“Pois bem, podem as práticas de implementação de energia com fontes renováveis em comunidades populares serem sinais da presença amorosa e libertadora de Jesus de Nazaré? Claro que sim, pois são boas notícias para os pobres e gestos de louvor a Deus, que tudo criou com amor e em tudo e em todos os seres vivos está presente. Ele e a Mãe Terra querem que os seres humanos vivam em territórios que sejam jardins, cheios de biodiversidade e fontes de alimentos para todos os seres viventes. E por isso as práticas que ajudam a diminuir as emissões de gases de efeito estufa, tanto na agricultura como na geração e uso de energia, são boas notícias. Elas agradam a Deus e são por Ele abençoadas. Na verdade, Deus, presente no sol que tem tudo a ver com todas as formas de vida, ilumina as pessoas que desejam seguir os caminhos que Ele indicou para ir construindo o Reino da humanidade com Ele, isto é, a melhor forma de os seres humanos conviverem uns com os outros e outras e com a Mãe Terra”, manifesta o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Ambiental, em artigo enviado para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”. A contribuição é de Ivo Poletto e Cesar Nóbrega.
Já bem cedo, é manhã, qual um noivo se levanta,
Do céu, de um lado a outro, o sol corre e avança.
Nada há que escape ao seu ardente calor.
O sol é assim, rei, imagem do teu amor.
(Salmo 19)
Mesmo sabendo que há algo parecido em outros lugares – como a instalação de painéis solares no Seminário da Arquidiocese de Porto Velho, RO –, essa mensagem parte de um fato significativo: a decisão da Paróquia Senhora Sant’Ana, na cidade de Sousa, Paraíba, de produzir a energia elétrica necessária para a igreja matriz, a casa paroquial, o centro pastoral e a área de esporte por meio da transformação dos raios do sol em energia. Em outras palavras, a decisão de “solarizar a paróquia”, isto é, produzir energia com a instalação de placas fotovoltaicas. Tornou-se, assim, uma “paróquia solar”, gérmen do movimento “igreja solar”.
Esta usina foi inaugurada no dia 7 de julho de 2018, com celebração da Palavra e bênção, seguidas pela realização de um Seminário sobre o sentido desta prática no Semiárido brasileiro. Foi, sem dúvida, uma festa. Mas foi, igualmente um convite para que práticas como essa se multipliquem, agradando a Deus e cuidando da Casa Comum, a Mãe Terra.
Este texto tem como finalidade revelar alguns dos sentidos desta prática, destacando a sua dimensão evangelizadora.
Como sabemos, Deus se manifesta de muitas formas, sempre com pouco espalhafato e barulho, para não assustar nem forçar nenhum dos seus filhos e filhas. É por isso que muita gente nem se dá conta de seus sinais, convites, mensagens. De modo especial, pessoas dedicadas a missões religiosas correm o risco de se iludirem que Deus está apenas em suas iniciativas, celebrações, obras. Na verdade, a melhor manifestação de sabedoria em todas as pessoas, e de modo particular as que se dedicam a missões religiosas, está no acolher, com alegria, sinais e mensagens que Deus envia através de acontecimentos e de iniciativas sociais.
Foi o que aconteceu com o padre da Paróquia Sant´Ana. Vendo que se multiplicavam, aos poucos, pequenos projetos-piloto de energia renovável, principalmente de energia solar, em seu município e em municípios vizinhos, deixou-se tocar pela pergunta: por que o pessoal está fazendo isso em comunidades populares? E ao acolher mensagens que ouviu de quem estava promovendo estas iniciativas, nasceu em seu coração o desejo de consultar: seria possível a paróquia ser um dos lugares em que se instalam painéis para produzir energia elétrica?
Veremos, um pouco mais adiante, como essa acolhida da mensagem de Deus através de práticas sociais produziu muitos frutos.
A acolhida dos sinais e mensagens em relação à importância da energia com fontes renováveis, e de modo especial o sol, só foi possível porque uma e outra pessoa, e depois, mais pessoas decidiram reunir-se para refletir sobre o sentido do sol numa região semiárida. Já se sentiam mal, junto com o sol, com certeza, por ser ele considerado um inimigo da vida, responsável pelos efeitos das secas. Como não há vida sem sol, tornou-se uma paixão descobrir a forma correta de os seres humanos se relacionarem com ele. Nessa busca, uma frase sintetizou a descoberta: o mesmo sol que castiga é o sol que nos dá vida.
O CERSA, isto é, o Comitê de Energia Renovável do Semiárido, é fruto de diversas iniciativas, em particular o Seminário sobre Mudanças Climáticas e Energia Renovável realizado em Pombal, já com presença comprometida de pessoas de universidades, de igrejas e movimentos sociais. Foi deste Seminário que nasceu o documento Carta de Pombal, que tem servido de ponto de referência para os passos seguintes. Trata-se de um conjunto de metas, grupos de trabalho, comissões, coordenação, tudo voltado para fazer que o sol do Semiárido se torne fonte de energia fotovoltaica descentralizada, nos telhados, e que esse processo ajude o Brasil a mudar a sua matriz energética, voltada para o uso dos rios da Amazônia, do petróleo, gás e carvão para produzir energia.
Quem acolhe Deus nos acontecimentos da vida se alegra quando o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental foi procurado por um amigo da Misereor, da Alemanha, anunciando a possiblidade de aprovação de um projeto de apoio financeiro para desenvolver iniciativas de energia renovável em comunidades populares. Mesmo com poucos dias para ser elaborado e apresentado, ele caiu como uma luva para dinamizar as decisões assumidas pelo CERSA. Uma vez aprovado na sua totalidade, tornou possível a implementação de muitas pequenas iniciativas com uso de fontes renováveis, inicialmente em três municípios: Sousa, Pombal e Patos. Nos três anos de execução, onze municípios do sertão paraibano foram contemplados, contando também com apoios de outras fontes, de modo especial do Fundo Socioambiental CASA.
A metodologia do projeto Semiárido Solar e de todas as ações do CERSA foi acolhida pelo projeto Paróquia Solar: não se trata apenas de instalar painéis e produzir energia com o sol; não se trata, igualmente, de dar o passo apenas por razões financeiras; o essencial do processo é assumir a energia solar como uma das frentes de luta pela convivência com o Semiárido, uma vez que ela possibilitará diminuir ou até deixar de usar a água dos rios, e especialmente a do São Francisco e dos rios da Amazônia, para gerar energia, tornando possível sua recuperação e garantindo a água como um bem essencial para todas as formas de vida; trata-se de impedir que a construção de barragens e a queima de carvão, petróleo e gás para produzir energia emitam mais gases de efeito estufa na atmosfera, provocando aumento do aquecimento global e agravando as mudanças climáticas.
Em outras palavras, é preciso que os pequenos projetos de produção descentralizada de energia com fontes renováveis, e de modo especial com o sol, por ser tão intenso na região semiárida, sirvam para despertar a consciência popular em relação ao que se pode e deve fazer para viver melhor na região e para mobilizar as pessoas, comunidades, entidades, instituições e movimentos sociais a lutarem em favor da mudança da matriz energética.
Acolhendo essa proposta de caminho, a Paróquia Solar deve ser mais um sinal e um anúncio de que é errado e até crime não acolher o sol que Deus e a Terra nos oferecem gratuitamente. E é prática que agrada a Deus e à Mãe Terra a geração descentralizada de energia com o uso do sol e de outras fontes renováveis, como os ventos e a biomassa.
Uma das mensagens de todos os seres vivos existentes na Terra é que o sol é sua fonte de energia. Contam com a colaboração dos gases da atmosfera para que os raios solares cheguem com intensidade favorável à vida. Contam com a umidade existente no solo e com o oxigênio existente na atmosfera. Contam com outros seres vivos para que não falte quase nada para nascer, crescer, tornar-se adulto e até para morrer. E o sol, em diferentes condições, horários e intensidade, está presente em toda essa maravilhosa geração constante de energia, sem a qual a vida seria impossível.
Estranhamente, só os seres humanos se distraíram e foram buscar energia em outras fontes. Talvez por falta de conhecimentos para transformar os raios do sol em todas as formas de energia que necessitavam, ou por causa de seu desejo de domar a Terra para fazer negócios e enriquecer, o fato é que só recentemente o sol vai sendo saudado como fonte gratuita abundante para a geração da energia que as pessoas precisam. É provável que as grandes empresas que se tornaram proprietárias das fontes fósseis se deram conta de que seria impossível apropriarem-se do sol e dos ventos, porque estão em toda parte e podem ser usados por todas as pessoas de forma descentralizada, e por isso atrasaram até quando puderam a produção de energia com fontes renováveis.
A Paróquia Solar assume, junto com outros movimentos sociais, a denúncia das práticas dessas empresas que teimam em enriquecer usando fontes fósseis, construindo barragens e usinas térmicas e nucleares e vendendo a energia como sua propriedade, como uma mercadoria qualquer. E ao denunciar essa irresponsabilidade criminosa, cabe à Paróquia Solar anunciar que a energia é um bem comum e um direito essencial dos seres humanos e de todos os seres vivos.
Para azar dos que desejam manter a energia como propriedade e mercadoria, já não conseguem esconder que o sol brilha e os ventos se movimentam em todo o Planeta e, por isso, todas as pessoas podem gerar a energia que precisam. Não há dúvida: a energia solar é uma das possibilidades de autonomia e liberdade. E ela serve para o que se necessita de energia, de forma direta ou indireta. Direta, por exemplo, quando se faz aquecimento de água e se produz eletricidade. Indireta, quando se usa a eletricidade para inúmeros fins, desde a lâmpada do jardim até o funcionamento dos motores, da computação, da comunicação, do transporte...
Junto com os ventos e a biomassa, quando transformados em energia de forma descentralizada e amigável com o meio ambiente e os seres vivos, os raios do sol são os mais eficazes inimigos dos fósseis como fontes de energia. Eles poderão ser utilizados para outras finalidades, mas não serão necessários para gerar a energia que os seres humanos precisam de fato, depois de diminuírem os desperdícios e levarem a sério o cuidado com o uso eficiente da energia em todos os usos.
O que dá sentido à existência de uma paróquia ou outra instituição cristã é a evangelização, o anúncio das boas notícias aos pobres. Todas as suas práticas, incluindo as relacionadas às celebrações, precisam ser anunciadoras das boas novas de hoje iluminadas pelas boas novas de Jesus de Nazaré.
Deus está presente e atuando na história, e é preciso estar atentos aos seus sinais. Segundo uma das boas novas de Jesus, Deus não gosta de louvores vazios, de pessoas que repetem as palavras Senhor!, Senhor!, mas não estão ligadas a ações que põem em prática a sua Palavra. A oferta que agrada a Deus são as práticas de amor libertador, de luta por justiça, de cuidados com a Criação.
É o que Ele mesmo fez logo antes de consagrar e distribuir o pão aos discípulos e discípulas, na ceia que antecede a sua prisão como um ser humano politicamente perigoso: surpreendeu a todos e todas ao lavar os seus pés, sinalizando que se Ele, que é o Senhor e Mestre, faz isso, esta precisa ser a marca registrada das comunidades de seus seguidores e seguidoras. A celebração da Eucaristia, então, precisa ofertar práticas de serviço aos filhos e filhas de Deus, de modo especial os que mais sofrem por ações injustas de dominação e de exploração.
Pois bem, podem as práticas de implementação de energia com fontes renováveis em comunidades populares serem sinais da presença amorosa e libertadora de Jesus de Nazaré?
Claro que sim, pois são boas notícias para os pobres e gestos de louvor a Deus, que tudo criou com amor e em tudo e em todos os seres vivos está presente. Ele e a Mãe Terra querem que os seres humanos vivam em territórios que sejam jardins, cheios de biodiversidade e fontes de alimentos para todos os seres viventes.
E por isso as práticas que ajudam a diminuir as emissões de gases de efeito estufa, tanto na agricultura como na geração e uso de energia, são boas notícias. Elas agradam a Deus e são por Ele abençoadas.
Na verdade, Deus, presente no sol que tem tudo a ver com todas as formas de vida, ilumina as pessoas que desejam seguir os caminhos que Ele indicou para ir construindo o Reino da humanidade com Ele, isto é, a melhor forma de os seres humanos conviverem uns com os outros e outras e com a Mãe Terra.
De ti todos esperam seu alimento,
E sempre fiel, tu lhes dás o sustento
Se escondes tua face, todos se apavoram,
Se retiras teu sopro, a própria vida se recolhe.
O teu Espírito envias e sopras,
E a face da terra se renova.
Que se revele tua presença de amor,
Todas as criaturas se alegrem em teu louvor.
(Salmo 104 – Salmo de louvor - na parte do Hino ao sol)
As relações entre o sol e a Terra revelam a presença amorosa e criadora de Deus. É tão surpreendente e poderosa a fecundidade da Terra em sua relação com o sol, que povos chegam a venerá-los como deuses. Uma coisa é certa: os frutos dessas relações revelam que estamos num ambiente sagrado, movido por energia divina. Ao reconhecer que somos filhos e filhas do Sol e da Terra, estamos entrando em comunhão com o Amor extremado de Deus que, qual mãe amorosa, tudo gera e mantém vivo. Vale repetir, junto com o poema e canto da mexicana Abuela Margarita, “La Tierra Es Mi Madre”, extraídos do álbum “Corazón de Niña” :
El Sol es mi Padre, lo amo, lo amo
El Sol es mi Padre, lo valoro, lo valoro
Todos los Humanos somos hijos de la Tierra
Fecunda la Tierra mi Padre Sagrado
Todos los Humanos somos hijos del Sol
Fecunda la Tierra mi Padre Sagrado
Todos los Humanos somos hijos de la Tierra, hijos del Sol.
La Tierra es mi Madre, la amo, la amo
La Tierra es mi Madre, la cuido, la cuido
Anunciar, com alegria e através da prática de produção de energia solar fotovoltaica para cobrir as necessidades da paróquia, que o sol está aí, em todo lugar, e nada perde quando transformamos parte de seus raios em energia elétrica, é um anúncio de boa nova e um convite para que todos os membros das comunidades entrem nesse caminho. É acolhida de um presente amoroso e gratuito de Deus. É um cuidado amoroso com a Terra, já que evita a emissão de gases de efeito estufa, ajudando a evitar os desastres socioambientais provocados pelo aumento constante da temperatura.
É a valorização e defesa da energia como bem comum, combatendo a sua redução a mercadoria, que só pode ser acessada por quem tem dinheiro. Junto com tudo isso, é também um anúncio de que o custo desta energia gerada nos telhados é mais barata do que a que é vendida pelas empresas distribuidoras. E quanto mais gente entrar nesse caminho em todo o mundo, tanto mais cairá o seu custo.
Como referência, para quem desejar tornar solar a sua paróquia, o custo da usina da Paróquia Sant'Ana, na Paraíba, foi dividido em prestações mensais iguais ao que a paróquia já gastava com energia elétrica. Isso significa que, nos próximos meses e anos, o custo com energia da paróquia será sempre igual, livre dos aumentos que acontecem periodicamente. E depois de seis anos, quando o custo da instalação estiver coberto, o único custo será o cuidado com a manutenção dos painéis e demais componentes.
O Papa Francisco, atualizando São Francisco de Assis no seguimento de Jesus de Nazaré, convidou toda a humanidade a cuidar da Casa Comum, a irmã e mãe Terra. Muitas pessoas foram sensibilizadas e mudaram seu estilo de vida, mas, mesmo assim, a vida continua ameaçada pela dureza e insensibilidade de governos e empresas que se negam a mudar suas práticas de promoção do consumismo.
No Brasil, em particular, voltou a crescer o desmatamento da floresta e cobertura vegetal da Amazônia, Cerrado e Caatinga, e o sistema agropecuário do agronegócio já é o maior consumidor de agrotóxicos e, mesmo assim, multiplica propostas para liberar ainda mais a importação desses produtos venenosos e contaminadores. E na geração de energia, junto com a teimosa prioridade de construir grandes barragens nos rios da Amazônia e pequenas e médias hidrelétricas no resto dos rios do país, teima-se em manter a termoeletricidade a diesel, gás e carvão como complementação, sempre mais necessária por causa dos desequilíbrios das chuvas provocados pelas mudanças climáticas.
Nesse contexto, a adesão de paróquias da Igreja Católica e de comunidades de outras igrejas cristãs à proposta de um movimento em favor da “Igreja Solar” será, certamente, um bom exemplo e um estímulo para que o Sol seja assumido como fonte da energia que as famílias, comunidades e povos precisam. Sem esquecer, é claro, do exemplo de usar com eficiência a energia, porque a melhor energia é a que não é usada, lembrando que esta prática tem tudo a ver com o cuidado da Casa Comum.