Por: Patricia Fachin | 23 Março 2018
O assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco, “assinala a consolidação em um novo patamar da estrutura do crime organizado no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense”, afirma o sociólogo José Cláudio Alves, que conhece de perto a realidade das favelas cariocas. Na avaliação dele, esse caso “abre uma etapa mais profunda na intensificação, ousadia e certeza de impunidade” das milícias, e demonstra “uma penetração e fortalecimento da rede do crime organizado por dentro do Estado”. A execução de Marielle, adverte na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, é um aviso de que esses grupos “não vão ceder nenhum milímetro. Dão um recado de que eliminarão qualquer um que se contraponha a eles”.
Alana Moraes, que também respondeu as questões a seguir por e-mail, lembra que “as balas que mataram Marielle são balas do Estado, da Polícia Federal” e frisa que “todo mundo sabe que o crime organizado no Rio e em qualquer outro lugar do Brasil só opera em aliança com a polícia, com os poderosos”. Para a antropóloga, “a execução da Marielle abre uma fenda na história política do país” e demonstra que não existe um caos no Rio de Janeiro, mas antes que “a segurança pública do Rio de Janeiro é uma escolha política. É uma estratégia de governo produzir a crise”.
José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo - USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.
Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a execução da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, significa em termos políticos?
Alana Moraes (Foto: Anielle Silva | IHU)
Alana Moraes – A execução da Marielle abre uma fenda na história política do país. É uma fenda que nos obriga, de uma vez por todas, a assumir nossa herança colonial, violenta, escravocrata e patriarcal. A execução trágica de Marielle nos convoca a pensar de forma definitiva que não é possível um projeto de emancipação coletiva que não leve em conta nossas dívidas coloniais. No dia de sua morte, Marielle lembrou no Twitter o aniversário de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra que ousou contar sua própria história. É uma dívida ancestral. O aparato colonial é a matéria-prima desse Estado penal que Marielle denunciava. Um Estado de exceção permanente, que mata um jovem preto a cada 23 minutos. Como isso pode ser naturalizado? Um Estado que hoje decide investir dinheiro público em uma megaoperação militar enquanto deixa fechar a UERJ, por exemplo. A UERJ que, aliás, foi a primeira universidade a adotar a política de cotas raciais e hoje paga a conta por isso. Marielle era perigosa porque denunciava o que são os dois pilares de sustentação do poder e do capitalismo: o patriarcado e o aparato do Estado penal racista. Para mim, essas são as lutas incontornáveis do nosso tempo.
José Cláudio Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)
José Cláudio Alves – O assassinato de Marielle Franco assinala a consolidação em um novo patamar da estrutura do crime organizado no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense, na direção daquilo que já venho apontando em várias entrevistas concedidas à IHU On-Line. Ou seja, a manifestação do poder de eliminação alcançado por grupos que dentro da estrutura do Estado, no caso agentes de segurança, ou articulados com estes, organizam e operam os vários negócios associados ao funcionamento de ganhos através das milícias, tráfico de drogas, execução sumária e as mais diferentes práticas de roubo. A eliminação de Marielle abre uma etapa mais profunda na intensificação, ousadia e certeza de impunidade destes grupos, revelando a fragilidade e vulnerabilidade à qual a sociedade em geral, mas principalmente os que se contrapõem aos interesses destes grupos, estão expostos. O terror e o medo são potencialidades numa nova etapa. Há uma clara mensagem a todos os que lutam pelos direitos humanos.
A impotência torna-se muito nítida. Vindo das entranhas do próprio aparato de segurança do Estado, isto é, daquele que deveria garantir a segurança, a ação dos grupos criminosos se torna totalitária, imbatível, desdenhosa, nos jogando a todos na vala comum do medo e da impotência. Em contraposição a isto, precisamos elevar a nossa ação e reflexão para este novo patamar.
Precisamos aprofundar a análise das causas e das saídas, ir à raiz destas questões. Primeiro, como alterar a configuração dos comandos da Polícia Militar e Civil hoje completamente comprometidos? Como descriminalizar o consumo de drogas a fim de tratá-lo como questão de saúde, retirando a centralidade deste mercado? Como desmontar o controle militarizado de áreas pelas milícias e grupos de traficantes sem intervenções militares que aprofundam ainda mais a segregação? Como resgatar a decisiva participação popular na organização social e política de respostas de proteção e superação da desigualdade, base de todo este cenário? São desafios mais intensos.
IHU On-Line – O que essa execução também demonstra sobre a atuação da polícia e das milícias no Rio de Janeiro e sobre o caos em torno da segurança pública?
Alana Moraes – Primeiro que não existe um "caos". A segurança pública do Rio de Janeiro é uma escolha política. É uma estratégia de governo produzir a crise; eu não tenho dúvida disso. Eles produzem a "crise", o "caos", produzem o medo generalizado e depois apresentam a solução mágica: a militarização e mais extermínio de pobres e negros.
Não podemos deixar que pacifiquem a morte de Marielle. Ela não pedia "paz" simplesmente, ela estava denunciando que os inimigos estão usando uniformes do Estado. As balas que mataram Marielle são balas do Estado, da Polícia Federal. Todo mundo sabe que o crime organizado no Rio e em qualquer outro lugar do Brasil só opera em aliança com a polícia, com os poderosos. Vejam a entrevista do traficante Nem da Rocinha há poucos dias atrás no El País. As fronteiras entre o poder legal e o poder ilegal estão cada vez mais confundidas. O Estado vai ter que provar que não teve relação com a execução de Marielle. O governo Temer é tão mafioso quanto as milícias e os dois precisam da força para se sustentar. A intervenção federal precisa prestar contas.
Não nos interessa agora uma comoção que esvazie a luta contra a militarização, contra a polícia e a intervenção militar, a luta que Marielle fazia. Ela estudou a política de "pacificação" nas favelas cariocas, mostrou que não há paz possível com força militar, com mais extermínio. Não podemos sair das ruas e nem acreditar em uma paz de farda. É preciso continuar denunciando a intervenção militar.
José Cláudio Alves – O novo patamar mostra uma penetração e fortalecimento da rede do crime organizado por dentro do Estado. Não vão ceder nenhum milímetro. Dão um recado de que eliminarão qualquer um que se contraponha a eles. Identificam os alvos mais frágeis, mas confrontam quem também está de posse de formas de poder que se contrapõem a eles de maneira mais organizada, como o parlamentar ou demais mandatários. Enfim, parece que de uma hora para outra eles emergiram, mas eu já vinha apontando isto há muito tempo. Criamos o monstro já bem de muito e agora não sabemos o que fazer com ele. O mais duro é o crescimento dos que apoiam o monstro, de forma explícita e escancarada. Sim, vivemos um período de extravasamento de ódios, no qual até mesmo um assassinato pode ser defendido como solução.
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Marielle e os dois pilares do poder e do capitalismo: o patriarcado e o aparato do Estado penal racista. Entrevista especial com Alana Moraes e José Cláudio Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU