Governo Trump trata os imigrantes como criminosos e, na verdade, são trabalhadores que ajudaram a construir a base da sociedade estadunidense. Agora, com a “caçada” aos estrangeiros e a deportação em massa, segue fazendo politicagem e show midiático
Imigração, migração e deportações sempre existiram e fazem parte da construção histórica dos países, dos povos. O que raramente se vivenciou é esta “caçada” aos imigrantes em igrejas, escolas, hospitais, trabalho e nas ruas, como vem acontecendo nos EUA desde o dia 20 de janeiro, quando o republicano de extrema-direita Donald Trump assumiu seu segundo mandato de presidente.
Pior ainda, agora, os imigrantes estão sendo tratados como criminosos de alta periculosidade. “Essa ideia de os mandar para uma prisão militar de alta segurança em Guantánamo, que surgiu por último, é terrível para a grande maioria que são apenas trabalhadores. Além do mais, mesmo quem cometeu algum crime tem direito a condições dignas”, observa Sueli Siqueira, socióloga com ênfase em estudo sobre migração internacional.
A professora da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale) debate, principalmente, o discurso, a forma e as condições em que as deportações vêm sendo realizadas pelo atual governo estadunidense. “O grande problema é a forma como tudo está sendo conduzido, tanto a manifestação como a deportação. É praticamente uma autorização para a xenofobia. Acho que essa é principal diferença agora em relação às deportações, que sempre existiram, inclusive no primeiro mandato de Trump. Isso estigmatiza de formal geral os estrangeiros”, aponta nesta entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em conversa por videoconferência.
Ela lamenta que os imigrantes sejam apontados como vilões para os problemas sociais e econômicos dos EUA. Salienta que colocá-los como causador de todos os males é uma manobra política e midiática, que não se sustenta a longo prazo, pelo contrário. “Se a economia voltar a crescer, quem vai fazer os serviços nos setores de estética, hotelaria, alimentação, construção civil, se não tiver mais os estrangeiros. Ou seja, quem vai dar conta desse trabalho secundário, esse nicho de mercado”, questiona. Outro problema que deve surgir logo, com esta política antimigratória, é a disparada da inflação.
Sueli Siqueira (foto: Arquivo pessoal)
Sueli Siqueira é pós-doutora pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, doutora em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, socióloga e professora da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale). Desenvolve estudos nas áreas da sociologia urbana com ênfase em estudo sobre migração internacional, além das temáticas trabalho, violência e meio ambiente.
IHU - Como tem acompanhado as deportações e a forma como estão sendo feitas nos primeiros dias do governo Trump?
Sueli Siqueira - A deportação de imigrante sempre existiu nos EUA, inclusive em números bem mais altos no governo Obama. O que tem de diferente agora? É exatamente o discurso, a forma como as coisas estão sendo feitas, uma propaganda política e ações de governo muito fortes e interligadas. Trump prometeu na campanha guerra aos imigrantes, colocando-os como o causador de todos os males, tanto sociais quanto econômicos. Então ele transformou o imigrante no grande vilão, e os trata como criminosos.
Assim como a quase totalidade dos que buscam uma vida melhor no exterior, o imigrante brasileiro não é um criminoso. O que falta a alguns é a documentação para trabalhar legalmente. Mas, isto não os torna criminosos de alta periculosidade, que precisam ficar trancados e amordaçados, como a gente viu nos voos de deportação.
Na verdade, Trump está usando a população americana, vendendo uma solução falsa, que não vai resolver os problemas sociais e econômicos. Pelo contrário, os estrangeiros, geralmente, realizam a mão de obra mais simples que os nativos sequer fazem, como faxinas, serviços na construção civil e em restaurantes.
Por outro lado, os estrangeiros pouco usam serviços de saúde, só em casos essenciais, já por receio até de serem presos e perseguidos. O que eles mais usam são as igrejas, frequentam muitas entidades e comunidades criadas e mantidas por eles lá fora.
Além de trabalharem, consomem. E o interessante é que muitos ainda, com a expectativa de conseguir documentação, pagam os impostos. Então, transformar esse trabalhador em criminoso é algo realmente assustador, cria um império do medo.
IHU - A política antimigratória de Trump, além e criminalizar, desumaniza e estigmatiza os imigrantes?
Sueli Siqueira - Então, esse discurso dele é de ódio. O grande problema é a forma como tudo está sendo conduzido, tanto a manifestação como na ação. É praticamente uma autorização para a xenofobia. Acho que essa é principal diferença agora em relação às deportações, que sempre existiram, inclusive no primeiro mandato de Trump. Isso estigmatiza de formal geral os estrangeiros.
Fiz algumas entrevistas com os brasileiros que estão lá. Relatam exatamente isso, do nada, alguém passa por eles, e por perceber que são estrangeiros, independente de saber se têm documentação ou não, escutam xingamentos, ofensas, hostilidades.
IHU - O republicano se elegeu com a promessa de deportar até um milhão de imigrantes por ano. Os imigrantes ajudaram a construir os EUA, e qual deve ser o impacto disso na economia americana?
Sueli Siqueira – Conversei com um proprietário de restaurante americano depois dos primeiros episódios, ele me disse que está fechado porque não tem trabalhador nem cliente. Deste jeito, isso pode provocar logo uma forte crise de inflação, porque vai faltar mão de obra.
Mas, acima da quantidade e o impacto das deportações, há um claro desrespeito aos direitos humanos, dos quais os EUA são signatários. O primeiro mandato de Trump nem foi o período em que teve mais deportações, entretanto, houve reação dos organismos internacionais em relação ao desrespeito às condições humanas na época, e ele mudou a estratégia. Agora sequer a gente tem observado uma reação mais efetiva das entidades externas, diante dos abusos e ofensiva. Esse freio precisa funcionar, caso contrário, está se autorizando os absurdos cometidos.
Lógico se alguém cometeu um crime tem que ser preso e pagar por isso. Mas, desta vez, essa separação não está sendo feita, pelo contrário, crianças e famílias que foram buscar uma vida melhor, estão todos sendo colocados no mesmo barco e tratados como criminosos. Isso é cruel e, no fundo, só favorece a quem de fato cometeu algum ilícito.
Essa ideia de os mandar para uma prisão de alta segurança em Cuba, que surgiu por último, é terrível para a grande maioria que são apenas trabalhadores. Além do mais, mesmo quem cometeu algum crime tem direito a condições dignas.
IHU – Qual é o perfil dos imigrantes?
Sueli Siqueira - O imigrante brasileiro é um trabalhador, uma pessoa que vai com o objetivo de trabalhar, que inicialmente projeta retornar à medida que as coisas vão mudando, melhorando. E, muitas vezes, ele se integra a uma comunidade brasileira nos EUA, em famílias transnacionais, ali começa a mudar esse projeto e, ao final, não retornar mais.
Todavia, nos últimos anos, houve uma mudança no perfil. As pessoas vendem tudo o que tem aqui e vão para lá com o objetivo de permanecer e de criar os seus filhos, ter uma vida em outro país. Os projetos vão mudando, mas são trabalhadores.
Por outro lado, é curioso que o discurso de criminalização ganha ressonância. Há poucos dias escutei de um brasileiro aqui: “ah, mas tem muitos criminosos lá, inclusive pessoas do PCC”. Perguntei, mas de onde você tirou isso? Onde você pegou esse dado? “Ah, eu ouvi falar”.
Ou seja, esse discurso vai se transformando e ampliando, mesmo sem nenhuma base nem dado. Então, é só pensar, por exemplo, esses que vieram agora, quando alguém tem algum um crime no Brasil, a Polícia Federal é informada e, ao descer, ele imediatamente é preso porque tem uma dívida com as leis brasileiras.
Não teve nenhum brasileiro nessa condição naquele voo, no dia 25 de janeiro, em que aconteceram todos esses abusos e maus-tratos. Então, criminosos por quê? Eles desobedeceram a uma norma do Estado americano, estavam lá sem a documentação (Hoje cerca de 11 milhões de imigrantes estão nestas condições nos EUA). Mas trabalhando, ganhando a vida.
IHU - O republicano quer retirar o jus solis (direito de solo, que garante ao indivíduo o direito à nacionalidade de onde nasceu) para acabar com o "turismo de nascimento". Qual o efeito disso?
Sueli Siqueira – Ele não tem poder de mudar a Constituição. Aquele documento que assinou não tem efeito, precisa passar pelo Congresso. É uma bravata, uma jogada política, por ora. Mais uma ação para aumentar o império do medo.
A mesma coisa vale para outras medidas, como tomar territórios e baixar a inflação, isto não funciona por decreto, depende de uma série fatores internacionais, inclusive. O único campo em que o presidente tem maior autonomia de agir de inédito é a imigração, por isso todo esse apelo e extremismo. Além disso, tem toda uma questão midiática internacional que ele está usando e aproveitando politicamente.
IHU - As políticas anti-imigração funcionam a longo prazo?
Sueli Siqueira - Não se sustenta, principalmente se a economia voltar a crescer. Quem vai fazer os serviços nos setores de estética, hotelaria, alimentação, construção civil, se não tiver mais os estrangeiros. Ou seja, quem vai dar conta desse trabalho secundário, esse nicho de mercado.
Hoje há uma baixa no crescimento da economia americana. Conheço imigrantes, que no passado, ganhavam 25 a 30 dólares por hora de trabalho, agora caiu pela metade. Quando a economia dos EUA voltar a crescer, essa mão de obra vai ser fundamental. E não estou só falando dos brasileiros, que nem são os em maior número, mas dos milhões de imigrantes que há por lá.
IHU – Essa política antimigratória de extrema-direita, usar o estrangeiro como bode expiatório, tem ressonância também na Europa?
Sueli Siqueira - É uma realidade ampla, sim, deste campo de colocar os imigrantes como responsáveis por todos os males. A gente tem visto isso na Europa também. Em Portugal, um país sempre muito amistoso, viu-se agressões e ofensas a brasileiros no aeroporto.
Da mesma forma na Irlanda e na Alemanha, onde teve casos de hostilidade e manifestação de ódio contra os imigrantes, até chegando a agressões físicas. Nunca houve isso dessa forma, é uma realidade construída e provocada por este radicalismo de políticas de extrema-direita. Esses países sempre foram acolhedores, agora nutrem esse sentimento de ódio contra os não nativos.
IHU – O Estado e o governo brasileiro estão preparados para receber os repatriados?
Sueli Siqueira – De forma geral, diria que não. Mas há uma coisa apositiva que agora se começa a pensar mais neste tema, a despeito da deportação sempre ter existido. Precisam ter um centro de acolhimento dos deportados, assim como tem para os imigrantes estrangeiros que vêm para cá.
Além disso, é preciso estruturar uma política de assistência psicológica para essas famílias, nos estados e municipais para onde elas vão viver no final. Conheço pessoas que sequer puderam ir para casa pegar seus documentos, pertences mais básicos. Outras tinham juntado dinheiro de dois anos de trabalho e guardado. Tudo ficou para trás, porque foram atacadas quando estavam na igreja, na escola, no hospital, no trabalho ou na rua.
Isso é terrível, drástico. Elas precisam de uma política de apoio psicológico e material para recomeçarem suas vidas. Então os prefeitos precisam de algum programa para ajudar essas pessoas, até por que a migração sempre existiu e vai continuar a existir. Agora há uma situação mais aguda apenas.
IHU – Como avalia a reação e postura do presidente da Colômbia Gustavo Petro?
Sueli Siqueira – Governos não têm como negar receber seus cidadãos, o que devem é questionar e negociar a forma e as condições de fazer isso. Acho que o governo brasileiro agiu muito bem diante da situação, de forma soberana.
Já o governo colombiano acabou tendo uma reação mais enérgica, o que avalio positivo porque teve uma grande repercussão internacional, mostrando altivez de um governo latino-americano. Claro, questionando a condição desumana das deportações. No final, recebeu os cidadãos como tem que ser.