03 Julho 2020
Vivemos tempos de obscuridade. Um agente infeccioso (novo coronavírus ou SARS-CoV-2) colocou o mundo em xeque. A pandemia foi impiedosa, severa e expôs os grandes males que a globalização escondia debaixo do tapete - e que muitos, sobretudo políticos, tecnocratas, empresários, negavam completamente sua existência -: as desigualdades pavorosas entre as nações e os estratos sociais, a discriminação de classe, a precarização trabalhista, o frágil sistema de saúde pública, em particular nos países subdesenvolvidos, e o perverso afã de lucro de uns poucos - a indústria farmacêutica e a saúde privada, por exemplo - ao custo da vida das pessoas.
Antoni Aguiló é filósofo e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal), mas é, sobretudo, um pensador que disseca, com criatividade, originalidade e inteligência crítica, a totalidade do real. Para ele, as políticas macroeconômicas de conteúdo neoliberal, que desencadearam em décadas passadas, tanto na América Latina como na Europa, um tsunami de cortes do gasto público, tiveram efeitos nocivos sobre a saúde das pessoas, ao mesmo tempo em que corroeram a capacidade dos Estados em garantir o bem-estar social. “Para o neoliberalismo, a saúde é um negócio lucrativo, não um direito social exigível”, assinala à RPP Mundo.
A entrevista é de Oswaldo Palacios, publicada por RPP Noticias, 28-06-2020. A tradução é do Cepat.
Existe um vínculo entre a expansão desse tipo de vírus e a destruição da natureza pelas atividades humanas? De acordo com o tradutor e estreito colaborador do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, com quem publicou o livro Aprendizajes globales: descolonizar, desmercantilizar y despatriarcalizar desde las epistemologías del Sur (Icaria, 2019), a pandemia que apavora todos os rincões do globo é produto da violência de uma arquitetura econômica depredadora e neoextrativista (que predomina na atualidade). “Se o ser humano seguir assim, consumindo e destruindo tudo, os animais selvagens não terão nenhuma proteção contra doenças e seguirão transmitindo-as aos humanos”, adverte.
A crise do coronavírus - explica Antoni Aguiló - reproduz e acentua as desigualdades persistentes (a distribuição assimétrica de bens, recursos e serviços em escala mundial) e põem em destaque os paradoxos de uma economia mundializada que ignora (e invisibiliza) a existência de limites físicos do planeta e da vida natural. “O ser humano deveria utilizar sua posição privilegiada no planeta para forjar uma nova aliança com a natureza, considerando-a algo vital, um elemento imprescindível para sua própria sobrevivência”, disse.
Vários pesquisadores e organismos advertiram, há anos, sobre a iminente aparição de uma pandemia, mas muitos países não adotaram as medidas adequadas para evitá-la e, pior ainda, reduziram seu orçamento para a saúde pública, outros até (os governos de extrema direita) atacaram a ciência. Por que a partir dos anos 1980 os serviços públicos, entre eles o de saúde, começaram a ser desmantelados em escala global e que responsabilidade tem o modelo econômico atual?
Desde os anos 1970, o capital financeiro especulativo é a prioridade absoluta da agenda política global. Com a queda do socialismo na Europa do Leste, começou a ofensiva mundial do monopólio financeiro. Triunfou o que Eric Hobsbawm chamou de “teologia neoliberal” e seus três mandamentos: liberalização, desregulamentação e privatização. Estes aplainaram o caminho para os países do Norte global, com a colaboração de organismos internacionais como o Banco Mundial e através de acordos de livre comércio, forçaram a abertura de mercados para satisfazer os interesses comerciais da indústria biotecnológica, da indústria farmacêutica e dos seguros de saúde. A saúde pública se desmantelou e perdemos a soberania sanitária.
Para o neoliberalismo, a saúde é um negócio lucrativo, não um direito social exigível. Quando muito, é um serviço meramente assistencial para os casos de extrema pobreza, o que não tem nada de surpreendente se levarmos em conta de onde viemos. As democracias liberais são o produto de uma cultura política e econômica exclusiva que sempre glorificou a propriedade privada (do homem branco, alfabetizado e heterossexual) e não está para atender às miudezas da plebe, como a saúde, a educação, a moradia, o salário, etc.
A crise do coronavírus é a ponta do iceberg que está evidenciando a incompatibilidade entre capitalismo e vida. Viemos de uma economia sacrificial que é consciente de que existem crianças famintas, trabalhadores precários, pessoas despejadas por bancos e pessoas morrendo por falta de assistência médica. A pandemia tornou muito mais visíveis as limitações de um sistema de saúde centrado no tratamento das enfermidades, mais que em sua prevenção.
Na Espanha, no início da crise, não havia máscaras, nem equipamentos de proteção suficientes para os profissionais da saúde. Naquele momento, assistíamos à guerra comercial em grande escala pelas máscaras e os respiradores e hoje assistimos a corrida das grandes empresas farmacêuticas para desenvolver tratamentos antivirais. Competirão também para defender a saúde como um direito humano e colocar as descobertas científicas a serviço do bem comum?
O coronavírus afeta de maneira diferente os grupos sociais. Isto é evidente, por exemplo, nos países da América Latina e África, onde milhões de pessoas vivem em bairros marginais em condições de superlotação e com sistemas de saúde frágeis e, além disso, vivem de suas rendas do dia. Essa crise deixará com sua passagem um mundo com maior desigualdade social e concentração da riqueza?
É preciso rejeitar essa espécie de humanização do vírus que o torna o grande inimigo abstrato que justifica tudo. Os vírus não discriminam, são as pessoas que discriminam. O vírus se aproveita das condições de vida prévias para intensificar de maneira descarnada as desigualdades. Por que no Brasil os distritos com mais mortes suspeitas e confirmadas de coronavírus se concentram nas favelas? Por que os afro-americanos apresentam taxas preocupantemente mais elevadas de morte que o resto dos estadunidenses? Por que durante o confinamento disparou a violência contra as mulheres? Por que a pandemia agrava a discriminação que as pessoas LGTBI (solicitações de asilo paralisadas, enorme solidão das pessoas idosas, pessoas obrigadas a conviver com quem as humilha, etc.) sofrem? Em escala global, as possibilidades dos grupos mais vulneráveis de ter acesso a um atendimento médico de qualidade se viram reduzidas, quando não impossibilitadas.
O vírus passará, mas estes problemas persistirão. A pobreza, o racismo e o patriarcado são os autênticos vírus deste planeta, e há aqueles que estão muito interessados em propagá-los e beneficiar-se deles. Por acaso não escutamos discursos negacionistas e irresponsáveis como os de Trump e Bolsonaro, afirmando que, pelo bem do mercado, tínhamos que voltar ao trabalho? Senadores republicanos estão sendo investigados supostamente por usar informação privilegiada sobre a pandemia para se enriquecer.
O resultado da crise não está predestinado, mas o certo é que uns morrem e outros se beneficiam. De fato, já estamos vendo como a direita e a extrema direita pedem cortes e reduções de salários em benefício de uns poucos e em nome do mercado. Na Espanha, Vox qualificou de “paguita” a renda mínima vital aprovada pelo Governo. Na mesma linha, algum diretor empresarial criticou, em uma recente cúpula econômica, que essas políticas fomentam a “ociosidade”.
O problema epidemiológico atual apaga a ilusão de invulnerabilidade da civilização ocidental, ao mesmo tempo, indica que tem muito a ver com a mudança climática e a perda de biodiversidade, causadas pela exploração e depredação econômica. Essa amarga experiência se traduzirá em um trato amigável com a natureza e o ecossistema?
Não é necessário recorrer a teorias conspiratórias sobre a origem da pandemia. O problema é a falta de respeito aos animais e a natureza em geral, seja o maltrato animal (como é o caso de galinhas e porcos criados em fazendas intensivas), o mar convertido em lixeira, o desmatamento de florestas inteiras, as más práticas agrícolas (uso de agrocombustíveis, poluição do ar, da água, ou seja, do próprio meio ambiente que constitui nosso habitat, etc.). Os coronavírus são o resultado da destruição de ecossistemas e habitats de animais. Se o ser humano seguir assim, consumindo e destruindo tudo, os animais selvagens não vão ter nenhuma proteção contra enfermidades e seguirão transmitindo-as aos humanos. A gripe de 1918, que causou 50 milhões de mortes em pouco mais de um ano, foi causada por um vírus aviário.
Dada a nossa visão mercantilista da natureza, é provável que cometamos os mesmos erros. A crise climática que enfrentamos é sistêmica. A grande esperança é que a consciência de nossa vulnerabilidade e dependência se transfira massivamente para a mudança climática. Ouve-se falar muito sobre as perdas econômicas causadas pelo coronavírus, mas apenas se fala da relação entre o coronavírus e a questão ambiental, porque não interessa. Será necessário esperar que as pessoas morram em massa por não poder respirar o ar saudável para agir decretando novos estados de alarme e confinamentos.
O ser humano deveria utilizar sua posição privilegiada no planeta para forjar uma nova aliança com a natureza, considerando-a vital, um elemento imprescindível para sua própria sobrevivência. Temos que aprender nos vincular a ela, um pouco como ocorre com o sonho do filósofo Chuang Tzu, que escreveu: “Chuang Tzu sonhou que era uma mariposa. Ao despertar, ignorava se era Chuang Tzu que havia sonhado que era uma mariposa, ou se era uma mariposa que sonhava ser Chuang Tzu”.
Talvez sejamos apenas seres enganados que sonhamos que a Terra nos pertence, em vez de assumir que lhe pertencemos. Tem razão Boaventura de Sousa Santos quando diz que temos a necessidade de aprender dos povos e culturas com outra visão da natureza. É um passo fundamental para nos descolonizar, para conseguir uma mudança de atitude e construir alternativas distantes do projeto civilizatório moderno imperante. Esses saberes descoloniais também fazem parte de tradições intelectuais subalternas no Ocidente, mas muitas vezes ignoradas. Giordano Bruno, Spinoza, Francisco de Assis, Aldo, Leopold, Thoreau e poetas como Lucrecio, Giacomo Leopardi e Walt Whitman são testemunho disso. Relacionaram a natureza com um sentimento de admiração e respeito, não com o cálculo egoísta e a utilidade.
Que fatores poderiam explicar o fato de que alguns países tenham tido êxito, no momento, na gestão da pandemia de covid-19, entre eles, Alemanha, Taiwan e Coreia do Sul, e outros, como os Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, fracassaram na gestão da crise?
Existem fatores que não dependem do controle direto dos líderes políticos, como a densidade populacional e os benefícios de ser um território insular, mas o êxito ou fracasso da gestão da pandemia depende, em resumo, de se deixar assessorar por cientistas e especialistas em saúde pública e em adotar medidas decisivas o quanto antes possível, conforme a necessidade. Houve países que agiram tarde e mal.
Além disso, nem todas as decisões e recomendações de saúde pública são racionais. Existe um montão de preconceitos culturais e de cálculos políticos em jogo. Lembram-se de Trump, que sugeriu tratar o coronavírus com injeções de alvejante? Na Espanha, o cardeal arcebispo de Valência afirmou em uma homilia que uma das vacinas que se investiga, neste momento, “é fabricada a partir de células de fetos abortados”. Quem se opõe às vacinas como instrumento de prevenção utiliza argumentos falaciosos desse tipo.
Mais interessante me parece é a análise da gestão da crise nos países governados por mulheres, que em linhas gerais tem mantido taxas mais baixas de morte e de propagação do vírus. A Nova Zelândia foi um dos países mais rápidos a fechar fronteiras, assim como a Dinamarca, na Europa. A Alemanha foi um dos primeiros países europeus a realizar testes em massa, o vice-presidente de Taiwan é um epidemiologista. São exemplos de liderança que contrastam com a liderança machista e personalista de dirigentes como Trump, Duterte, Bolsonaro e Boris Johnson.
A busca do lucro e acumulação são pilares da sociedade contemporânea. De fato, nesses meses de pandemia, outras monstruosidades foram reveladas: a nula solidariedade ao próximo. Por exemplo, no Peru, o setor farmacêutico, que opera como um oligopólio, multiplicou até por 9 o preço de alguns medicamentos que são utilizados para combater a covid-19. É possível construir redes de solidariedade e cooperação no momento em que os setores populares são duramente afetados pelo confinamento obrigatório e a estigmatização?
Penso que são dois os grandes aprendizados (ou lembretes) que essa crise nos deixa. O primeiro tem a ver com o nosso sentido do possível. Um dos falsos relatos inculcados pelo neoliberalismo proclama que não há alternativas aos modos de vida dominantes. Isto quer dizer que não existem alternativas possíveis para a fome, a pobreza, o militarismo, o machismo, o racismo, a destruição ecológica etc. É um relato que já foi desmentido por movimentos sociais alternativos. É absolutamente falso que nada pode mudar, porque a realidade está aberta, flui.
Quem diria, há apenas alguns meses, que milhões de pessoas permaneceriam confinadas? Não havia sociólogo e nem economista sério que previsse. O vírus manifestou, mais uma vez, o caráter finito e contingente do capitalismo, demonstrando que a realidade pode ser mudada. A Irlanda nacionalizou hospitais privados, o Canadá aprovou importantes ajudas de até quatro meses de renda básica para quem perdeu seu emprego, Portugal tratou imigrantes e solicitantes de asilo como cidadãos de pleno direito, durante a pandemia, a Espanha aprovou uma renda mínima vital para os mais vulneráveis. Disseram-nos que nada disso jamais aconteceria e que não poderia acontecer.
O segundo aprendizado tem a ver com as nossas prioridades vitais e nossa consciência coletiva. Domesticam-nos para sermos indivíduos produtivos, conformistas e acríticos, mas não nos educam para crescer como pessoas, para ampliar a fronteira de nossa autoconsciência planetária e muito menos para nos cuidar e construir um nós baseado no respeito, no amor e na dependência mútua.
Marx deu muita importância ao caráter social das relações humanas. Explicou por que as pessoas estão isoladas, por que estamos tão desconectados uns dos outros e como perdemos este vínculo, tornando-nos em seres alienados. O coronavírus nos fez refletir novamente sobre a importância do social e do comum, levou-nos a percebermos que o relacional é necessário para a nossa saúde mental e emocional. Até mesmo a dois metros de distância podemos construir novas relações humanas.
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“Os autênticos vírus deste planeta são a pobreza, o racismo e o patriarcado”. Entrevista com Antoni Aguiló - Instituto Humanitas Unisinos - IHU