13 Março 2020
“Não sabemos quanto tempo durará esse treco, nem como vai evoluir, nem até onde chegará. Será que vai acabar em nada, ou em pouco coisa? Não é que 'a propaganda dos grandes grupos econômicos e midiáticos oculte a realidade e impeça uma compreensão adequada do que está acontecendo', como foi dito. É muito mais simples: estamos entrando em águas desconhecidas”, escreve Rafael Poch, jornalista, em artigo publicado por Ctxt, 11-03-2020. A tradução é do Cepat.
Com casos detectados em mais de cem países e surtos preocupantes em vários deles (e subindo), ninguém parece discutir a importância da pandemia. Caem bolsas, se rompem cadeias de suprimentos mundiais e uma recessão global está chegando. As aclamadas comparações iniciais com a simples gripe já foram escondidas discretamente na gaveta. Também diminuiu, embora não tenham cessado, as campanhas de ridicularização da China e o descrédito de seus líderes, que agora mostram que se saíram muito bem (revise as capas de fevereiro dos grandes jornais semanais anglo-saxões e alemães).
A relutância inicial dos governos europeus em tomar medidas drásticas, perdendo um tempo precioso, para conter a expansão do coronavírus e subestimando as evidências de uma emergência global, recordam a atitude habitual em relação à crise climática. Não é que “desde que existe a Covid-19, nada mais acontece, já não há mudança climática”. É que é a mesma coisa: o mesmo cego guiando a corda.
Em Bruxelas, radiografia plana. Na sexta-feira, contabilizava-se na Europa cerca de 7.000 afetados, um número comparável ao registrado pela China, em 30 de janeiro. Até então, na China, já estavam há uma semana adotando medidas drásticas de contenção. “Esses dados permitem considerar que a Europa provavelmente será afetada pela pandemia de maneira mais forte que a China”, diz Alexander Unzicher, especialista alemão que apoia a máxima: “É mais sensato ficar alarmado mais cedo do que alarmado mais tarde”.
O comunicado da Comissão Europeia de 4 de março dizia o seguinte: “Monitoramos a situação de perto e faremos todos os esforços necessários”. No momento, as coisas estão acontecendo nos estados nacionais. Na Itália, um médico de Bergamo, Daniele Macchini, tem causado grande impressão ao explicar que, por conta da saturação de pacientes e a escassez de aparelhos respiratórios, os médicos precisam escolher, entre os casos mais graves, os com maior chance de sobrevivência. A situação muda de semana para semana: começam a ser ouvidos discursos patrióticos de chefes de governo europeus a seus cidadãos.
Isolamento. Uma saudável cura de emagrecimento em casa, no turbilhão dessa absurda hiperatividade? Há muitas pessoas que não podem se permitir um isolamento sem pagar, durante semanas. O documento de 27 páginas do governo britânico sobre a resposta ao vírus contempla um cenário em que “até um em cada cinco funcionários poderia se ausentar do trabalho, nas semanas agudas”. Como administrarão isso?
Segundo um relatório de 2015, até 56 países, ricos e pobres, cortaram seus orçamentos de saúde após a crise financeira de 2008. Hoje esses cortes, como a disciplina orçamentária em geral, tornam-se indefensáveis. Para evitar colapsos sanitários, é necessário mais dinheiro, caso não se queira colocar em risco maior o próprio santíssimo lugar do templo capitalista, o sistema produtivo. A virtude orçamentária, antiga vaca sagrada, torna-se uma estupidez. Novas condições para o público e o keynesianismo? Haverá uma “corona-bônus” na União Europeia?
Nos Estados Unidos, a grande potência mais rica parece mal preparada. Sua saúde nas mãos privadas oferece um bom terreno para a propagação do problema. O presidente idiota que fechou o Conselho de Segurança Nacional da unidade de saúde global – posto em marcha em 2014, após a crise do Ebola – e que dissolveu a equipe encarregada de coordenar as diferentes agências governamentais de saúde em caso de pandemia, subestima a importância do assunto coronavírus.
O Congresso dedica à pandemia 8,3 bilhões de dólares, menos de um décimo do custo de um ano de guerra no Afeganistão, e os meios de comunicação parecem mais preocupados com o impacto na bolsa do que o custo humano. Quando se necessita de uma estreita colaboração e cooperação internacional para enfrentar uma crise que alerta, mais uma vez, sobre a integração e a interdependência deste mundo em seus problemas, a mentalidade permanece a mesma: as sanções contra o Irã complicam demasiadamente a crise em seu sistema de saúde, quando está lidando com um número muito alto de afetados. Imperium über alles.
“Um duro golpe para a economia globalizada”, é dito. Nessa economia baseada na loucura da extrema mobilidade-contaminação, no frenesi da busca pelo menor custo salarial, na santificação do low cost. Um golpe no modo de vida excessivo, obeso e acelerado pela digitalização, com seu estresses e profusão de teses, relatórios e pensamentos em 200 caracteres e 20.000 likes por minuto que marcam a expansão da estupidez moderna.
Um golpe também para a especialização em cadeias de produção. Os princípios ativos, a essência das propriedades terapêuticas, de 80% dos medicamentos consumidos na União Europeia são produzidos na China. Golpe às monoculturas das economias nacionais, desde o turismo da Espanha até a exportação de automóveis da Alemanha. As pandemias contêm uma advertência em favor da diversificação, da suficiência e proximidade.
O ministro da economia francês, Bruno Le Maire, já está apontando “a imperativa necessidade de realocar um certo número de atividades”, de restabelecer uma “soberania econômica”, francesa e europeia (União Europeia, first!), e inclusive aponta para a necessidade de criar uma “bateria para o carro elétrico”. Tudo bem claro?
Não sabemos quanto tempo durará esse treco, nem como vai evoluir, nem até onde chegará. Será que vai acabar em nada, ou em pouco coisa? Não é que “a propaganda dos grandes grupos econômicos e midiáticos oculte a realidade e impeça uma compreensão adequada do que está acontecendo”, como foi dito. É muito mais simples: estamos entrando em águas desconhecidas.
E ao mesmo tempo uma “sensação de Chernobyl”. Também não sabíamos as consequências daquelas nuvens radioativas. Havia muita especulação, mas havia uma clara certeza de que era algo perigoso. E depois disso, permanecia uma sensação nos bastidores: a de um desastre que se somava a outros e que terminava na afirmação da “perestroika”: não é possível continuar vivendo assim (так жить нельзя!), isso tem que parar! Este sistema é desumano. Não serve, não é viável para um futuro decente. O problema é que não sabemos onde parará o anunciado shock mundial, nem que futuro nos preparam.
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Em águas desconhecidas. Artigo de Rafael Poch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU