Professor propõe uma análise para a questão desde uma ideia de ‘metafísica do racismo’
O racismo é mais um advento da Modernidade. É o que defende o professor Wanderson Flor do Nascimento. Por isso, para compreender essa prática é preciso levar em conta outros processos que se dão desde a Modernidade, como a colonização e mesmo a instrumentalização e implementação do capitalismo. “Ele é sempre uma nova roupagem para uma lógica que iniciou nos começos da colonização, antes mesmo da escravidão e dos conflitos que esta produzira. O principal desafio para o enfrentamento do racismo é perceber como ele é constitutivo dos processos modernos e que, de forma nenhuma, é um acidente ou um percalço na história da construção de nossos tempos”, resume.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Nascimento explica que empreende a expressão ‘metafísica do racismo’ “para circunscrever uma certa abordagem do racismo que, para além de um sistema de práticas e valores que organiza as relações entre as pessoas, se mostra como uma imagem da realidade”. Logo, conclui que “o racismo se mostra como uma imagem de realidade. Esta imagem não seria apenas descritiva, mas, sobretudo, prescritiva”. “Esta metafísica do racismo implicaria, também, em uma antropologia filosófica racializada. Os corpos marcados pela raça, em sua dimensão negativa, inferiorizada, seriam mais próximos de um funcionamento bruto da natureza”, acrescenta.
Assim, para ele, racismo e capitalismo nascem e sempre andam juntos. “Na prática, o racismo ensinou o capitalismo a ser este mecanismo em teoria emancipatório e meritocrático, mas materialmente expropriador e explorador”, observa. E, logo, se na pós-modernidade compreendemos que o capitalismo tem uma capacidade adaptativa, o mesmo pode valer para o racismo. “Como o racismo é fundante e anterior ao capitalismo, o que ocorre é que este finda em reproduzir e fortalecer aquele”, acrescenta.
E, para melhor compreender essa prática em movimento, propõe novas abordagens. “Trazer novas interpretações ao problema do racismo consiste, sobretudo, em montar escutas atentas, nem estigmatizantes nem folclorizantes daquilo que o pensamento produzido por outros povos que não os ocidentais, têm produzido”, defende. “O grande desafio, para o enfrentamento do racismo, é enfrentar esta imagem metafísica do racismo que, ao ser naturalizada, dificulta em muito a transformação das relações opressivas que derivem dessa mesma imagem”, propõe.
Wanderson Flor do Nascimento (Foto: UNB)
Wanderson Flor do Nascimento é graduado em Filosofia, especialista em Ensino de Filosofia, mestre em Filosofia e doutor em Bioética pela Universidade de Brasília – UnB. É professor do Departamento de Filosofia da UnB, do Programa de Pós-Graduação em Bioética (FS/UnB), do Programa de Pós-Graduação em Metafísica (IH/UnB), do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Ceam/UnB) e colaborador dos programas de mestrado profissional em Sustentabilidade junto aos Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB) e de Filosofia (Prof-Filo - Polo UFT). Entre suas publicações, destacamos Tecendo redes antirracistas: Áfricas, Brasis, Portugal (Belo Horizonte: Autêntica, 2019) e Quarentena Humana e Estado de Exceção (Curitiba: Prismas, 2017).
IHU On-Line – Em que consiste e como compreender a ‘metafísica do racismo’?
Wanderson Flor do Nascimento – Tenho pensado a expressão “metafísica do racismo” para circunscrever uma certa abordagem do racismo que, para além de um sistema de práticas e valores que organiza as relações entre as pessoas, se mostra como uma imagem da realidade. Como, classicamente, a metafísica se dedicou a pensar sobre os fundamentos, sobre as estruturas fundamentais, sobre os processos basilares da realidade e seu funcionamento, essa abordagem do racismo apontaria para a situação de que o racismo se mostra como uma imagem de realidade. Esta imagem não seria apenas descritiva, mas, sobretudo, prescritiva.
Esta imagem supõe um real ordenado por diferenças hierarquizadas, fundando uma espécie de hierarquia da diferença, de modo que a inferioridade e a superioridade percebidos entre os elementos da realidade seriam naturais, e não produtos de uma construção intramundana desta distinção.
No que diz respeito aos seres humanos, essa diferença hierarquizada se expressaria no corpo que projetaria distinções cognitivas e morais. Esta metafísica do racismo implicaria, também, em uma antropologia filosófica racializada. Os corpos marcados pela raça, em sua dimensão negativa, inferiorizada, seriam mais próximos de um funcionamento bruto da natureza, ao passo que os corpos marcados de modo positivo, em uma dimensão superiorizada, pela raça estariam mais próximos às ações racionais e culturais com a natureza. Um exemplo desta distinção seria a afirmação de corpos negros ou indígenas habitados pela natureza imediata, enquanto os corpos brancos seriam habitados pela razão mediadora. E mais que uma mera distinção, teríamos aqui uma hierarquia entre os corpos brancos, superiores, e os corpos negros e indígenas, inferiores.
O grande desafio, para o enfrentamento do racismo, é enfrentar esta imagem metafísica do racismo que, ao ser naturalizada, dificulta em muito a transformação das relações opressivas que derivem dessa mesma imagem. Politizar esta imagem e devolvê-la ao campo das construções humanas, nas sociedades, culturas e histórias é um caminho importante para o combate desta prática nociva que é o racismo.
IHU On-Line – De que forma podemos compreender como a filosofia ocidental (branca e europeia) constitui sua supremacia ao longo dos tempos? Como essa filosofia deslegitima outras formas de pensamento e cosmovisões?
Wanderson Flor do Nascimento – Um provérbio presente nas culturas de vários países africanos afirma, em uma de suas versões, que “enquanto a história da caça for contada pelo caçador, o leão será sempre visto como perdedor”. Essa é uma das maneiras de compreender a ideia benjaminiana de que a história que conhecemos é a história contada pelos vencedores. A história da filosofia ocidental foi narrada de modo a promover sua supremacia.
Ao entender uma origem exclusivamente europeia da filosofia (em que pese que sequer a ideia geográfica ou geopolítica de Europa existia quando do mítico nascimento grego da filosofia no século VI antes da era comum), ignorando todo o trânsito de ideias, saberes e culturas não só no Mediterrâneo, que banha três continentes, sustentou-se uma certa primazia do pensamento europeu sobre os outros modos de pensar existentes no mundo. Esta estratégia me parece nascer no mundo moderno, que é o locus de nascimento tanto da ideia de Europa, como da origem europeia da filosofia.
O mundo moderno é totalmente atravessado e constituído por essa metafísica do racismo. E como há, nessa imagem hierarquizada da realidade, a percepção de que apenas as pessoas brancas são capazes de um pensamento altamente sofisticado, secundarizou-se as outras percepções de mundo e suas formas de conhecimento, muito embora isso que entendemos como pensamento europeu é muitíssimo tributário, como muitos estudos já demonstraram, de reflexões produzidas tanto no Oriente como no continente africano.
A supremacia da filosofia ocidental é o resultado de uma história do apagamento dessas muitas contribuições de todo o mundo para a comunidade terrena do pensamento.
IHU On-Line – Como as filosofias africanas podem contribuir para compreender o racismo? Como trazer novas interpretações ao racismo de nosso tempo?
Wanderson Flor do Nascimento – As filosofias africanas têm se debruçado sobre todos os grandes problemas filosóficos que atravessam nosso tempo. E, buscando em seu solo cultural elementos para as reflexões, tem uma contribuição muito criativa para o debate desses problemas.
Como a história moderna do continente africano foi também atravessada pelo racismo, com um tremendo impacto humanitário que, ainda hoje, mostra seus efeitos, as práticas de pensamento destes povos que resistiram, apesar das forças políticas da modernidade, ao empreendimento colonial têm muitos elementos histórico-culturais para abordarem com profundidade e consistência o problema do racismo.
Trazer novas interpretações ao problema do racismo consiste, sobretudo, em montar escutas atentas, nem estigmatizantes nem folclorizantes daquilo que o pensamento produzido por outros povos que não os ocidentais, têm produzido. O imenso desconhecimento do que fora produzido no continente africano, no Oriente e entre os povos originários do continente americano impede, ou pelo menos dificulta, que a discussão sobre o racismo seja enriquecida e fortalecida por estas perspectivas outras sobre o mundo em que vivemos. É preciso enfrentar o racismo para que essas outras abordagens sejam utilizadas para pensar o próprio racismo.
IHU On-Line – Qual a relação, do ponto de vista histórico, entre capitalismo e racismo e como as filosofias africanas ajudam a trazer à tona essa correlação de forças?
Wanderson Flor do Nascimento – Historicamente, o capitalismo e o racismo emergem no mesmo contexto. E não apenas isso. O racismo informa e determina os modos de funcionamento do capitalismo, desde sua aparição. O ideal emancipatório que o capitalismo pretendia, em contraposição às economias expropriatórias do Antigo Regime europeu, ao ser executado em um contexto em que o racismo produziu a escravidão moderna – lembrando que a escravidão moderna foi o principal motor de formação do capitalismo e de sua lógica de acumulação expropriatória – foi minado em suas intenções iniciais. Na prática, o racismo ensinou o capitalismo a ser este mecanismo em teoria emancipatório e meritocrático, mas materialmente expropriador e explorador.
IHU On-Line – Em que medida, ainda hoje, o capitalismo é um ingrediente que incita o racismo?
Wanderson Flor do Nascimento – Penso que, como o racismo é fundante e anterior ao capitalismo, o que ocorre é que este finda em reproduzir e fortalecer aquele. Esta hierarquização entre os exploradores proprietários dos meios de produção e os explorados trabalhadores reproduz a mesma lógica racista que foi impressa na escravidão moderna. Os meios vão se tornando mais sofisticados, mas a estrutura persiste a mesma. Talvez seja mais preciso dizer que o racismo e o capitalismo se incitam mutuamente.
IHU On-Line – Que nexos podemos estabelecer entre o racismo contra negros e contra povos originários da América, os índios?
Wanderson Flor do Nascimento – Os povos originários do continente americano e os povos originários do continente africano passaram por processos distintos de relações de opressão, mas ambos regidos pela lógica racista da modernidade. De uma maneira mais simplificada, podemos dizer que o racismo dividiu o mundo hierarquicamente entre os brancos e os outros. E, mesmo que de formas diversas, os vários outros tiveram seu lugar de subalternização promovido pela lógica do racismo. A violência, a tentativa de dominação e, no limiar, o extermínio, foram fenômenos que assolaram todas essas figuras que a imagem racista de realidade prescreveu.
IHU On-Line – A partir das manifestações em decorrência da morte de George Floyd, incitou-se o debate acerca de monumentos em homenagem a homens que apoiaram seus feitos na escravização e supressão de negros. Como compreende esses gestos e a ressignificação da memória?
Wanderson Flor do Nascimento – A memória é ao mesmo tempo um repositório e um processo que cuida, de modos diversos, destes elementos que a habitam. A memória guarda as histórias que vivemos, mas também agencia as histórias que queremos viver. Esses agenciamentos comportam apagamentos, monumentalizações, recusas, afirmações, entre tantos outros gestos históricos vinculados com essas histórias que os grupos da sociedade querem que seja a história “oficial”.
A recusa de que se monumentalizem ícones da violência racista aponta para um desconforto com a reprodução desta mesma história protagonizada por essas pessoas monumentalizadas. É um gesto que aponta para a necessidade de desfazer a continuidade histórica que faz com que se festeje e celebre ainda a presença desses ícones nos tempos de hoje, fazendo explícito que a história tem se mantido ou se repetido em grande medida. A ressignificação da memória é a busca por uma outra história presente e futura, baseada em uma releitura da história que contamos do passado.
IHU On-Line – Que conceitos e autores podem nos auxiliar a compreender o racismo no Brasil tendo em perspectiva o racismo em outras partes do mundo?
Wanderson Flor do Nascimento – O pensamento negro no mundo tem nos presenteado com muitas ferramentas conceituais para pensar este fenômeno. Vou dizer aqui de alguns/mas autores/as que gosto, não por serem os únicos, mas por serem para meu pensamento figuras interessantes.
Começo com duas autoras brasileiras: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, que buscaram, em interfaces entre a Filosofia e outras ciências humanas, compreender os modos como o racismo atravessou a experiência brasileira de modo diverso a de outros países do mundo. Sueli nos apresenta o dispositivo de racialidade, em sua vasta produção conceitual que está expressa em sua tese de doutoramento (mas não só), que permite compreender os modos como o racismo é, além de repressivo e violento, produtor de subjetividades, que no contexto brasileiro, difere do que se passou no continente africano e nos EUA, por localizar de modo bastante específico os corpos negros, em consonância com nosso projeto de nação, como inscritos em um signo da morte.
Lélia Gonzalez nos apresenta, entre tantos outros conceitos potentes, a ideia de racismo por denegação, que descreve a ação do racismo em atuar mesmo em uma negação de sua existência ou da existência de seus agentes. Ela nos alerta para o caráter de ocultamento da matriz organizativa do racismo, mesmo quando ela está em pleno funcionamento e mostrando, sem meios-termos, toda a potência destrutiva de seus resultados.
O martinicano Frantz Fanon, que também produziu muitos conceitos potentes para a compreensão do racismo, nos ensinou que uma das principais dinâmicas do racismo consiste na sua potência de internalização por parte das próprias pessoas que são racializadas como não-brancas. Essa teorização nos mostra que o racismo é um complexo sistema que posiciona alguns grupos humanos na zona do ser e outros na nefasta zona do não-ser, na qual toda a destruição é não só permitida, como, em alguma medida, desejada pelo tecido social.
O camaronês Achille Mbembe, ao explorar as diferenças históricas experimentadas nos países que foram colonizados, percebe a presença dessa lógica de organização política das sociedades contemporâneas atravessadas por aquilo que ele chamou de necropolítica, ou políticas que inscrevem as populações racializadas (ou que ocupam o lugar simbólico subalternizado que a modernidade aprendeu com a experiência das pessoas negras) no regime da própria morte da sistemática exposição a ela. Essa gestão das populações por meio do governo da morte, de quem pode viver e quem deve morrer ou ser exposto a uma morte não lamentável, informa que tipo de desejo a sociedade passa a ter de como a vida deve funcionar e como as relações de inimizade se tornam um motriz de organização das relações humanas.
Estes são apenas alguns exemplos de teorizações que podemos utilizar para pensar em como o racismo funciona no Brasil. Mas é importante frisar que se deve incentivar a leitura das pessoas negras. E não nos prendermos apenas nesses exemplos, mesmo que muito interessantes. A história do apagamento pode se reproduzir quando apenas escolhemos trabalhar com alguns poucos conceitos de alguns poucos autores que nos chegam fortuitamente às mãos. Combater o racismo significa, também, manter uma outra política de aprendizado sobre quem vale a pena ser lido.
IHU On-Line – Como se configura o racismo no século XXI e quais os desafios para o superar?
Wanderson Flor do Nascimento – De alguma maneira as respostas às questões anteriores apontam para o modo como percebo o racismo hoje. Ele é sempre uma nova roupagem para uma lógica que iniciou nos começos da colonização, antes mesmo da escravidão e dos conflitos que esta produzira. O principal desafio para o enfrentamento do racismo é perceber como ele é constitutivo dos processos modernos e que, de forma nenhuma, é um acidente ou um percalço na história da construção de nossos tempos.
Isso implica em assumir como é impossível a compreensão de nosso tempo de maneira precisa sem acompanhar a história do racismo no mundo moderno. Enfrentar o racismo implica em conhecer esse inimigo que nos espreita em cada canto, cada olhar, cada valor e cada prática, mesmo quando não sabemos que está lá. Desconstruir o racismo passa por perceber que ele não é episódico, não é uma mera falha de caráter, falta de controle, um gesto impensado, ou uma violência pontual.