11 Dezembro 2024
Como sabiamente apontava Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. Nessa esteira, para Joaquín Herrera Flores “os direitos humanos, mais que direitos ‘propriamente ditos’, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”[2]. Isto é, nenhum direito é dado, mas fruto de um longo processo de lutas sociais. E, da mesma forma, direito algum está imune aos retrocessos histórico-políticos.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“No começo pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica”, confidenciou Chico Mendes. Mas “agora”, arrematou o líder seringueiro, “percebo que estou lutando pela humanidade”. Em tempos da volta de Trump à presidência dos Estados Unidos, do extermínio dos palestinos em Gaza e da explosão da violência policial em São Paulo, trata-se de uma oportunidade propícia para fazer memória, considerando três marcos importantes. Uma semana que vai do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12), passando pela Festa da Senhora de Guadalupe (12/12) até a celebração do 80º aniversário de nascimento (15/12) de um dos maiores defensores da floresta e de seus povos, Chico Mendes.
Em 2025, completam-se também os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e, talvez como nunca, o mundo parece à beira de um novo abismo. Os governos de extrema-direita e os discursos fundamentalistas se fortaleceram de maneira surpreendente. O multilateralismo se enfraqueceu e a comunidade internacional parece incapaz de reagir com firmeza às carnificinas tão bem registradas, praticamente em tempo real.
Na autonomeada maior democracia do planeta, há uma promessa de deportação em massa de 10 milhões de migrantes, além da saída do Acordo de Paris, mecanismo responsável pelo enfrentamento da crise climática. Em nome de ideologias coloniais tresloucadas, os governos autoritários de Putin e Netanyahu avançam sobre o território da Ucrânia e da Palestina, deixando um rastro de destruição e de dezenas de milhares de mortos. A ditadura neoliberal do “livre” mercado exige sacrifícios cada vez maiores de cortes sociais que mantêm milhões de pessoas na pobreza. No meio do caminho, os Direitos Humanos.
Sem negar os evidentes avanços das últimas décadas, como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e muitos outros relevantes tratados nesta área, os ataques também são robustos. Se historicamente os Direitos Humanos nasceram a partir das revoluções burguesas, é imperioso ressignificar e ampliar tais perspectivas, buscando novos fundamentos para tanto, como ensina Fernanda Frizzo Bragato:
“A desconfiança que ainda hoje persegue a ideia dos direitos humanos e obstaculiza suas possibilidades de validez universal guarda muitos aspectos da crítica marxiana. Essa desconfiança deita suas raízes na estática ligação dos direitos humanos aos pressupostos liberais das Revoluções Americana e Francesa do século XVIII – liberdade, igualdade e segurança –, que inexoravelmente resultaram na limitação de direitos ao homem burguês, branco e ocidental. Por outro lado, ainda que tenham se consagrado no século XVIII como direitos burgueses, é inegável que desde Marx e da Revolução Francesa os direitos humanos têm ampliado seu espectro de incidência e alcançado, não apenas o homem burguês, senão um universo cada vez mais amplo de seres humanos”.[1]
Como sabiamente apontava Chico Mendes “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. Nessa esteira, para Joaquín Herrera Flores “os direitos humanos, mais que direitos ‘propriamente ditos’, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”[2]. Ou seja, nenhum direito é dado, mas fruto de um longo processo de lutas sociais. E, da mesma forma, direito algum está imune aos retrocessos histórico-políticos.
Celebrar a Virgem de Tepeyac, padroeira da América Latina, também é ocasião de se conectar com a Igreja da Libertação que, principalmente após o Concílio Vaticano II, se voltou para os empobrecidos e marginalizados, por meio das pastorais sociais e das comunidades eclesiais de base (CEBs). Apesar da Igreja de ter se valido do poder colonizador e de ter cometido uma infinidade de abusos ao longo dos séculos – como já reconheceram inúmeros papas –, também houve resistências no seio eclesial como a do frei dominicano Bartolomeu de las Casas, grande defensor da causa indígena. Nesse sentido, assevera Marcelo Barros:
“Na América Latina, o que aconteceu foi que religiosos/as e alguns pastores e agentes de pastoral, tanto da Igreja Católica, como de algumas Igrejas evangélicas, assumiram a espiritualidade da inserção e, ao se colocarem como pequenos junto aos pequenos, passaram a sofrer os ataques e perseguições que os setores oprimidos sempre sofreram. Alguns entraram nisso conscientemente. Outros/as sem se dar conta de todas as consequências que a inserção acarreta. Apesar de que a deserção, a fuga e mesma a traição sempre seriam possíveis e uma vez ou outra aconteceram, pela graça de Deus e pela força do Espírito, para a maioria das pessoas que fizeram essa opção, desde o começo a profecia e o martírio se revelaram naquelas décadas e hoje ainda se mostram como um caminho sem volta”.[3]
Colocar-se ao lado dos explorados teve seu preço que foi pago com o sangue de incontáveis mártires. Homens e mulheres que assumiram os oprimidos como critério de seu testemunho. Entre eles, vale destacar o profetismo de Dom Óscar Romero, dos mártires da Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA) e a coragem da Irmã Dorothy Stang. Cristãos e cristãs que não temeram as tensões e os conflitos advindos do compromisso com a justiça e, por isso, levaram os ensinamentos evangélicos até as últimas consequências.
Há cerca de um mês, em 16 de novembro, se completaram 35 anos do brutal assassinato dos padres jesuítas Joaquín López Y López, Segundo Montes, Juan Ramon Moreno, Amando López, Ignacio Martín-Baró e Ignacio Ellacuría e da cozinheira Elba Ramos e de sua filha Celina Ramos. Foram homens que, apesar de estarem dedicados à universidade, souberam aliar uma reflexão crítica e de denúncia dos autoritarismos do regime de El Salvador, com uma presença importante junto às comunidades camponesas e periféricas. Estavam, assim, alinhados com aquilo que defendia São Óscar Romero:
“Eu quisera que sublinhássemos muito este grande ensinamento, porque a Igreja não está na terra para privilégios, para apoiar-se no poder ou na riqueza, para congratular-se com os grandes do mundo. A Igreja não está sequer para construir grandes templos materiais ou monumentos” (30/07/1978).[4]
Cientes das forças que massacravam o povo salvadorenho, esses jesuítas não se contentaram com o papel de meros intelectuais, na análise crítica das razões da profunda desigualdade daquela sociedade centro-americana. Suas ações e suas presenças solidárias incomodaram os poderosos de então, porque entenderam que “um cristão que se solidariza com a parte opressora não é um verdadeiro cristão”. “Um cristão que defende posições injustas que não se podem defender, apenas para manter seu posto, já não é cristão” (16/09/1979)[5], como conclamava com coragem o então arcebispo de San Salvador, também ele prestes a ser martirizado em 1980.
Ignacio Ellacuría, reitor da UCA e renomado filósofo da libertação, estava convencido que “no processo de libertação dos povos latino-americanos, a Universidade não pode fazer tudo, mas o que tem que fazer é indispensável” e “se falhar neste fazer, terá fracassado como Universidade e terá traído sua missão histórica”[6]. Entendia que a causa do conflito armado no país se devia à injustiça estrutural e que era preciso apostar na negociação política, sempre acompanhada pela manifestação legítima das maiorias populares pelos seus direitos.
Entusiasta da educação popular e único salvadorenho do grupo formado por jesuítas espanhóis, o Padre Joaquín López Y López sabia da importância de apostar na formação crítica das pessoas: “se teus projetos são para 5 anos, semeia trigo; se são para 10, planta uma árvore; mas se são para 100 anos, educa o povo”[7]. Esses religiosos eram perigosos para a manutenção do status quo, suas ideias consideradas por demais subversivas para a elite que controlava o país.
Preocupado com as violações contra os direitos básicos da população, o Padre Segundo Montes fundou, em 1985, o Instituto de Direitos Humanos (IDHUCA), do qual foi diretor até o seu martírio. Alertado por um ex-aluno das Forças Armadas que corria perigo, respondeu com firmeza convicta: “que vou fazer? Se me matam, matam”[8]. Já o Padre Amando López não tolerava dubiedades e ao ser nomeado membro da Comissão de Direitos Humanos do governo revolucionário sandinista da Nicarágua, renunciou quando percebeu que suas denúncias eram ignoradas.
Por sua vez, o Padre Martín-Baró foi um dos grandes expoentes da Psicologia Social Latino-Americana. Para o jesuíta, “a consciência humana é essencialmente psicossocial e ininteligível sem referência na realidade que a circunda e define”[9], defendendo uma “Psicologia comprometida criticamente com os diferentes projetos alternativos de sociedade presentes na América Latina”[10].
Projetos esses que foram sempre sendo adiados ao longo dos séculos de exploração do continente. Para tanto, com o fim de romper com uma concepção eurocêntrica de direitos, Ellacuría dizia que “se não se historiciza o problema dos direitos humanos não se pode sair dessa complexidade e ambiguidade”[11]:
“A suposição fundamental é que os direitos humanos podem e devem alcançar uma perspectiva e validade universal, mas que isto não será alcançado se o “de” onde é considerado e o “para” quem e “para” o que são proclamados não for levado em conta. Conseqüentemente, você tem que ser claro e explícito sobre aquele “de” e aquele “para”, que neste caso, [...] é a partir dos povos oprimidos e das maiorias populares para a busca de sua libertação. Acima de tudo, quando se fala de direitos humanos em uma situação determinada, o conceito deve ser historicizado para não se cair em armadilhas ideológicas”.[12]
Simples seringueiro das florestas de Xapuri, no Acre, Chico Mendes soube historicizar as demandas de sua comunidade, tornando-se uma figura emblemática na luta pela Amazônia e seus povos tradicionais. Alfabetizado aos 16 anos pelo militante comunista Euclides Távora, participava ativamente das comunidades eclesiais de base (CEBs) da Igreja Católica, onde pôde se formar criticamente e se engajar pela promoção da justiça social. Anos depois, fundaria o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e o Partido dos Trabalhadores (PT) na sua região.
Percebendo a fúria destruidora do “desenvolvimento” capitalista que derrubava as centenárias seringueiras das quais dependiam as famílias locais, articulou a União dos Povos da Floresta, com a participação de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas. Aquilo que o grande pensador quilombola Antônio Bispo magistralmente sintetizou:
“A surpresa para os colonialistas e a felicidade para nós é que, quando nós chegamos ao território dos indígenas, encontramos modos parecidos com os nossos. Encontramos relações com a natureza parecidas com as nossas. Houve uma grande confluência nos modos e nos pensamentos. E isso nos fortaleceu. E aí fizemos uma grande aliança cosmológica, mesmo falando línguas diferentes. Pelos nossos comportamentos, pelos nossos modos, a gente se entendeu. Isso aconteceu durante todo o período histórico colonialista e ainda acontece”.[13]
Mesmo tendo ganhado inúmeros prêmios e participado de reuniões na ONU e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sua fama não foi suficiente para lhe proteger dos autoritários fazendeiros e grileiros que o assassinaram em 22 de dezembro de 1988. Ainda assim, sua luta não foi em vão. Entre seus frutos estão a criação do combativo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e as fundamentais 75 Reservas Extrativistas (Resex), que hoje protegem 14 milhões de hectares de floresta. Seu engajamento continua vibrante na força de centenas de lideranças tradicionais que permanecem comprometidas na luta em defesa da Amazônia.
Uma de suas herdeiras políticas, Marina Silva, tornou-se uma ambientalista com reconhecimento internacional e chegou à chefia do Ministério do Meio Ambiente, de onde têm adotado medidas duras no enfrentamento ao desmatamento e à crise climática. Em meio a um Congresso reacionário e inimigo da natureza, a pupila de Chico Mendes vem resistindo como pode às investidas pela liberação da exploração de petróleo em plena Foz do Rio Amazonas. Qualquer ação em sentido contrário seria trair o legado de seu velho mestre e rasgar a sua respeitada biografia!
Historicizar a luta pelos Direitos Humanos é, como diz Antônio Bispo, contracolonizar, ou seja, “reeditar as nossas trajetórias a partir das nossas matrizes”. Trata-se de “uma confluência entre os saberes” e “um processo de equilíbrio entre as civilizações diversas deste lugar”[14]. Assim, que falem – ou melhor, que dancem ao som dos atabaques e maracás, nas romarias do povo que caminha pela libertação – as tradições ancestrais dos povos que habitam Abya Yala. Ou, como ensina o bispo-profeta Pedro Casaldáliga: “que o sangue dos mártires não nos deixe em paz”[15].
[1] BRAGATO, Fernanda Frizzo. Dignidade humana pluriversal: uma leitura descolonial na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 77/78.
[2] HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 28.
[3] BARROS, Marcelo. Profecia e Martírio na Caminhada. São Leopoldo: Centro de Estudos Bíblicos-CEBI, 2022, p. 90.
[4] DIEZ, Miguel Cavada (org.). Día a día com Monseñor Romero. San Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado de El Salvador, 2006, p. 117.
[5] Idem, p. 259.
[6] ROCHA, Adair José dos Santos. Mártires da UCA: ninguém tem maior amor. Porto Alegre: Livraria Padre Reus, 2007, p. 41.
[7] Idem, p. 13.
[8] Idem, p. 20.
[9] Idem, p. 32.
[10] Idem, p. 33.
[11] ELLACURÍA, Ignacio. Escritos filosógicos III. São Salvador: UCA Editores, 2001, p. 434.
[12] Idem, p. 433.
[13] SANTOS, Antônio Bispo dos. Somos da terra. In: CARNEVALLi, Felipe; REGALDO, Fernanda; LOBATO, Paula; MARQUEZ, Renata e CANÇADO, Wellington (org.). Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023, p. 10.
[14] Idem, p. 17.
[15] HECK, Egon. Pedro e os mártires indígenas. Boletim do CIMI, de 27-07-2011. Disponível em: cimi.org.br/2011/07/32382/
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A historicização dos Direitos Humanos: os mártires da UCA e a resistência de Chico Mendes. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU