O Mistério Pascal segundo Bonhoeffer: Participar corajosamente do sofrimento de Deus na vida mundana e servir em amor por graça. Entrevista especial com Wilhelm Sell

"O poder da ação cristã está no amor que serve e se sacrifica, pois é assim que Deus se movimenta em direção à humanidade", afirma o teólogo

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 10 Abril 2023

"A pessoa que vive a fé cristã com seriedade e consciência se movimenta em direção a todas as pessoas, também àquelas que creem diferente ou mesmo não creem", diz o teólogo Wilhelm Sell, ao refletir sobre o sentido existencial do Mistério Pascal e suas implicações na vida daqueles que professam a crença na morte e ressurreição de Jesus Cristo. O "melhor jeito de expressar" esta fé, pontua, "é servir em amor por graça, buscando dar sabor, ser luz e sendo a presença de Cristo na experiência de vida da outra pessoa". Para isso ser possível, esclarece, "não necessito sacrificar minha própria crença, mas a afirmar com toda a força do amor que serve pela graça e não exerce o poder e a tentativa de dominação".

Segundo ele, o que faz a pessoa ser cristã é, portanto, "a participação corajosa do sofrimento de Deus na vida mundana a partir e com vistas à nova vida neste Reino, ou seja, da vida em perspectiva escatológica, na tensão do 'já agora e ainda não'". Nesse sentido, acrescenta, "a mensagem que brota da Páscoa continua sendo muito forte diante de um mundo onde as pessoas são cada vez menos capazes de renunciar ao mínimo de conforto ou ganho pessoal em favor de um bem comum e em favor da promoção da vida".

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Sell reflete sobre o ser humano, sua relação com o próximo e com Deus à luz da teologia de Bonhoeffer, tema de sua tese doutoral, intitulada "Ser humano, ser para a outra pessoa: o significado da antropologia de Dietrich Bonhoeffer para a sua ética", defendida em 2019, na Faculdades EST, em São Leopoldo. "Para Bonhoeffer, a encarnação de Deus confirmaria que o ser humano é ser-em-relação-à. E esse é o profundo significado da encarnação. Deus se fez humano para que nos tornássemos novamente humanos, redimindo, restaurando e confirmando nossa humanidade, e impulsionando as relações genuínas", explica.

 


Wilhelm Sell (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Wilhelm Sell é graduado em Teologia pela Faculdade Luterana de Teologia, mestre e doutor em Teologia Fundamental-Sistemática pela Faculdades EST. É pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Atualmente, reside na Alemanha para estudos de pós-doutorado no Departamento de Teologia Sistemática da Faculdade de Teologia da Universidade Humboldt, de Berlin.

Confira a entrevista.

IHU – Como Bonhoeffer interpreta o Mistério Pascal? Que sentido ele pode dar à nossa existência nos de hoje? Como comunicá-lo aos não crentes?

Wilhelm Sell – O Ministério Pascal é a morte e ressurreição de Jesus Cristo, o sofrimento e a inauguração do Reino de Deus. O que isso significa para Bonhoeffer? Para ele, significa que não é o ato da religião que faz a pessoa ser cristã, mas a participação corajosa do sofrimento de Deus na vida mundana a partir e com vistas à nova vida neste Reino, ou seja, da vida em perspectiva escatológica, na tensão do “já agora e ainda não”. Convenhamos que a mensagem que brota da Páscoa continua sendo muito forte diante de um mundo onde as pessoas são cada vez menos capazes de renunciar ao mínimo de conforto ou ganho pessoal em favor de um bem comum e em favor da promoção da vida.

Nas “Cartas da Prisão”, publicada pela Editora Sinodal, Bonhoeffer diz numa carta endereçada aos seus pais que “a coisa libertadora sobre a Sexta-feira Santa e a Páscoa é que os pensamentos vão muito além do destino pessoal para o significado último de toda a vida, sofrimento e eventos em geral e que se apreende grande esperança.” Ou seja – e agora digo numa linguagem figurada muito simples –, há um sentido mais profundo para a vida do que estar com o nariz voltado para o próprio umbigo.

 

Para Bonhoeffer, a encarnação, morte e ressurreição, enquanto intenso movimento de Deus na história, confirma a natureza do que é ser humano. Jesus Cristo é aquele que mostrou que ele “só” está aí para o outro. A palavrinha “só” representa um exagero proposital usado por Bonhoeffer. Em outro momento, quando no Terceiro Reich perseguia os considerados “fora” do padrão ariano, Bonhoeffer afirma que a igreja “só” é igreja quando o for para os de “fora”. Ainda diante da situação de ferrenha perseguição aos judeus, ele afirma que “só” entoa o canto gregoriano quem clama pelos judeus. Para ele, a ideia de um Deus que sofre sempre foi um dos princípios mais convincentes da fé cristã. Isso lhe dava paz e tranquilidade e um coração forte e corajoso para ser em Cristo e servir.

 

 

Em outra carta da prisão, essa endereçada ao seu cunhado Eberhard Bethge (autor da mais completa biografia de Bonhoeffer, que, aliás, infelizmente ainda não temos em português), Bonhoeffer afirma que Deus não é e nem pode ser reservado nas questões marginais da vida, ou seja, para aquelas que a pessoa não dá conta, não tem forças e/ou capacidade para mudar, mas para o centro da vida, ou seja, para quem eu sou enquanto pessoa. Portanto, a Páscoa diz respeito ao centro da vida, da nossa existência, e, a partir dali, quer provocar e se desdobrar numa nova realidade sociológica (a Igreja) que é intencionalmente parte do movimento de Deus no mundo. É como uma pedra jogada no centro de um grande lago, formando pequenas ondas que irradiam até as margens.

Por isso, cruz e ressurreição não podem ser reduzidas a uma mensagem religiosa de vida pós-morte, com promessas que estão de acordo com as obras praticadas. Páscoa é o sim contundente de Deus que impacta a realidade e faz brotar nova vida na realidade penúltima tendo em vista a realidade última. Esse é seu sentido em todos os tempos. E creio que a melhor maneira da igreja comunicar essa mensagem para não crentes é ter coragem encarná-la, anunciá-la e servir com amor pela graça.

IHU – Para Bonhoeffer, "Jesus Cristo é chave hermenêutica de toda a realidade", como você cita na tese de doutorado. Como falar e expressar esta fé para os não crentes, em um contexto de multiculturalismo e diversidade religiosa?

Wilhelm Sell – Para ele, afirmar Jesus Cristo como chave hermenêutica de toda realidade é, obviamente, uma afirmação de fé sobre como ele constrói a sua teologia. Sua teologia é cristocêntrica. Jesus Cristo é Deus que vem ao encontro e se encarna na realidade como servo sofredor. Enquanto o ser humano tenta superar sua própria condição, Deus se torna humano para que toda a humanidade se torne realmente humana. Enquanto as pessoas se distinguem umas das outras por parâmetros como piedosos e ímpios / bons e maus, na encarnação Deus assume a identidade corpórea humana, para que os seres humanos se tornem reais e vivam em liberdade. Deus assume assim, o que é seu: a humanidade e toda sua criação.

No entanto, essa não é uma confissão de fé que impede e/ou limita o diálogo respeitoso com quem tem outra confissão de fé. A religião é um dos elementos que faz parte da liberdade humana. O ser humano busca se re-ligar àquilo que se sente pertencente, mas está alienado. Nessa direção, o sistema religioso se torna um desdobramento da realidade pós-lapsária na qual toda a humanidade está inserida. A fé cristã vai entender que na sua experiência religiosa surge a revelação de um Deus que se movimenta em direção da criação e a redime. O foco de sua ação e toda boa obra passa a ser o próximo, aquele que, como disse Lutero, precisa delas. Por isso, o poder da ação cristã está no amor que serve e se sacrifica, pois é assim que Deus se movimenta em direção da humanidade.

 

 

Da mesma forma, a pessoa que vive a fé cristã com seriedade e consciência se movimenta em direção a todas as pessoas, também àquelas que creem diferente ou mesmo não creem. Sendo assim, o melhor jeito de expressar a fé cristã num mundo multicultural e diversificado quanto à religiosidade é servir em amor por graça, buscando dar sabor, ser luz e sendo a presença de Cristo na experiência de vida da outra pessoa. Para isso ser possível não necessito sacrificar minha própria crença, mas a afirmar com toda a força do amor que serve pela graça e não exerce o poder e a tentativa de dominação.

  

 

IHU – O que é o homem para Dietrich Bonhoeffer? Quais os traços fundamentais da antropologia desenvolvida por ele?

Wilhelm Sell – De início é importante saber que Bonhoeffer no decorrer de sua trajetória vai conceituando o ser humano numa perspectiva teológica em resposta ao seu contexto. Ele busca demonstrar a relevância da teologia. Essa sua intencionalidade surgiu desde o momento em que decidiu estudar teologia. Pertencendo a uma família que fazia parte de um círculo social onde debates de ordem política, social, filosófica e comportamental eram constantes, ele buscava demonstrar a relevância da teologia para dentro dos temas debatidos. Isso fez com que em todos os temas ele permanecesse numa postura dialogal e respeitosa, valorizando, ao mesmo tempo, o aspecto revelatório das Escrituras. Sendo assim, ao falar sobre o ser humano, é necessário ter em mente que sua antropologia teológica está em diálogo direto e indireto com outras áreas do conhecimento.

Há algumas obras nas quais ele aborda com mais ênfase o ser humano. As mais importantes são: Comunhão dos Santos (sua tese de Doutorado), Agir e ser (tese de Habilitação como professor universitário), sua palestra inaugural como professor intitulada A Questão do Homem na Filosofia e Teologia Contemporâneas, Criação e Queda (aulas sobre Gênesis 1-4 na Universidade de Berlim), e Ética.

Dito isso, respondo resumidamente à pergunta feita em três partes complementares:

1) Em primeiro lugar, para Bonhoeffer, o ser humano é criatura de Deus, feito à sua imagem e semelhança. A principal marca de seu ser é que Deus cria o ser humano como ser-em-relação-à. Ainda no princípio ele foi lembrado de sua situação de criatura, com o limite que havia sido estabelecido, marcando assim a distinção entre Criador e criatura. O pecado surge quando homem e mulher vão para além da Palavra de Deus. No princípio não há uma inclinação ao mal, pois tudo que a humanidade sabe é partilhado pela graça de Deus. O pecado surge quando o ser humano buscou servir independente dessa graça, tornando o caminho de um conhecimento disponível que marcava a sua total liberdade de ser, também a de ser como Deus e de quebrar as relações com o criador, consigo e com a outra pessoa. Para Bonhoeffer, a quebra das relações é a consequência mais desastrosa que marca a realidade do pecado e tem como desdobramento a contradição existencial marcada por tob e ra, que, mais do que bem e mal, significa que a existência é marcada por prazer e dor, alegria e pesar. A escolha humana lhe somou em prejuízo.

2) Em segundo lugar, para Bonhoeffer, o relato das Escrituras sobre a criação e a queda do ser humano não tem nenhuma pretensão científica no sentido de afirmação absoluta. Assim como elas, o ser humano se encontra no meio, entre o princípio e o fim. Para ele, mesmo as ordens da criação – conceito que no seu tempo estava sendo distorcido por aqueles que buscavam teologicamente justificar a autonomia política do Terceiro Reich com status revelatório –, tem uma conotação de algo fixo, assim não podem ser recebidos ou entendidos no meio sem o fim (Jesus Cristo).

Portanto, as Escrituras pertencem ao meio, ou seja, surgem na realidade caída, e estão marcadas por essa realidade. Isto é, a natureza das Escrituras é histórica, mas, ao mesmo tempo, as palavras e conteúdos humanos foram apropriados e usados por Deus como reveladores à sua igreja. Por isso, a leitura das Escrituras sobre quem é o ser humano se dá por meio daquele que estava no princípio e é o fim, e o qual se fez meio na encarnação, Jesus Cristo. Ele é a Palavra (fim) no meio. Sem ele, o que sobra das Escrituras são letras que formam um entre tantos relatos criados a partir de percepções religiosas sobre diversos temas, também sobre quem é o ser humano.

3) Em terceiro lugar, para Bonhoeffer, Jesus Cristo é o Deus que se fez humano para que nele, o ser humano marcado e distorcido pelo pecado, se tornasse verdadeiramente humano. Na encarnação Deus se revelou como humano que está aí para a outra pessoa. Se na criação Deus faz com que o ser humano seja ser-em-relação-à, na encarnação, esse ser, ou “modo humano de ser”, é confirmado. Cristo é, por excelência, ser para o outro e, assim, para a humanidade. Por isso, a analogia do ser humano para com Deus não é analogia entis, mas sim analogia relationis. Nele as relações pela graça são reestabelecidas ao ponto de que aquilo que encontro no outro e percebo ausente em mim não seja motivo de ódio, mas de alegria. A unidade de diferentes é celebrada pelo mútuo servir, e o único poder celebrado é o amor que serve.

 

 

IHU – Com o desenvolvimento das ciências e do conhecimento tecnológico e científico, muitas são as tentativas de refletir e reelaborar a antropologia, buscando novas formas de compreender o que é o ser humano. Como você vê essas tentativas na contemporaneidade? Elas fragmentam ainda mais nossa compreensão do que somos?

Wilhelm Sell – A pergunta pelo ser humano é antiga. Já o salmista perguntava: quem é o ser humano para que dele te lembres? (Salmo 8.4). Disso já percebemos que a necessidade do ser humano em saber mais acerca de si mesmo é constante. Somos seres complexos e contraditórios. Ao longo dos tempos, respostas têm sido dispostas com o objetivo de aquietar o “espírito” humano em sua angústia do não saber plenamente sobre si.

Para Bonhoeffer, o ato de perguntar é expressão de um pensamento sem começo. Pergunta-se quando aquilo que se sente óbvio já não se sabe pela perda do princípio. Pensa-se de forma circular, por causa do pertencimento à sua própria finitude. Sem princípio e fim, o ser humano existe em círculo, não escapa de chegar no mesmo lugar, e viciosamente pergunta, quer sentir e ter, revelando assim sua perda existencial. E o problema se intensifica quando o pensamento assume esse círculo vicioso como infinito, como um próprio princípio, enveredando-se cada vez mais neste círculo.

Em seu livro Criação e queda, publicado em português em 2020 pela Editora Sinodal, ele explica: “Na pergunta pelo princípio se esfacela todo o pensamento. Pelo fato de querer discernir o princípio e, no entanto, não poder fazê-lo, todo pensamento é um esfacelamento de si mesmo, um naufragar em si mesmo, um despedaçar-se, um desfazer-se diante do princípio, que deseja alcançar, mas não consegue se aproximar”. Ou seja, não temos acesso ao princípio e conjecturamos acerca de nossa origem e nossa vocação enquanto pessoas. Por isso, a princípio, eu creio que todas as propostas de entendimento acerca do ser humano são tentativas válidas na busca pela autocompreensão.

 

 

O filósofo Richard Rorty, por exemplo, faz uma afirmação no mínimo curiosa nessa direção ao dizer: “quanto mais tipos de seres humanos você tiver considerado, mais humano você será” (RORTY, Richard; GHIRALDELLI JR., Paulo. Ensaios pragmatistas: sobre subjetivismo e verdade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006, p. 83). Para ele, melhor seria promover um encontro de saberes com o objetivo de frutificar um mundo mais justo e solidário. Sua abordagem pragmatista busca escapar de um fundacionismo que em muitos momentos pode se tornar perigoso, principalmente quando busca exercer o poder de incluir ou excluir pessoas de dignidade e valor. Essa foi também a crítica de Bonhoeffer aos teólogos e à liderança da igreja de seu tempo quando buscaram justificar teologicamente o Terceiro Reich de Adolf Hitler. A igreja havia se desviado de seu caminho no servir para exercer poder. Por isso, me inspiro em Bonhoeffer ao pensar que dentro da arena dos saberes, a teologia cristã, com sua convicção baseada na revelação de Jesus Cristo, tem a tarefa de buscar servir com aquilo que lhe é próprio com o objetivo de contribuir para uma percepção antropológica que valorize a vida de todas as pessoas, defenda a igualdade, busque a justiça social e a paz.

IHU – Na sua tese de doutorado, você diz que "somente é possível entender" a ética de Bonhoeffer a partir "de seu entendimento acerca do ser humano em sua condição real e sua relação com Deus". Pode explicar essa ideia? O que a encarnação de Cristo representa e significa para o ser humano, segundo o teólogo?

Wilhelm Sell – Uma das hipóteses que defendi em minha tese foi a de que a ética de Bonhoeffer é construída a partir de seu entendimento acerca do ser humano. Ou seja, sua ética está estreitamente ligada à sua compreensão antropológica e assim deve ser entendida. Eu explico:

Bonhoeffer entende o ser humano como ser que foi criado por Deus e sua vocação existencial está voltada para um relacionamento marcado pela graça consigo, com o outro (também a criação) e, não por último, com o próprio Deus. O pecado se desdobrou na quebra dessas relações e na sua contradição existencial. Para exemplificar, Bonhoeffer diz que na história de Jesus Cristo com os fariseus, se encontra a mais clara diferença entre o ser humano em contradição e o ser humano Jesus Cristo.

O fariseu não seria somente figura restrita a uma época, mas sim o modelo de ser humano que em desunião só dá importância ao conhecimento do bem e do mal, sendo que seu suposto bem lhe dá o direito de exercer poder sobre o outro. Cito Bonhoeffer: “O fariseu é o ser humano sumamente digno de admiração, que coloca toda sua vida sob o conhecimento do bem e do mal, que é um juiz rigoroso tanto de si mesmo como do seu próximo” (BONHOEFFER, Dietrich. Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2009, p. 21). Ou seja, o fariseu é o moralista que busca para si a centralidade da decisão ética e quer determinar quem tem mais e menos valor e é mais e menos digno, por meio do que hoje se chamaria de meritocracia. O ser humano fora de Cristo sabe o que é bem e o que é mal; mas como ele não é a origem e adquire esse saber unicamente na separação do princípio, o bem e mal que conhece não são o bem e mal de Deus, mas bem e mal contra Deus, pois é bem e mal a favor de uns e no desprezo de outros (Mateus 25.31-46).

 

 

Por outro lado, para Bonhoeffer, a encarnação de Deus confirmaria que o ser humano é ser-em-relação-à. E esse é o profundo significado da encarnação. Deus se fez humano para que nos tornássemos novamente humanos, redimindo, restaurando e confirmando nossa humanidade, e impulsionando as relações genuínas. Por isso, ele também critica toda e qualquer fuga do mundo. Na encarnação Deus confirma a realidade terrena do ser humano e confirma sua vocação primeira, a de estar-aí-para-o-outro, no amor que serve por e pela graça. Fica fácil entender por qual razão Bonhoeffer afirma que a ética cristã é a superação de toda ética. Esta não está presa a qualquer simples distinção de bem e mal, mas é sua própria superação enquanto pessoa que está em, com e sob Jesus Cristo.

 

 

IHU – Como a alteridade é possível, segundo Bonhoeffer? Qual é o critério que a fundamenta e determina?

Wilhelm Sell – Para Bonhoeffer, ser criado à imagem e semelhança do próprio Deus significa que o ser humano reflete o Criador em sua liberdade. A liberdade é o que fundamenta e determina o relacionamento com a alteridade. Essa liberdade, no entanto, não é algo que o ser humano possua para si, mas algo que dispõe para os outros. Por isso, a liberdade não é uma possessão, algo objetivo e alheio, mas sempre está em relação a algo ou alguém. Antropologicamente falando, ser livre significa "ser livre para o outro”. E assim o é porque Deus em sua liberdade se ligou à sua criação, criando a liberdade, fazendo com que o ser humano se distinguisse das demais criaturas pelo fato de o próprio Deus se encontrar nele, ou seja, sua imagem e semelhança. Essa liberdade humana enquanto status de ser significa então que se é "livre diante dos outros", "com os outros”, e "dependente dos outros" seres humanos. Portanto, o exercício do poder, de manipulação e de subjugação do outro, por questões quaisquer que sejam, elimina a liberdade. E isso se desdobra no fratricídio de Caim com sua fatídica pergunta: “Acaso sou eu o tutor do meu irmão?”. Ou seja, a história de Caim e Abel é a história da pessoa que não suporta a alteridade e suas consequências.

Outro ponto interessante que essa pergunta me evoca é que, para Bonhoeffer, essa liberdade está fundamentada na materialidade humana. Ao ler o relato da criação, ele afirma que o ser humano é proveniente de um punhado de terra, vinculação essa que faz parte de sua essência. A terra é a ventre-mãe no qual o ser humano foi gerado. Isso significa que sua materialidade não é sua prisão e nem uma roupa, mas seu corpo é ele mesmo, o humano de Deus atestado como “muito bom” (Gn. 1.31). Por isso, o ser humano não "tem" um corpo, nem "tem" uma alma, mas ele é corpo-alma, numa unidade pensada inseparável. Assim Deus o selou, pois, criado da terra com Suas mãos e, soprando em suas narinas, o desperta para a vida. Terra e vida se unem de tal maneira que uma sem a outra são impossíveis. E, ao despertar para a vida, o ser humano já não está mais nas Suas mãos, mas vive na liberdade por Ele dada.

Enquanto Deus cria outras vidas na sua criação, evocando sua palavra, o ser humano, Ele forma com as próprias mãos e dá de Sua vida e de Seu espírito, fazendo com que viver como ser humano seja viver como corpo em Espírito. Este não lhe pertence, mas o mantém em constante vida. Por isso, quando o corpo original é corrompido e as relações são quebradas e deturpadas, e a liberdade violada, Deus entra na história como novo corpo em Jesus Cristo. Por sua vez, quando este é destruído, entra nas formas do sacramento do corpo e sangue, enquanto realidade presente da promessa à humanidade caída.

 

 

Jesus Cristo, encarnado e presente na Eucaristia, demonstra que o ser humano é salvo como corpo. Isso significa que o ser humano está ligado pela sua corporeidade a terra e ao outro, ou seja, à alteridade. Ele vive em liberdade para o outro e, ao mesmo tempo, dependente dele. Portanto, respondendo à pergunta de forma direta, a liberdade é o critério, e a materialidade (enquanto boa criação de Deus) é o fundamento para se falar de alteridade a partir de Bonhoeffer.

IHU – Quais são as influências filosóficas e teológicas presentes na teologia desenvolvida por Bonhoeffer?

Wilhelm Sell – Bonhoeffer inicia seus estudos acadêmicos com disciplinas na área da filosofia. Ele sempre se mostrou muito interessado em entender a história do pensamento filosófico e teológico. Por isso, ele se ocupou desde cedo em entender os principais filósofos, desde Platão e Aristóteles, passando por Kant e Hegel e chegando em Feuerbach e Nietzsche, para citar alguns. Sem entender esse diálogo constante com a filosofia é impossível compreender a teologia de Bonhoeffer e sua profundidade.

Dou como exemplo duas obras: Em Comunhão dos Santos, sua tese de doutorado, ele propõe uma investigação dogmática sobre a sociologia da igreja, onde há uma reflexão crítica sobre a filosofia idealista, especialmente de Kant e Hegel quando discute o tema “pessoa”. A outra abordagem filosófica mais expressiva de Bonhoeffer está em sua tese de habilitação Agir e Ser: filosofia transcendental e a ontologia na teologia sistemática. Neste trabalho, seu principal objetivo foi o de demonstrar a relevância da filosofia para a teologia sistemática. Mas além disso, os demais escritos de Bonhoeffer tem a influência direta dessa sua fase acadêmica, por assim dizer. Mesmo os escritos no campo da espiritualidade e vida comunitária os pressupostos e os seus fundamentos teóricos filosóficos e teológicos podem ser facilmente percebidos.

Já na parte da teologia, com toda certeza, a maior influência teológica de Bonhoeffer foi o reformador Martim Lutero – o reformador é citado 870 vezes por ele em textos que temos acesso. Bonhoeffer também foi aluno de Karl Holl, líder no “renascimento” do estudo da teologia de Lutero na década de 1920. Outra influência teológica de Bonhoeffer foi o teólogo reformado Karl Barth, com o qual manteve um diálogo constante durante toda a sua trajetória de vida. Em seus escritos, ele foi citado em torno de 300 vezes, também algumas vezes de maneira crítica. Há trabalhos bem interessantes que traçam ainda o diálogo de Bonhoeffer com outros teólogos e filósofos. Na minha tese, busquei trabalhar um pouco com as principais influências tentando demonstrar em torno de quais temas ele mais se aproximou para definir concordâncias ou críticas.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Wilhelm Sell – Gostaria de deixar o poema “Cristãos e pagãos”* de Bonhoeffer como inspiração e reflexão para esse tempo de Páscoa. Compartilho em alemão e em português:

1. Pessoas buscam a Deus na sua necessidade,
imploram auxílio, pedem felicidade e pão.
libertação de doença, culpa e morte.
Assim fazem todas, todas, cristãs e pagãs.

2. Pessoas buscam a Deus na Sua necessidade,
acham-no pobre, insultado, sem abrigo e sem pão.
Veem-no envolto em pecado, fraqueza e morte.
Cristãos ficam com Deus na Sua paixão.

3. Deus busca todas as pessoas na sua necessidade,
satisfaz o corpo e a alma com o Seu pão,
sofre por cristãos e pagãos a morte na cruz
e a ambos concede perdão.

 ***

1. Menschen gehen zu Gott in ihrer Not,
flehen um Hilfe, bitten um Glück und Brot,
um Errettung aus Krankheit, Schuld und Tod.
So tun sie alle, alle, Christen und Heiden.

2. Menschen gehen zu Gott in Seiner Not,
finden ihn arm, geschmäht, ohne Obdach und Brot,
sehen ihn verschlungen von Sünde, Schwachheit und Tod.
Christen stehen bei Gott in Seinen Leiden.

3. Gott geht zu allen Menschen in ihrer Not,
sättigt den Leib und die Seele mit Seinem Brot,
stirbt für Christen und Heiden den Kreuzestod,
und vergibt ihnen beiden.

* BONHOEFFER, Drietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2015. p. 469-470.

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