10 Fevereiro 2025
"Seu sermão é a objeção mais poderosa à ideia de que liberdade de expressão significa poder dizer qualquer coisa, inclusive palavras de mentira e ódio, em qualquer lugar, a qualquer momento", escreve Petra Bahr, teóloga alemã evangélica, em artigo publicado por Die Zeit - Christ & Welt, 29-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A bispa estadunidense Mariann Edgar Budde tornou-se mundialmente famosa como admoestadora de Trump. No entanto, seu sermão não foi um discurso de moral política. “Ela nem mesmo é o Papa”, escreveu um jovem de 15 anos no TikTok. “É uma mulher de meia-idade que se parece com minha professora de matemática, e agora o mundo inteiro conhece seu sermão. Nunca pensei que uma pessoa assim se tornaria minha heroína. Mas é verdade”. Esse comentário corresponde, em muitos aspectos, ao que está sendo dito, postado e escrito sobre a bispa episcopal Mariann Edgar Budde nos dias que se seguiram à posse de Donald Trump. Memes estão circulando na Internet, fotos de uma mulher em túnica branca e estola vermelha com as palavras “Have Mercy” (Tenha misericórdia), juntamente com fotos de membros proeminentes da comunidade participante do culto, que se sentam nos bancos abaixo do púlpito, mostrando inquietação ou fazendo caretas, entre os quais Donald Trump.
As últimas palavras do sermão que Budde proferiu durante o culto tradicional após a posse acabaram imediatamente nas manchetes internacionais. E com elas, a foto e o nome de uma mulher do clero - uma mulher, como muitos fizeram questão de assinalar, espantados. Agora já foram divulgados vários trechos do sermão, o empenho de Budde com as crianças trans e suas famílias e seu apelo por um tratamento misericordioso com os refugiados e às pessoas sem permissão de residência. Tudo isso está num post do Instagram e, em um espaço tão restrito, causa um enorme impacto. No entanto, essa redução transforma a parte final de seu discurso religioso em um apelo político e a bispa em uma ativista anti-Trump.
O resumo, interpretado de forma positiva ou negativa, pode ser lido como se a bispa tivesse jogado tomates no presidente ou, no mínimo, usado palavras duras para cutucar a consciência dos presentes. Mas aqueles que acompanharam o culto sabem que Budde estava simplesmente descrevendo o clima social de “superaquecimento retórico” e tentando trazer o discurso de volta a uma temperatura de brandura e moderação. Seu tom calmo e contido e sua linguagem clara e vívida já mostram que a resistência, em seu sermão, está no próprio ato de falar. Budde não se sente tentada a cerrar os punhos ou apontar o dedo. Não grita, não se enfurece, nunca levanta a voz, não se inflama. Só isso já a torna o antídoto personificado daqueles que se sentam nos bancos, nas primeiras filas, e que não podem escapar durante todo o serviço religioso.
O discurso de Budde é um sermão profundamente espiritual e teologicamente composto, não um discurso moral de forte impacto político, não um apelo, não uma demonstração do poder da palavra dos seus 15 minutos no púlpito. Assim, no entanto, o discurso se torna realmente político, de uma forma que os apelos não conseguem. Seu tema é a “unity” cristã, que não podemos traduzir exatamente como unidade ou coesão. Budde retoma, assim, a reivindicação que Donald Trump sempre pretende realizar. Mas enquanto o novo presidente nem sequer tenta, em seu primeiro discurso, criar “unity” na sociedade estadunidense fragmentada, ferida e, até certo ponto, assustada, a bispa ilumina esse tema a partir de uma perspectiva cristã. Fala das raízes bíblicas da dignidade de todos os seres humanos e da atitude de humildade, que coloca a disputa sobre modos de vida e agendas políticas dentro do horizonte de um terreno comum, mesmo que as diferenças predominem.
O fato de a pregadora formular suas visões que derivam de sua fé em Cristo de tal forma que também se sintam interpeladas pessoas de outras religiões e visões de mundo, incluindo o número significativamente crescente de nones, ou seja, aqueles que deram as costas a qualquer religião organizada, não é uma falta de reflexão teológica, mas, precisamente o resultado dessa reflexão. A estratégia retórica escolhida por Budde é notável porque a pregadora nunca faz distinção entre “nós e eles”, nem mesmo com relação à pessoa mais importante da comunidade que está ali presente. Ela resiste ao impulso de olhar para os maus a partir da perspectiva dos bons. A força do desmascaramento espiritual está no fato de que ela se dirige a Donald Trump como uma pessoa que faz parte da comunidade. Budde até adota a interpretação do atentado, que ele descreve repetidamente como providência de Deus, e extrai dela seu pedido: “Tenha misericórdia”.
A misericórdia oscila entre a graça e a piedade, dois atributos de Deus que deveriam orientar o comportamento humano. Surpreendentemente, para os ouvidos alemães acostumados a sermões, Budde não usa o tema do direito e da justiça, embora essa ideia de ética social cristã seja óbvia. Alguns comentaristas alemães ficaram incomodados com isso. Não deveríamos lembrar a lei, a Constituição estadunidense, o direito internacional e os direitos humanos? Assim, eles criticam a referência de Budde à misericórdia. Entretanto, é um equívoco entendê-la apenas como uma espécie de arbítrio paternalista. Se levarmos a sério a concepção de Deus de Budde, a misericórdia se torna uma atitude fundamental determinada pelo outro. É o centro de uma ética do amor que vai além do direito e da justiça.
E, em seu sermão, Budde não tem medo de falar sobre a “nação”. Repetidamente, encontra formulações para a “unity”, para a perspectiva de comunitarização, enquanto a retórica política dos Estados Unidos é caracterizada por fraturas, antagonismo e até inimizade. “Todos nós já fomos estrangeiros neste país”, diz ela, ligando a lenda da fundação dos Estados Unidos à história de Donald Trump, cujos ancestrais vieram da Alemanha. Budde apenas acena às semelhanças entre os destinos dos antepassados e das antepassadas e aqueles dos imigrantes de hoje, mas recupera uma dimensão da sociedade estadunidense que corre o risco de ser esquecida nos últimos anos.
Afinal de contas, foram os dissidentes, as minorias perseguidas, inclusive as comunidades protestantes, que tiveram de deixar a Europa e que fizeram da ideia de liberdade de religião e de expressão o alicerce espiritual de seu Novo Mundo e de sua promessa de liberdade. Essa ideia não pode ser compreendida sem a antiga noção de parresia, ou franqueza, desenvolvida pelo cristianismo primitivo.
A parresia, a capacidade e o convite para falar de forma clara, sincera e livre, é a base de todo sermão a favor aqueles que não ousam ou não podem falar. Esse é o sentido escondido de seu sermão. E, ao torná-lo evidente, também contribuiu indiretamente para a gestão da liberdade de expressão, como a pedem tanto os libertários quanto os autoritários.
Seu sermão é a objeção mais poderosa à ideia de que liberdade de expressão significa poder dizer qualquer coisa, inclusive palavras de mentira e ódio, em qualquer lugar, a qualquer momento. Disso resulta que o entusiasmo da mídia pela audácia da bispa foi imediatamente seguido por veneno, maldade e ameaças. O ouvinte mais famoso da comunidade, Donald Trump, reclamou após o culto, afirmando que Budde era uma hater da esquerda radical contra Trump e que havia falado em um “tom desagradável”. Ele esperava um pedido de desculpas, enquanto alguns republicanos já estavam pedindo que ela fosse punida ou até mesmo expulsa.
Budde deixou claro várias vezes nas entrevistas nos últimos dias que não pretende se desculpar por ter assumido a defesa de outros. A parresia, a coragem de falar pelos outros, não é o tipo de liberdade de expressão que Trump e seu séquito defendem. Alguns celebram Budde como uma profetisa no sentido bíblico, não como alguém que prevê nosso futuro, mas como alguém que não se intimida diante dos poderosos. Em seu empenho em favor dos fracos, dos perseguidos e dos marginalizados, os profetas falam contra reis e governantes. Muitas vezes são figuras malvistas ou tímidas que não vivem de sua aura, mas da confiança em Deus e de um senso de risco, atormentados pela solidão e pela dúvida. A coragem não é a forma de expressão de pessoas religiosamente altamente dotadas, como demonstra a leitura dos livros proféticos da Bíblia. É uma atitude que pode ser praticada e que precisa lidar com contratempos, temores e questionamentos.
A própria Budde escreveu um livro dois anos atrás que se esgotou em poucos dias: How we learn to be brave: Decisive moments in life and faith (Como aprendemos a ser corajosos: momentos decisivos na vida e na fé, em tradução livre). O livro descreve a prática de um estilo de vida que não requer atitudes excepcionais, mas prática espiritual, confronto com pessoas que pensam da mesma forma, mas também com aquelas que pensam de forma oposta, a capacidade de adotar uma abordagem crítica em relação à própria vulnerabilidade e à necessidade de estar certo, e o confronto com o mundo obscuro das emoções. Para isso, Budde pode ser um grande exemplo, no sentido de uma mulher que avança pelo caminho não para que os outros a sigam cegamente, mas para que estejam preparados para enfrentar também momentos decisivos. Não há necessidade de um púlpito para isso.