pelo sistema capitalista sejam protagonistas na construção dessa economia”, escrevem Elizabeth dos Santos Machado, Philippe Silva e Josimar Priori, jovens selecionados para participarem do evento The Economy of Francesco e membros da seção brasileira da vila Vida e Estilo de Vida, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.
“Mudar”, “estabelecer um pacto” e “realmar” a economia foram palavras usadas pelo Papa Francisco para anunciar a realização do evento The Economy of Francesco. Certos de que “não podemos continuar deste modo”, como Francisco ressaltou durante o evento, jovens de 115 países se reuniram, de maneira online, durante os dias 19 e 21 de novembro de 2020, para um encontro cujo principal objetivo foi iniciar a construção de uma nova economia que busca inspiração em São Francisco e Santa Clara de Assis e almeja ser justa do ponto de vista social e ambiental.
Está cada vez mais cristalino que o sistema de acumulação capitalista tem ferido mortalmente o ser humano, a flora, a fauna, os rios, os mares, o solo e a atmosfera, deixando rastros de miséria e degradação por todos os lados. Segundo Francisco, “o atual sistema mundial é insustentável de vários pontos de vista” . Para que sejamos capazes de enfrentar os complexos problemas de nossa época – os quais, não deixemos passar, são cruciais não apenas para a nossa geração, mas para o futuro da vida no planeta – é preciso qualificar rigorosamente cada uma das variantes desta crise sistêmica (CAPRA, 2006), assim como os elementos estruturantes que a constituem como um todo. A esse respeito, não temos dúvida que a tríade interseccional classe, raça e gênero são categorias fundamentais, pois estruturam o conjunto das desigualdades e da degradação ambiental.
O sistema de acumulação capitalista se funda na divisão da sociedade em classes sociais ao destituir grandes contingentes humanos de meios de sobrevivência, os condenando à miséria. Estes contingentes, por sua vez, são demarcados por raça e gênero. Mulheres são subordinadas duplamente, tanto por sua mão de obra ser pior remunerada, quanto por serem também secundarizadas em espaços de decisões políticas, em postos de comando econômico, além de serem sexualizadas, objetificadas e associadas ao cuidado e ao trabalho doméstico. Igualmente, grupos historicamente racializados, como indígenas, negros e asiáticos são super explorados, seja por meio do colonialismo e do imperialismo, que espoliou estes continentes, seja porque atualmente tais grupos são situados nas esferas mais subalternas, que os colocam como mão de obra extremamente subvalorizada, quando não submetidos a formas contemporâneas de escravidão e necropolítica. O apagamento de suas histórias, extermínio e a negação de tais grupos como sujeitos de conhecimento também demarcam esta realidade.
Estamos certos que o processo iniciado pelo encontro de Assis requer necessariamente o esforço para a superação de tais antagonismos. A consequência lógica da economia de Francisco e Clara é que ela seja anticapitalista, antimachista, ecológica e antirracista. O próprio desenho do evento revela isso por meio de sua organização em 12 vilas, cada uma delas voltada para a discussão e o enfrentamento de um problema específico. Vilas como a intitulada Mulheres para Economia e CO2 de desigualdade mostram claramente o objetivo de enfrentar as desigualdades de classe, de gênero e a crise ambiental. No entanto, identificamos uma lacuna ao notar que não há uma vila que tenha como centralidade questões como raça e racismo, [neo]colonialismos e relações norte e sul globais.
Observamos também a ausência de nomes provenientes da África e da América Latina na programação original do evento, assim como a pouca tematização de questões étnico-raciais. Também notamos a sub-representação de sujeitos indígenas e afrodescendentes entre os jovens selecionados para participarem do evento, assim como a reduzida presença deles em posições de destaque nas mesas, debates e lives que foram realizadas neste processo.
Assim, um grupo de jovens brasileiros, organizados no âmbito da vila Vida e Estilo de Vida, passaram a refletir e a problematizar esta situação. Não nos faltava certeza de que o processo da Economia de Francisco e Clara, por sua lógica, questiona também o racismo, mas entendemos que, quando não se fala abertamente sobre a temática, dada sua a natureza, o racismo tende a se reproduzir e, desta forma, perpetuar as assimetrias em que homens brancos e europeus continuam a ocupar a centralidade e o poder. Infelizmente, o racismo não é um problema secundário que desaparece espontaneamente à medida que as desigualdades sociais são eliminadas, mas está ele próprio inscrito em processos silenciosos que constroem a desigualdade.
Organizamos, então, uma série de discussões a partir do tema “Enegrecer a economia de Francisco”. Esse processo culminou com a realização de um seminário dividido em dois eventos, cujos títulos foram: Descolonizando a Economia de Francisco: Empretecer (vídeo disponível neste link) e Descolonizando a Economia de Francisco: Povos Indígenas (vídeo disponível neste link). Resultou também destas reflexões a produção do artigo Terra, Teto e Trabalho – Por que o território deve anteceder todas as lutas?, publicado nesta coluna no dia 13 de fevereiro de 2021 e o texto que ora apresentamos, com o qual buscamos refletir mais detidamente sobre o racismo e suas consequências econômicas.
Não restam dúvidas de que o Papa Francisco tem apresentado uma pregação extremamente corajosa e profética. Trata-se de um Bispo de Roma que escolheu o nome do Santo de Assis para iluminar o seu pontificado, que clamou por uma igreja “dos pobres e para os pobres ”, que acusa corajosamente o sistema capitalista de gerar um sem número de iniquidades e que defende a urgência de mudanças estruturais que possam, evangelicamente, restabelecer a centralidade da vida humana e promover o amor a todas as criaturas e o cuidado com nossa casa comum.
Especialmente nas Cartas Encíclicas Laudato Si' (2015) e Fratelli Tutti (2020), o Santo Padre apresenta uma densa análise social e política. À luz da radicalidade evangélica, Francisco, o de Roma, assim como fez, outrora, o de Assis, denuncia uma ordem que tem massacrado não apenas a vida humana, mas a própria natureza. Trata-se de um complexo sistema que gera concentração de renda nas mãos de poucos, pobreza para muitos e danos planetários cada vez mais irreparáveis. Francisco mostra com muita clareza que os pobres são os que mais sofrem, seja por serem os mais explorados por um sistema que coloca o lucro em primeiro lugar, seja por serem os mais afetados com as terríveis consequências dos desequilíbrios ambientais.
Assim, o Pontífice constrói um pensamento ecológico que tem o pobre como ponto de partida. Temos notado, no entanto, que a questão do racismo aparece apenas pontualmente no magistério do Papa Francisco. Entendemos ser necessário que a temática seja encarada de frente, juntamente com outras questões muito bem problematizadas pelo Santo Padre, visto que o racismo está intrinsecamente associado a elas. Neste ponto, argumentamos que a concentração de riqueza, a desigualdade, a pobreza e o caos ambiental estão ligados umbilicalmente ao racismo, visto que a racialização, a divisão da humanidade em categorias raciais, é um dos elementos fundantes do sistema atual, da mesma forma que as classes sociais e o gênero.
Tomaremos como principal referência nesta parte do artigo a obra Racismo Estrutural, de autoria do filósofo e advogado Silvio Almeida. Este livro não apenas sintetiza os estudos sobre o tema, como produz uma análise sofisticada que retira o racismo de uma condição lateral para alçá-lo ao centro da modernidade, juntamente com a classe e o gênero. Para o autor, o racismo não é tema que possa ser abordado de maneira específica, pois não se trata de um acidente histórico ou sociológico que acontece aqui ou acolá, mas de algo que é sempre e necessariamente estrutural, por isso, está arraigado nas práticas sociais e políticas, de modo que “[...] a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo” (ALMEIDA, 2020, p. 20).
O racismo é, segundo o autor, “uma manifestação normal de uma sociedade” (ALMEIDA, 2020, p. 21), o que significa que sua ocorrência não é eventual ou um desvio moral ou ético, mas uma prática sistemática que se vale da racialização, na maior parte das vezes, feita de modo prático, não discursivo, para organizar e estruturar a sociedade.
“O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a sociedade. [...] Em suma, procuramos demonstrar neste livro que as expressões do racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade ”(ALMEIDA, 2020, p. 21).
Sendo um elemento estruturante da sociedade contemporânea, o racismo é um dos recursos por meio do qual esta sociedade foi e continua sendo construída. Trata-se, portanto, de um conceito histórico, manejado social e politicamente de modo a tornar possível as conquistas europeias ultramarinas, o regime colonial e, mais recentemente, a super exploração do trabalho e os novos colonialismos.
Em um sentido mais estrito, o racismo surgiu na segunda metade do século XIX, a partir da aplicação do darwinismo ao desenvolvimento humano, o que foi chamado de evolucionismo social. No entanto, o conceito moderno de racismo encontra suas origens no mesmo processo histórico que compele o homem europeu para a conquista de novos territórios, a partir de meados do século XV. Naquele momento, europeus decidiram subjugar e escravizar outros povos. Progressivamente, os africanos passaram a ser sequestrados da África, chamados de negros e levados para as colônias para trabalharem como escravos. Processo semelhante ocorreu com os nativos da América, que foram chamados de índios, submetidos à escravidão e a toda forma de violência.
De acordo com o antropólogo François Laplantine (2007), este contato europeu com outros povos engendrou um processo de reflexão de si mesmo e deste outro. Questões, como se estes povos pertenciam à humanidade ou se possuíam alma, davam o tom da reflexão europeia. Mais adiante, durante o século das luzes, ocorre o que pode ser chamado de invenção do conceito do homem. Trata-se de uma construção que descreve os europeus e mais rigorosamente os homens europeus. As mulheres do velho mundo não possuíam o mesmo status dentro da humanidade – eram apêndices do homem. Os povos de outros continentes, por sua vez, eram categorizados como selvagens. De acordo com Almeida (2020, p. 26),
“Do ponto de vista intelectual, o iluminismo constituiu as ferramentas que tornariam possível a comparação e, posteriormente, a classificação, dos mais diferentes grupos humanos com base nas características físicas e culturais. Surge então a distinção filosófico-antropológica entre civilizado e selvagem, que no século seguinte daria lugar para o dístico civilizado e primitivo”.
De fato, no século XIX, a hierarquização racial ganha contornos (pseudo)científicos. Na esteira da teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, desenvolve-se o chamado evolucionismo social, que produz um racismo que se pretendia científico. O conceito de raça emerge então claramente para hierarquizar e subjugar. Afirma-se que existem diferentes raças humanas, cada uma em um estágio distinto de evolução. Naturalmente, os brancos europeus eram tidos como os mais complexos e desenvolvidos, enquanto os africanos, indígenas e asiáticos eram tidos como primitivos e selvagens, atrasados na linha evolutiva humana e, portanto, desprovidos de superior desenvolvimento intelectual. Assim, a hierarquização das raças ganha autoridade científica e naturalização biológica, a ponto desta suposta inferioridade ser um argumento considerado conclusivo, por exemplo, para o imperialismo europeu e para o projeto de embranquecimento populacional no Brasil .
Desta maneira, como destaca Sílvio Almeida, o racismo encontra importância central para a instituição da ordem social imperialista do final do século XIX. A chamada Partilha da África e as inúmeras experiências de controle e até mesmo expurgação das “raças inferiores”, cujo exemplo mais radical são os campos de concentração nazistas, mas nem de longe o único , encontram na produção do conceito de raça a justificativa fundamental. Segundo Almeida (2020, p. 28):
“[...] É nesse contexto que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possam operar simultaneamente como fundamentos irremovíveis da sociedade contemporânea”.
Embora, na sequência histórica, o conceito de raças humanas foi refutado biologicamente, ele persiste como uma categoria social e política que, uma vez instituído, reproduz a si mesmo, tornando possível, igualmente, a reprodução das desigualdades. Assim, em síntese,
“Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meios de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo social ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2020, p. 32).
O racismo passa a definir, assim, os destinos de uns e outros, desde as formas de nascimento, de moradia e trabalho, como também estabelecendo quem vai mandar e quem vai obedecer, quem vai acessar a universidade ou não, quem vai exercer o trabalho braçal ou o trabalho intelectual, quem vai ser pobre ou rico, qual conhecimento e qual discurso vão ser aceitos como legítimos, quem vai ocupar espaços de prestígio e poder e até as maneiras e as razões pelas quais cada grupo social pode e deve viver ou morrer.
O racismo é uma forma de hierarquização das relações sociais. É mais um modo mais prático do que discursivo que permite, como já destacamos, o estabelecimento de uma série de desigualdades. Em cada país ou região, ele se manifesta de maneiras específicas, aprofundando uma ou outra desigualdade. De todo modo, é possível afirmar que os grupos sociais inferiorizados racialmente estarão situados nos piores lugares sociais que cada sociedade define como tal. No caso brasileiro, inúmeras pesquisas têm demonstrado a desvantagem social de negros e negras em variados espaços, como no mundo do trabalho, na saúde, na educação, na previdência social, na política, na ciência, na mídia etc. Isto significa que negros e negras não apenas são, sempre que possível, preteridos nestes esferas, como também que suas formas de manifestação, sua estética, sua visão de mundo, sua cultura, sua história, seus saberes historicamente sofrem discriminação e apagamento, assim como suas vozes são silenciadas.
Verifica-se, de fato, no Brasil a negação de diversos direitos básicos a essa população. Negros e negras são privados do capital cultural, social e financeiro, de modo que encontram maiores dificuldades para sua plena integração social. Estas discrepâncias necessitam ser localizadas, discutidas e alteradas. A constituição dessa ordem racialmente desigual remonta ao período escravocrata e continuou sendo alimentado após a abolição da escravidão. Os negros não tiveram espaço e nem oportunidade frente ao incentivo dado aos imigrantes brancos europeus. Apesar de a Lei Áurea ter decretado a libertação dos escravos, ela não evitou que os negros fossem colocados em uma situação de exclusão em vários âmbitos da sociedade, principalmente no mercado de trabalho, na educação básica e no ensino superior. Esta situação de exclusão e miséria é marcada pelo racismo e por benefícios que privilegiam a população branca.
Estudos mostram claramente estas discrepâncias estruturais no que diz respeito ao acesso a direitos básicos da população negra brasileira. O Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe (LEÃO et al., 2017) demonstra, por exemplo, como o acesso à educação no Brasil é mais difícil para os negros. De acordo com o estudo, em 2015, 9% da população negra não possuía nenhuma escolaridade, enquanto os brancos nesta situação somavam 4%. O estudo mostra também que, no mesmo ano, a média de escolaridade de pessoas brancas era de 10 anos, enquanto a da população negra era de 8 anos. Já a conclusão de curso superior no Brasil, em 2015, contemplava 19% da população branca e apenas 7% da população negra. A mesma pesquisa demonstra ainda inúmeras outras desigualdades, como a desigualdade de renda. Em média, em 2015, famílias brancas possuíam renda per capita média de R$ 1.528,00, enquanto, entre as negras, a renda per capita girava em torno de R$ 845,00.
A pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil (IBGE, 2019) permite observar a desigualdade entre negros e não negros em diversas situações da vida cotidiana. Este estudo demonstra, por exemplo, que, no ano de 2018, praticamente o dobro de negros vivia em moradias sem acesso ao saneamento básico em relação aos brancos: 12,5% das residências negras não possuíam coleta de lixo, enquanto domicílios de brancos sem este serviço somavam 6%. A população negra possuía também menor cobertura de rede coletora e pluvial: eram 42,8% de negros sem este serviço, enquanto brancos somavam 26,5%; negros também possuíam, naquele ano, menos abastecimento de água, com 17,9% dos domicílios sem fornecimento, enquanto brancos somavam 11,5% sem água encanada.
O Atlas da Violência (IPEA, 2020), por sua vez, mostra que os negros e negras possuem chances bem maiores de serem assassinados no país. Segundo o estudo, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil foram negros. Não se trata, porém, de um fato isolado, mas de uma tendência de crescimento, visto que o estudo mostra também que o número de assassinatos de negros e negras cresceu 11,5% no Brasil no período entre 2008 e 2018, enquanto o de não-negros reduziu 12,9% no mesmo período. Quando se observa pela ótica do gênero, a desigualdade persiste, visto que 68% das mulheres assassinadas, em 2018, eram negras. Destaca-se também que, entre os anos de 2008 e 2018, a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7% e a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%. Estas são apenas algumas das muitas situações em que podem ser observadas as desigualdades raciais. Assim, é urgente que pensemos em uma economia que busque também a eliminação destas injustiças.
Diante da proposta de “realmar” a economia, urge a necessidade de pensar as relações entre o sistema de acumulação capitalista e o racismo. De fato, a perpetuação do racismo é reforçada cada vez mais pelo capitalismo. A exploração e a opressão, especialmente dos corpos negros, é antes de tudo econômica, pois está intrinsecamente ligada aos processos de acumulação de riqueza e geração de desigualdades. Dentro de um sistema que exclui e oprime negros e negras, um dos primeiros passos para romper com estas estruturas é compreender que o racismo estrutural produz um sistema de privilégios econômicos – mas também simbólicos e culturais – para a branquitude. É imprescindível que esses grupos que foram historicamente oprimidos, massacrados pelo poder colonial, espoliados pelo sistema vigente possam ocupar seu lugar de fala na construção dessa nova economia, proposta pelo Papa Francisco. É fundamental compreendermos que, se não há debates, questionamentos e campanhas que mexam com as estruturas dos privilegiados, a prática do racismo seguirá sendo perpetuada.
O processo de construção de outra economia, que elimine as desigualdades raciais, de classe e de gênero e que seja ambientalmente sustentável, requer a ampliação e a diversificação dos sujeitos participantes. A baixa presença de pessoas negras nessa construção tem como consequência o risco de o racismo estrutural persistir se reproduzindo. Se quisermos encontrar uma nova proposta econômica que não exclui, não oprime e não mata a negritude, é preciso se perguntar qual é a proporção de pessoas negras envolvidas na mobilização dessa nova economia. De fato, a invisibilidade da participação da juventude negra faz com que os problemas colocados pelo capitalismo, que marginaliza os corpos negros, nem sejam tratados. Assim, como nos lembrou o Papa Francisco no encerramento do encontro em Assis, é necessário garantir que os grupos que são cruelmente afetados pelo sistema capitalista sejam protagonistas na construção dessa economia. A contribuição negra seria muito importante, por exemplo, para compartilhar experiências, conhecimentos, saberes ancestrais, modos de organização social, política e economicamente alternativos, maneiras de se relacionar com a natureza, os quais certamente contribuirão para a promoção de uma economia verdadeiramente justa, democrática e inclusiva.
Assim, entendemos que a incorporação da luta antirracista, juntamente com a luta anticapitalista e antimachista, precisa ocupar a centralidade no âmbito da Economia de Francisco e Clara. Esta construção precisa, de fato, ser também de Dandara e Zumbi dos Palmares, Marielle Franco, Harriet Tubman, Nelson Mandela, Martin Luther King e tantos outros. Acreditamos que devemos operar em duas frentes: uma interna e outra externa. Internamente à Economia de Francisco e Clara, consideramos importante que sejam criados espaços equitativos do ponto de vista étnico-racial, que seja reconhecida a validade epistemológica do conhecimento produzido pelos sujeitos negros e indígenas e que os sujeitos do sul global sejam participantes ativos das análises de conjuntura, das tomadas de decisão e dos eventos públicos. Externamente, acreditamos que a Economia de Francisco e Clara deva atuar para que o racismo seja combatido, questionado e denunciado em todas as esferas sociais, a fim de que as assimetrias raciais sejam superadas.
Elizabeth dos Santos Machado, graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Amazonas. Professora de História no Projeto Conquistar da Secretaria de Estado de Educação do Estado do Amazonas. Professora de História no Instituto Denizard Rivail e no Fusão Preparatório e Reforço
Philippe Silva, licenciando em Ciências Biológicas pelo Instituto Federal do Sul de Minas Gerais e aluno especial do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na UNICAMP. Conselheiro Estadual no Conselho de Segurança Alimentar, Nutricional Sustentável do Estado de Minas Gerais. Membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara
Josimar Priori, professor do Instituto Federal do Paraná. Doutor em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre e Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. Autor de A luta faz a lei: reflexões sobre política, movimentos sociais e associações de moradores em Sarandi-PR
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