23 Outubro 2014
A rápida propagação e o perfil exótico da doença, a luta contra um adversário tão hábil em sobreviver como um vírus pode ser algo inebriante para a imprensa. E, embora devamos mobilizar recursos para conter a onda de ebola na África Ocidental, a história que hoje conhecemos tão bem pode não ser a mais importante a ser contada. O ebola está matando as pessoas, mas o seu verdadeiro poder vem da pobreza e da instabilidade política.
A opinião é de Michael Rozier, SJ, doutorando do Departamento de Gestão e Políticas de Saúde da Universidade de Michigan, Estados Unidos. O artigo foi publicado na revista America, 22-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
O surto de uma doença é uma história que pode realmente pega. Os invisíveis microrganismos alojam-se dentro de um hospedeiro humano e viajam despercebidos entre as grandes massas. Isto é, até que ele decida se revelar e colocar a humanidade de joelhos. A narrativa é poderosa. Outras pessoas, que deveriam ser fontes de apoio, de repente, tornam-se ameaças. Os cientistas devem fazer valer cada gota de conhecimento para alcançar uma vitória apertada sobre o seu diminutivo inimigo. Eu suspeito que estaríamos torcendo pelo vírus perdedor se ele não estivesse nos atacando.
Tal é o caso com o surto atual de ebola. O que começou como apenas alguns casos, em grande parte ignorados, em março deste ano, na Guiné, acabou capturando a atenção do mundo. Epidemias anteriores (como a SARS em 2003 ou o H5N1 em 2004) tiveram taxas de mortalidade muito mais baixas do que o ebola, porém criaram uma preocupação global similar. A rápida propagação e o perfil exótico da doença, a luta contra um adversário tão hábil em sobreviver como um vírus pode ser algo inebriante para a imprensa. E, embora devamos mobilizar recursos para conter a onda de ebola na África Ocidental, a história que hoje conhecemos tão bem pode não ser a mais importante a ser contada.
O ebola está matando as pessoas, mas o seu verdadeiro poder vem da pobreza e da instabilidade política.
Desde que foi identificado, pela primeira vez, em 1976, houve quase uma dúzia de surtos de ebola. Na instância atual, no entanto, o vírus fez o seu caminho em direção às áreas urbanas da Guiné, Libéria e Serra Leoa. Quando o vírus permanece isolado em postos rurais, é mais fácil de conter. Mas uma vez que ele faz o seu caminho até as cidades, onde há uma maior densidade de pessoas e mais movimento, cresce consideravelmente a complexidade de isolamento e de quarentena.
Com mais pessoas em situação de risco, uma maior cooperação pública se faz necessária. No entanto, a população nesses países foi condicionada a temer as instruções do governo. Na Libéria, o povo cresceu sob o comando de Charles Taylor, um condenado criminoso de guerra, responsável por crimes indescritíveis contra os cidadãos liberianos, crimes que beiram o genocídio. Aqueles em Serra Leoa cresceram com décadas de golpes e guerra civil, liderados por aspirantes a ditadores que recrutam crianças para fazerem parte de seus exércitos. Parte da sobrevivência necessária nesses países requer desconfiar e fugir do governo. Então, quando os profissionais de saúde em uniformes oficiais querem reunir os familiares e amigos que estão "doentes", é fácil ver por que o público não é tão cooperativo quanto a gente gostaria. O vírus se desenvolve enquanto as pessoas vivem com medo. Mas não podemos ignorar que somos nós, e não o vírus, que originalmente costuramos a desconfiança.
Há uma outra razão bem simples por que o surto na África Ocidental é mais complicado do que deveria ser. Nos Estados Unidos, temos cerca de 24 médicos para cada 10.000 pessoas. Na Guiné, há um médico para o mesmo número. Em Serra Leoa, um médico deve cuidar de 50.000 pessoas. E na Libéria, há algumas dezenas de médicos para todo o país cuja população é de 4,4 milhões de pessoas. Enquanto nos Estados Unidos os epidemiologistas monitoram os pacientes em risco e reservam quartos de isolamento para as pessoas infectadas, as nações do Oeste Africano tem dificuldades para adquirir luvas de látex para os seus trabalhadores de saúde ou água sanitária para desinfetar as camas onde as vítimas morreram. Sim, o vírus é mortal. Mas não podemos ignorar que as formas de pobreza ampliam o seu poder.
Nos Estados Unidos, nós isolamos aqueles que estão doentes, colocamos em quarentena aqueles que estão em risco e praticamos o "distanciamento social" quando este é requerido (por exemplo, nas escolas ou locais de trabalho próximos de surtos de gripe). Mas o que pode ser feito quando as pessoas vivem grudadas em favelas urbanas? Milhares vivem amontoados na mesma encosta em estruturas de telhado de zinco, batendo um no outro para cada pequeno ato cotidiano. Os governos têm dificuldade de acessar as áreas para recolher os corpos e as famílias não têm onde colocá-los. Água e saneamento são inexistentes no local, de modo que a necessária desinfecção é uma fantasia. Um vírus desenvolve-se nessas condições. Mas não podemos esquecer que fomos nós quem o criamos.
A cobertura da mídia sobre o surto de ebola tem recebido críticas de todos os lados. Eu simpatizo com todas elas. Uma das críticas denuncia a ênfase desproporcional dada aos poucos norte-americanos e europeus que têm a doença enquanto as dezenas de milhares de africanos ocidentais são tratados como meras histórias laterais. Outra compara os poucos milhares de mortos pelo ebola aos milhões de pessoas que morrem de doenças cardiovasculares, diarreia ou HIV. Esse argumento sugere que, se a cobertura sobre o ebola diminuir, vamos prestar mais atenção às doenças que matam mais pessoas. Mas é ingênuo pensar que este é um jogo de soma zero. Se falarmos menos sobre o ebola, a lacuna será preenchida com as escapadas de Justin Bieber em vez de formas de reduzir a hipertensão.
Existem também alguns mitos sobre o ebola que não vão morrer. Por exemplo, embora seja fatal, não é altamente contagioso. Os epidemiologistas dão às doenças infecciosas um número chamado de R0 (número de reprodução de base). Ele nos diz quantas pessoas, em média, podem ser infectadas por alguém que tem a doença. O número para o sarampo pode ser até de 18; para a pólio cerca de 6; gripe, 2 ou 3; porém, para o ebola é no máximo 2. Assim, embora o ebola seja mortal, não é altamente contagioso.
Na saúde pública, muitas vezes, descrevemos cinco fatores determinantes da saúde: genética, comportamento pessoal, cuidados médicos, ambiente físico e fatores sócio-econômicos. Os três primeiros obtem a maior parte da atenção no campo sanitário, mas os dois últimos são muito mais poderosos do que imaginamos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o código postal pode prever melhor o seu estado de saúde do que o seu código genético. Isso é por causa da ampla influência dos determinantes sociais da saúde. Seu nível de escolaridade, situação de emprego, redes sociais e vizinhança, todos ajudam a modelar a sua capacidade de ter uma vida mais saudável. E se uma criança quer se exercitar, por exemplo, mas as calçadas estão rachadas, os sapatos estão caindo aos pedaços e os parques estão cheios de equipamentos quebrados? Nosso instinto é ignorar as influências sociais e ambientais sobre a saúde e concentrar-nos somente no comportamento pessoal e nos cuidados médicos. Ou então, nós gostamos de culpar o indivíduo (normalmente pelas doenças crônicas como diabetes ou obesidade) ou culpar o microorganismo (tuberculose ou ebola). Mas deixamos de avaliar o quão envolvidos todos nós estamos, o quão responsáveis todos nós somos pelas condições sociais que favorecem o surgimento da doença ao longo do caminho.
No caso do ebola, é impossível imaginar milhares de mortes em lugares onde os governos são confiáveis, onde as condições de vida são decentes e onde os sistemas de saúde são fortes. Eu não estou sugerindo que todos os casos de ebola poderiam ser evitados se livrarmos o mundo da pobreza (os novos casos em hospitais norte-americanos bem equipados são prova suficiente para isso). Mas é falso ignorar o ambiente social e físico, construído pelo homem, quando se fala dos estragos do ebola.
Ao prestar atenção a essas coisas, a culpa não é exclusiva do vírus. Nós não seremos apenas as vítimas. Nós também nos tornamos responsáveis pelo seu efeito devastador sobre a vida humana. Isso é muito mais difícil de aceitar. De repente, a narrativa do surto torna-se muito menos atraente, pois ela não tem mais um vírus complicado, microscópico como o vilão. Os seres humanos tornam-se co-conspiradores.
O surto de ebola acabará sendo interrompido. Ele vai se estender por meses a mais do que a nossa capacidade de atenção pode aguentar, mas como instâncias anteriores da doença, ele será extinto. No entanto, as condições sociais que permitiram a sua expansão vão continuar em todos os cantos do mundo. Se pudermos aprender alguma coisa com ebola eu preferiria que não fosse nada sobre essa doença em particular porque outra doença infecciosa vai surgir em pouco tempo. Talvez em vez disso, possamos crescer em apreço pelas muitas coisas que podemos controlar e prever, sobre as condições sociais que constroem e perpetuam uma comunidade humana.
Se estamos realmente interessados em parar o ebola e outras doenças contagiosas, deveríamos olhar mais para as duradouras embora desconfortáveis verdades sobre a nossa responsabilidade com relação a esses eventos. Ao longo do século passado, a expectativa de vida humana aumentou em mais de 30 anos, principalmente devido à melhoria dos determinantes sociais da saúde (menos de 20% desse ganho é devido a uma melhor assistência médica). Mas os ganhos foram distribuídos de forma desigual. Temos a capacidade de alcançar melhorias ainda maiores na saúde e a atenção generalizada ao ebola apresenta uma oportunidade para fazer exatamente isso.
A história real não é sobre o ebola. Trata-se de nós. Quanto mais cedo admitirmos isso, mais cedo vamos perceber nosso verdadeiro poder de impedir esses surtos antes mesmo que eles comecem. Pode ser que isso não seja uma boa notícia, mas isso levaria a um final mais feliz para todos nós.
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A verdadeira história sobre o ebola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU