27 Mai 2019
No escaldante verão castelhano de 1550, na capela do Convento de São Gregório, em Valladolid, quatorze ilustres notáveis e estudiosos entravam para dirimir a disputa sobre as Índias e escutar um duelo de oratórias que duraria seis dias, entre Juan Ginés de Sepúlveda, preceptor latino do príncipe herdeiro Felipe, e Bartolomeu de Las Casas, bispo de Chiapas. A que ali se reunia foi a chamada "Junta", encomendada por Carlos V, imperador dos Habsburgos e o rei da Espanha. Haviam se passado 58 anos desde o primeiro desembarque de Cristóvão Colombo além oceano, o grande caso das injustas apropriações espanholas estava sendo aberto e justamente por aquele bispo, Bartolomeu. Ele havia começado uma campanha implacável contra a escravidão dos índios e a guerra imotivada contra eles. Las Casas considerava este o principal objetivo de sua existência e a missão para a qual ele era chamado como cristão.
O artigo é do filósofo, jornalista e escritor italiano Giancarlo Bosetti, diretor da revista de cultura política Reset, cofundada com Norberto Bobbio, dentre outros, publicado no jornal La Repubblica, 26-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A ação contra o sistema das encomiendas (as concessões de territórios e populações nativas reduzidas à escravidão) e dos repartimientos (divisão dos índios como animais sem qualquer consideração por suas famílias) atacava posições adquiridas, das quais ninguém estava disposto a renunciar. A revolta furiosa contra esse religioso, que parecia ser uma ameaça subversiva aos assentamentos criados no novo mundo, era multiplicada pela zombaria de que o inimigo havia sido "um deles". Os encomenderos aspiravam à herança dos títulos de propriedade afirmados nos fatos e pressionavam a Corte com protestos contra a campanha estúpida orquestrada por essa criatura mentirosa, de quem se chegara a dizer que fosse "subornada pelo demônio".
Ora, em Valladolid, na disputa que estava prestes a começar, o adversário, Sepúlveda, tentou fazer uso do descontentamento e dar-lhe um golpe final no plano teológico. Mas Las Casas era um osso muito duro, não só por sua tenacidade e sutileza. Ele havia tecido alianças entre as ordens religiosas, cultivado amizades e sempre mantinha contatos com o imperador. A "inferioridade" dos índios era moeda corrente nas colônias e ele sabia muito bem como era difícil erradicar uma suposição de senso comum sobre a qual se sustentava a ordem das encomiendas.
A primeira fase da Conquista, Bartolomeu havia escrito ao rei, já havia exterminado milhões de homúnculos: apenas na ilha de Hispaniola havia, na época do desembarque da Armada de Cortés, três milhões de habitantes, quase todos desaparecidos. Em todas as Índias as vítimas eram entre 12 e 15 milhões de pessoas. Enquanto Sepúlveda ainda está falando sobre os índios como naturalmente destinados à escravidão por causa de sua inferioridade, Bartolomeu sabe que os indígenas das Américas eram para seu acusador o equivalente a matérias-primas, mas está à espera dos argumentos mais pesados, sobre idolatria, sacrifícios humanos e canibalismo. E, acima de tudo, está à espreita de um erro, que poderia custar caro à acusação, algo que diga respeito às reais motivações para a Conquista pelos espanhóis. E, em determinando momento, o adversário deixou escapar o argumento "errado": a admissão da verdadeira natureza das expedições, enquanto ao nosso bispo aflorava um sorriso de satisfação, como quando o advogado durante o processo vê uma pequena fresta que abre o caminho para o seu triunfo legal.
No afã oratório, estas palavras saem da boca de Sepúlveda: caso se quisesse enviar para lá pessoas para a pregação e para proteger os pregadores, "não se encontraria nenhuma, nem mesmo a trinta ducados por mês, porque as pessoas vão para lá e arriscam suas vidas pelo lucro, pelas minas de ouro e prata e pela ajuda dos índios". Feito. O motor da Conquista armada é também para Sepúlveda muito diferente de seu fundamento jurídico: a evangelização. O ponto chave da réplica já está pronto na cabeça de Bartolomeu e ele o usará com toda a força: por um lado ouro, prata e servidão dos índios, pelo outro, os objetivos evangélicos e civilizatórios, extirpar a idolatria e os vícios, agir para que não impeçam a pregação e se convertam, não recaiam nas idolatrias e heresias e para que na relação estável com os espanhóis se confirmem na fé e abandonem ritos e costumes bárbaros. Os colonos não vão às Índias pelo amor de Deus ou pelo zelo da fé, nem para salvar o próximo ou para servir ao Rei, de que se vangloriam por falsidade, mas por cobiça, para dominar os índios, para dividi-los entre si como animais numa posse perpétua tirânica infernal, eles vão lá "apropriar-se deles".
E sobre os sacrifícios humanos e sobre o canibalismo pensou uma resposta que teria marcado sua vitória e que ainda pode falar à nossa consciência atual: os sacrifícios humanos dos índios não representavam uma exceção em relação à história da religião a nós mais conhecida, sempre existiram (Abraão estava pronto para sacrificar Isaque). Aos exemplos, numerosos, do Antigo Testamento, acrescentava os ensinamentos do Novo: o sacrifício de Jesus pelo Pai no centro da mensagem do Evangelho. Mas para tais analogias, Las Casas apresenta a passagem decisiva: os pagãos das Índias pensavam agradar a Deus e "sua ignorância é desculpável porque eles não conhecem a lei sobrenatural da graça, mas apenas a lei natural que ainda é nebulosa".
Para o bispo de Chiapas, eles são "pagãos simples e mansos" com os quais Cristo reencontrou ovelhas perdidas, as colocou em seus ombros, e agora deveria estar - uma irônica pergunta dirigida a Sepúlveda - "feliz em ver Seus discípulos se lançarem com lanças e espadas contra estas pessoas que nunca receberam a fé e não nos fizeram mal algum?” Para Las Casas as duas "realidades negras" não são equivalentes porque o sacrifício humano é um crime religioso, enquanto o massacre de índios indefesos é um crime contra Deus, e se para Sepúlveda a salvação de uma só alma vale tantas mortes inocentes, para Las Casas a morte de um único homem tem maior peso do que a sua salvação.
Essas são atitudes com as quais Las Casas desafiava toda a sua época. Dele, dominicano, o franciscano Turíbio de Benavente, conhecido como Motolinìa, escreveu ao imperador que não o aguentava mais e procurava coletar todos os escritos daquele "bispo briguento" para que não prejudicassem a alma de ninguém e os queimava, ad majorem Dei gloriam. E não se esquecia de insinuar que em seus territórios havia muito mais empenho em excomungar um espanhol do que em converter um índio. "Assim acaba a fé aguada de quem honra demais a fé alheia". As usuais acusações de covardia e traição dos "nossos" valores sagrados de parte daqueles que agitam o natural etnocentrismo de cada cultura.
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O bispo que amava os índios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU