Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 03 Outubro 2018
Enquanto o clero for encastelado, a juventude continuará desabrigada e violentada também pela instituição. A falta de espaço, compreensão e acompanhamento, é sim uma soma da Igreja na correlação de forças do capital, do patriarcado e do racismo. Francisco instiga, provoca a romper com essa lógica.
O artigo é de Wagner Fernandes de Azevedo, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria. O texto foi apresentado no Simpósio Juventude e Fé, promovido pelo Anchietanum – Centro de Juventude da Companhia de Jesus no Brasil em 01-09-2018.
O Sínodo dos Bispos com a temática Jovens, a fé e o discernimento vocacional, inicia na quarta-feira, 03-10-2018, com as proposições do Concilio Vaticano II e do pontificado de Francisco. Essa sinodalidade é uma radicalização, por assim dizer, democrática da Igreja. A participação no Sínodo da Família, 2014 e 2015, envolveu a expansão da discussão às comunidades, com texto-base, questionários e a participação de famílias no encontro com os bispos. Entretanto, há nesse pontificado de Francisco, desde o seu primeiro momento, a orientação de "uma igreja pobre para os pobres". Portanto, a partir dessa premissa que o Sínodo da Juventude é excepcional.
Pela primeira vez a Igreja do mundo reúne-se para debater sobre juventude. Os encontros da Jornada Mundial da Juventude, motivados pelo papa João Paulo II, em 1985, são encontros de massa, de mobilização juvenil. As expressões das JMJs sempre foram distantes da maioria dos jovens, exemplo é a edição recente ocorrida no Brasil. Apesar da participação massiva, calculada em mais de 2 milhões de jovens, envolvia custos organizacionais e participativos, isso é, uma reorientação da formação e estruturação do processo de evangelização da juventude no país – e ademais os custos financeiros. Isso não significa que as JMJs foram experiências frustradas, mas são impositivas ao desconsiderar que a organização pastoral dos jovens, deve ser continuamente integral em seu processo formativo e vivencial. No documento produzido pela reunião Pré-Sinodal, de março de 2018, os quase 300 jovens participantes presencialmente e outros 15 mil pela internet apontaram que há uma seletividade nas participações da JMJ, sobretudo ao se considerar a possibilidade de participação internacional.
Essas características próprias do evento massificam a juventude, tornam-na “a juventude do papa”, colocam cruzes para jovens carregarem enquanto bispos e padres os aplaudem, mas não sustentam com a juventude as cruzes que enfrentam, na paixão pela vida, diariamente. Essa relação pode ser apontada como um símbolo da crise clericalista da Igreja. Não há no jovem a expressão de ser um sujeito de direito à participação da instância eclesial.
Por que importa citar que o Sínodo e a JMJ se contrapõem? Porque ao se admitir uma formação integral da juventude, estamos considerando que a dimensão festiva, de encontro, não pode ser relegada, nem impositiva. O padre Hilário Dick, ainda em meados dos anos 90 apresentava uma teologia jovem, aponta a festa como uma dimensão da identidade juvenil. Mas a festa é momento celebrativo da caminhada perpassada pelos próprios jovens.
O Instrumentum laboris do Sínodo pode se dizer que é um caminho feito pelos jovens. As participações nas comunidades, na internet, discussões entre pastorais e movimentos, questionários encaminhados ao Vaticano... um processo de democracia direta, e que dado em uma instituição “monárquica”, realiza o que nossas instituições do Estado não contemplam mais.
A abertura sinodal do papa Francisco rompeu com tabus. Os jovens discutiram temáticas que tocam a sua realidade concreta, em muitas vezes contrapostas ao percurso que a Igreja propõe ou, para muitas jovens, impõe. O teólogo Peter Hunnermann afirma que a sinodalidade é a grande novidade impulsionada nesse papado. Citando o Papa, afirma que “é impossível tratar o povo de Deus, que foi distinguido pelo Espírito Santo com o sensus fidei, que não se engana, e tem parte na missão profética de Jesus Cristo, como sujeito meramente passivo a ser instruído por ministros”. A diferença de incluir esses jovens como sujeitos ativos, e não passivos na Igreja, previne umas das doenças clericais que parasitam a instituição: a esquizofrenia existencial. Diz Francisco que a esquizofrenia é “atinge muitas vezes aqueles que, abandonando o serviço pastoral, se limitam às coisas burocráticas, perdendo assim o contato com a realidade, com as pessoas concretas”.
Pois os temas que tocam a vida da juventude e são simplesmente tabus na Igreja e, influenciados pelo pensamento religioso muitas vezes, na sociedade moderna, não podem ser trabalhados no sentimento da esquizofrenia. Isso é, não se pode viver e pensar duplamente e contraditoriamente. A burocracia, por vezes dita até espiritual, institui à concretude apontamentos e normas que afrontam a vida dos e das jovens, literalmente.
Que questões cruciais da vida apareceram na discussão entre os jovens? Aborto, homossexualidade, feminismo, violência, racismo, intolerância religiosa... porém, vale destacar que a juventude não é um grupo homogêneo. São preocupações que atingem diretamente a vida de muitos e muitas jovens.
Portanto, é importante frisar que o relatório final da Reunião Pré-sinodal e o Instrumentum laboris expõem essa diversidade. Há jovens que gostariam que o posicionamento da igreja mudasse, há jovens que querem aprender mais sobre aquilo que a igreja ensina, e há muitos jovens que são felizes com o ensinamento da igreja. A juventude não é essencialmente revolucionária. É uma categoria que está sempre em construção, e seja na Igreja, no mercado ou na política, está em conflito.
O papa Francisco aponta como a economia de mercado “fagocita tudo, qualquer realidade frágil fica indefesa diante do mercado divinizado” (Evangelii Gaudium, 56). Exemplo disso é a mercantilização das pautas LGBTs, feministas, do povo negro... embora o patriarcado, o racismo e o colonialismo sejam pilares desse sistema. A economia de mercado se reorganiza sobre esses assuntos e se alimenta, se fortalece captando o que está na superfície, como se possibilitasse uma transformação instantânea das desigualdades e das violências.
A sociedade de mercado atenta contra a vida da juventude e seu produto, em termos estatísticos, é a morte, em números crescentes, para grupos bem demarcados. No Brasil, por exemplo, o Atlas da Violência aponta que houve redução na taxa de homicídios de não-negros. Entretanto, 33.590 jovens foram assassinados em 2016, crescimento de 7,4% em um ano, e a taxa de homicídio de negros é 2,5 vezes maior que a de não negros, e há um aumento constante nesses números, sendo de 23% de 2015 para 2016.
O trabalho de evangelização da juventude envolve um compromisso de transformação social, e de forma integral. Discutir as questões de modo superficial, ao modelo do mercado, apenas desloca estatísticas com maior intensidade para os grupos mais vulneráveis.
A política, sobretudo latino-americana, tem entrelaçada essa relação contraditória do pensamento cristão com a economia de mercado. Estados são laicos, mas não seculares, logo há interferência das igrejas na discussão de políticas públicas. Exemplo recente disso é o movimento das mulheres argentinas, jovens, adultas e idosas que protagonizaram um debate ao decorrer de 2018 sobre o aborto. Embora a pauta tenha sido aprovada na Câmara, a possibilidade de legalização de interrupção voluntária de gravidez despertou a reação dos cristãos, com protagonismo da Igreja Católica. Bispos, padres e leigos mobilizaram o país com missas pela vida - uma inclusive ao mesmo tempo que a votação ocorria no Senado, onde o projeto foi rejeitado.
Porém, esse debate em sua complexidade que envolve, chacoalhou a Igreja pastoralmente. Padres villeros criaram grupos e lares de acompanhamento para mães. Os bispos comprometeram-se em ter um posicionamento pró-vida de forma pastoral, de promoção de acompanhamento pré-natal e depois do nascimento, atendendo materialmente, psicologicamente e espiritualmente as mães em situação de vulnerabilidade.
A declaração de Dom Oscar Ojea, presidente da Conferência Episcopal Argentina, e posteriormente reafirmada pela Comissão de Defesa da Vida, formada por igrejas e membros da sociedade civil contrários ao projeto de lei, deixou isso claro: “a educação sexual responsável, o acompanhamento aos lares maternais surgidos, especialmente nos nossos bairros mais humildes para acompanhar mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade e a atenção às pessoas que tenham passado pelo drama do aborto”.
De posicionamento similar, o padre irlandês Thomas Reese, aponta a necessidade de se pensar essa nova estratégia pró-vida depois a aprovação do aborto na Irlanda, país majoritariamente católico: “Os defensores pró-vida deveriam apoiar fortemente os programas que dão às mulheres uma escolha real – aumento do salário mínimo, creches gratuitas ou acessíveis para mães trabalhadoras e estudantes, assistência médica gratuita ou acessível para as mães e seus filhos, programas de licença parental, programas de educação e de formação profissional, suplementos de renda e alimentares etc. Em suma, o movimento pró-vida deve apoiar qualquer programa que alivie o fardo para as mães e seus filhos.”
O tema do aborto que era indiscutível na Igreja, foi discutido quando a sociedade participou diretamente, viveu-se um momento democrático direto, de diálogo, proposições, contradições, e resoluções.
A sinodalidade pode ser uma expansão dessa radicalização democrática. Porém, em tempos que a democracia, na América Latina e grande parte do mundo, está questionada. Segundo Massimo Faggioli ‘A Igreja Católica está alcançando somente agora a revolução democrática dos séculos XIX e XX, enquanto a democracia representativa está sendo desafiada pelo mundo virtual das mídias sociais e das redes sociais”. A possibilidade de tensões que a democracia proporciona se desenrolou na discussão online do pré-Sínodo. Alguns grupos se organizaram por um “lobby” a favor de missas em latim, impulsionando o termo inclusive para os trending topics do twitter. Esse exemplo reforça como a juventude, organizada em diferentes grupos, está em disputa. Independente de analisar se os jovens são sujeitos ou massa de manobra nesse conflito.
O risco da tensão é de um movimento democrático ser desprezado e descartado por si mesmo. A sinodalidade, pode tornar-se apenas colegialidade, fortalecer as conferências episcopais, descentralizar as decisões, mas nessa disputa de forças, construir pequenos feudos e dando autonomia aos seus reis.
A intensa oposição que o papa Francisco tem enfrentado exige uma complexa análise de quais unidades estão em disputa. É preciso compreender a composição das forças e qual projeto de Igreja está de fundo? E mesmo diante de toda a complexidade das forças, dos atores, o contexto político, a disputa internacional entre polos de poder, a Igreja é uma instituição milenar, maior no tempo, que no espaço, hoje.
Por isso não há cenário para mudanças na doutrina nesse Sínodo, como anseiam muitos jovens. O que não significa que não se construam mudanças pastorais. A partir do Instrumentum laboris, dois pontos podem ser apontados como núcleo da discussão sobre evangelização da juventude e discernimento vocacional:
1 – Acompanhamento: instituir pastoralmente estruturas de acompanhamento e diálogo junto à juventude. Uma Igreja missionária, com a expressão de Helder Câmara, missionário “que esvazia-se de si para preencher-se do outro”. Igreja da acolhida e da discussão sobre a sexualidade e afetividade, violência e seus diferentes segmentos atingidos, o aborto e o abandono paternal. O papa Francisco na abertura e encerramento da Reunião Pré-Sinodal reforçou a necessidade de os jovens se pronunciarem sobre os anseios e cobrar dos adultos que sejam ouvidos.
2 – Discernimento vocacional, embora a formação sacerdotal seja um elemento a parte e mais complexo: É essencial para o discernimento que haja envolvimento comunitário do jovem, com formação integral. Ser jovem na sociedade e na igreja, é ser jovem. Não pode se pensar um jovem clericalizado, isso é, que vê ação pastoral apenas na batina e nos sacramentos.
A maior mudança que o Sínodo pode propor em relação à crise que o clericalismo causa, e o Papa insiste sobretudo em suas falas aos seminaristas, é uma mudança de formação e um acompanhamento pessoal e comunitário para o discernimento vocacional. Uma formação integral que não retira o adolescente ou o jovem e a jovem do contexto social de outros e outras jovens.
Essa relação fortifica o discernimento seja para vocação religiosa, matrimonial ou leiga. Excluir a possibilidade de esquizofrenia da vida juvenil, esvaziar a instituição da burocracia e da rigidez, para preenche-la da missão e da realidade concreta. Como a razão dialética gerou no jovem rico. Não há uma oposição da matéria e do espírito, mas percebendo que sua vida é um fruto de decisões, em contraposição da objetividade com a subjetividade, projetou o futuro diante do contato, e naquele caso, com o projeto de vida de Jesus Cristo.
Enquanto o clero for encastelado, a juventude continuará desabrigada e violentada também pela instituição. A falta de espaço, compreensão e acompanhamento, é sim uma soma da Igreja na correlação de forças do capital, do patriarcado e do racismo. Francisco instiga, provoca a romper com essa lógica, reconhecendo na sua integralidade, de vivências afetivas e religiosas diversas, porque em uma sociedade complexa em alguma hora manifesta-se contra si novamente, como a resposta totalitária, fascista, de clamor militarizado pela segurança, com o cisma e a descrença nas instituições.
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O Sínodo e as possíveis transformações da Igreja para as juventudes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU