Crer em Deus. A fé cristã num mundo pós-teísta

Movimentos que professam uma "nova espiritualidade" "não dão importância nem acham necessário precisar o que dizemos ou o que eu digo quando digo 'Deus existe'", constata o teólogo espanhol

Foto: Moisés Becerra | Cathopic

Por: Patricia Fachin | 12 Abril 2022

 

"Uma coisa é descrever a realidade, que é o que fazem os científicos positivos: descrevem-na de maneira lógico-matemática, [com] teorias e ideias baseadas na comprovação, com referências à realidade. Outra coisa é, a partir das evidências que vão sendo alcançadas, se perguntar por que isso é assim como é e por que existem em conjunto. Trata-se de explicar a partir das evidências. Nós, crentes e não crentes, não nos movemos no campo das investigações científicas-positivas, mas no campo das explicações." A observação do teólogo espanhol Jesús Martínez Gordo é fundamental para responder à questão proposta por ele - O que dizemos quando dizemos 'Deus existe'?" - na conferência "Crer em Deus. A fé cristã num mundo pós-teísta", ministrada virtualmente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 29-03-2022, na 19ª edição da Programação de Páscoa IHU 2022.

 

 

Responder a essa questão e dar razões, isto é, justificativas racionais e argumentativas para a nossa resposta, é, segundo o doutor em Teologia Fundamental, indispensável para esclarecer não somente os diferente significados acerca de "Deus", mas para dar razões da fé cristã em um mundo pós-teísta.

 

Ao respondê-la de modo "pessoal", não como um sociólogo que busca respondê-la a partir de dados obtidos em entrevistas, mas como alguém que crê, o professor da Faculdade de Teologia de Vitoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao disse que sua posição "teísta jesus-cristiano" é racional, diferentemente do que argumentou o filósofo italiano Paolo Flores D'Arcais em debate com Joseph Ratzinger no início dos anos 2000.

 

 

Dar razões também é primordial diante do novo fenômeno apresentado pelo teólogo: ao menos nos países da Europa Ocidental, as pessoas não se posicionam como teístas ou deístas e tampouco são ateias ou agnósticas, mas indiferentes.

 

Pós-teísmo

 

Na conferência, Jesús Martínez Gordo disse que o mundo pós-teísta é ateu, mas coexiste com a busca de espiritualidades que são chamadas de "novas espiritualidades" e com a aparição de movimentos crentes "alternativos". Esse novos movimentos, pontua, "não dão importância nem acham necessário precisar o que dizemos ou o que eu digo quando digo 'Deus existe'".

 

Teísmo

 

Diferentemente das posições que emergem no cenário pós-teísta, a posição teísta crê em um Deus pessoal que não pode ser compreendido apenas como portador de atributos distintos dos dos homens, mas é, antes de tudo, um Deus que vem ao encontro da humanidade, manifesto na encarnação de Jesus Cristo. Assumir esta posição, isto é, ser cristão, esclarece, "não tem a ver com coerção, mas com uma situação que apresenta uma convicção a qual adiro e na qual me mantenho: no cristianismo percebo e experimento a relação com uma 'incomparável' pessoa, Jesus de Nazaré, na qual o Infinito, o Altíssimo, se entrega como amor".

 

 

Apesar de ter nascido em uma cultura cristã e católica, Gordo frisa a possibilidade de ser teísta mesmo nascendo em culturas distintas da cristã. "Uma objeção típica consiste em dizer que se eu tivesse nascido na China, teria havido pouca probabilidade de ter me tornado cristão e católico. É incontestável essa constatação. Eu sou assim por nascimento e herança: nascido e crescido na fé cristã de tradição católica. Mas o ponto fundamental é dar razão de aderir à fé cristã enquanto se sente parte da herança cultural cristã", menciona.

 

 

Segundo ele, dar razões da posição a qual se adere, especialmente em um contexto em que essa crença é permanentemente confrontada, no plano do estudo, com outras tradições, é fundamental. "Tenho que dar razão de ser cristão não pelo fato de ter nascido aqui [na Europa] ou ser ou não budista ou hinduísta por nascido em outro lugar. Tenho que dar razão do fato de ter assumido essa posição como uma decisão racional."

 

 

 

Citando o filósofo francês Paul Ricœur, o teólogo resume sua própria posição do seguinte modo: "Sou um crente católico, transformado em um deísta, racionalmente consistente, e em um teísta jesus-cristiano. Isto é, tenho a Jesus como personagem incomparável. E sou este último graças a 'uma eleição continuada' que percebo como relativa em diálogo com outras religiões e crenças, mas que vivo como incomparável e, nesse sentido, absoluta".

 

Deísta

 

A posição deísta, segundo a qual a razão nos assegura a existência de Deus, foi defendida pelo filósofo Baruch Spinoza, para quem "um homem livre é aquele que vive só segundo ditames da razão". Essa visão, sublinha, "não tem nada a ver com a fé, as igrejas ou confissões religiosas, mas com a máxima de Platão: devemos seguir a argumentação até onde ela nos leva e buscar argumentos válidos que nos conduzam a argumentos verdadeiros. Seguindo dessa maneira, desembocamos no reconhecimento do que dizemos quando dizemos 'Deus'. Isto é, que é um mistério, uma unidade de regularidade e novidade, de eternidade e tempo, de história e eternidade, de vida e de morte".

 

 

De acordo com o teólogo, Spinoza foi um dos primeiros filósofos modernos a "proporcionar uma cosmovisão de mundo deísta, ou seja, de que existe um Deus racionalmente consistente que está um pouco além em relação ao Deus bíblico. Spinoza sustentou que ao ser Deus o autor de todo o conhecimento, não só o era de toda a chamada revelação sobrenatural (reconhecida nas Escrituras), mas também do entendimento natural, ou seja, havia uma revelação natural. Isso porque entendeu que Deus estava em todas as partes e tal presença era manifesta em todas as partes". A compreensão deísta tal como formulada pelo filósofo na modernidade, assinala, "marcou o pensamento moderno e ilustrado e ainda está marcando nossos dias, inclusive no campo do povo em que nós, crentes teístas, temos que nos mover".

 

O ponto de conflito entre deístas e teístas, esclarece, é que enquanto os teístas creem na revelação manifesta através das Escrituras, os deístas, tal como na visão formulada por Spinoza, sobrepõem a razão à revelação. "Spinoza manifestou a impossibilidade de contradição entre ambos tipos de revelação, a sobrenatural e a natural, e sustentou a tese de que em caso de conflito entre ambos tipos de conhecimento - o que conhecemos por revelação sobrenatural através das Escrituras ou o que podemos conhecer por revelação natural, através do conhecimento racional e da liberdade -, têm que prevalecer os conhecimentos alcançados através da revelação natural."

 

 

Nesse sentido, continua, "ele puxou as bases para um novo modo de pensar o que dizemos quando dizemos 'Deus' ou 'o mistério de Deus', dentro dos limites da racionalidade humana e nos tirou novamente o terreno de que temos que dar razão da existência de Deus".

 

Segundo Jesús Martínez Gordo, é comum atribuir a Spinoza a defesa do ateísmo, mas esse entendimento é equivocado. "Às vezes se diz que Spinoza é o pai do ateísmo; não, ele é o pai do deísmo porque propôs, se adiantando a Kant, um novo imaginário de Deus. Quando fala de Deus, Spinoza diz que existe um ser supremo - evidentemente ele não é um teísta, então não se trata de um deus pessoal - ao qual todos devem obedecer para salvar-se e ao qual devem adorar mediante a prática da caridade e da justiça. Essa primeira tese (fundada, não se pode esquecer, na presença de Deus em todas as partes, mas também no testemunho escriturístico) é a chave do cofre do que se qualificará como o 'credo mínimo': o 'ser supremo, sumamente justo e misericordioso', além de 'único', se recria na prática da 'justiça e da caridade' ou do 'amor ao próximo'. Tal é o culto e a obediência que lhe agradam. Esse é o deísmo de Spinoza, tal como ele entende que é consistente".

 

Mistério

 

Apesar de nos dias de hoje o termo "mistério" ser utilizado para aludir à existência de Deus, ao sagrado, à complexidade da própria realidade em suas múltiplas dimensões e a fenômenos inexplicáveis ao entendimento humano, esse conceito enquanto tal, informa Gordo, não era apreciado por Spinoza. "Isso porque naquele tempo 'mistério' era [sinônimo de] refúgio da irracionalidade, preguiça intelectual, e fundamentalismos. Não era um conceito que permitia reconhecer a existência, como racionalmente consistente, de uma surpreendente conjunção de novidade e regularidade. Vou explicar: Spinoza anula, critica e invalida o conceito de mistério porque o percebe como um conceito no qual se refugiam os irracionais, os que não querem seguir investigando e os fundamentalistas. Pessoalmente, entendo que estamos recuperando o conceito de mistério entendido como unidade, como conjunção, como articulação de novidade e de regularidade. Isso é algo que nos é perceptível em todas as investigações que estão sendo feitas no mundo das cosmologia, da protobiologia e da antropologia".

 

 

Cosmovisão ateia e antiteísta

 

A cosmovisão alternativa às crentes, seja deísta ou teísta, sustentada por ateus, agnósticos, antiteístas ou pós-teístas, menciona, é o materialismo, fundamentado no determinismo físico e necessário ou no fatalismo e no casualismo. A visão materialista de cunho determinista, explica, "sustenta que o mundo, a vida e as pessoas são o que é possível explicar a partir das provas científico-empíricas, sem mais considerações. Provavelmente porque muitos materialistas entendem ou creem que a matéria - como finitude - é aproblemática, absoluta e satisfatória. Ou seja, para eles, não faz sentido se perguntar sobre questões que vão além do que não possa ser comprovado de maneira material ou de maneira verificacionista e absoluta porque só existe a matéria e nada mais do que a matéria. É igualmente uma posição satisfatória porque tudo que podemos conseguir, desfrutar e alcançar, obteremos pela matéria e nesta vida. E, portanto, não tem o menor sentido se perguntar sobre outras alternativas". A cosmovisão materialista fundamentada no princípio de causalidade, acrescenta, compreende o mundo como algo aleatório, fruto da causalidade. "Segundo essa visão, o mundo, a história, a vida e nós mesmos somos o resultado surpreendente do azar e da causalidade; e nada mais. Fazer outros tipos de perguntas, portanto, é perda de tempo".

 

 

 

De ateus a deístas

 

Na exposição, o teólogo insistiu que a posição deísta é mais racional do que a materialista. Segundo ele, se nos deixarmos conduzir pelo ensinamento de Platão, isto é, se deixarmo-nos levar pela razão com liberdade até onde ela nos leva, será possível chegar a essa conclusão, assim como o fizeram três ex-ateus contemporâneos, A. Flew, F. S. Collins e C. S. Lewis. "Eles entenderam que a viagem até a crença e ao deísmo em um mundo pós-teísta é fruto de deixar a razão em liberdade; é uma peregrinação da razão que, no caso deles, em um primeiro momento foi ateia porque era o politicamente correto. Mas quando deixamos a razão em liberdade, descobrimos que a explicação deísta ou teísta é a mais consistente do ponto de vista racional - deísta no caso do filósofo britânico A. Flew, ou teísta, no caso do geneticista estadunidense, F. S. Collins e do escritor C. S. Lewis".

 

 

 

 

 

Novos crentes - Antony Flew

 

O filósofo Antony Flew (1923-2010) considerado o pai do ateísmo científico-positivo e correspondente do antiteologismo durante o século XX, informa, se converteu ao deísmo e compreende Deus como sabedoria, logos e harmonia. "Eu o conheci na minha época de estudante universitário. Ele era, naquele tempo, considerado, junto com B. Russell e o Círculo de Viena, um dos pais da incredulidade, dos não-crentes. Ele sustentava que aplicando o princípio de verificação à linguagem teológica, se desconheciam os atos científicos-empíricos que avaliavam a firmeza do discurso teológico, em afirmações como, 'Deus nos ama como um pai' ou 'Deus tem um plano'".

 

 

Depois de ter aderido ao ateísmo de corte positivo-científico durante décadas, seis anos antes de sua morte, em 2004, relata, "ele surpreendeu os participantes de um simpósio na Universidade de Nova York ao defender que a explicação racionalmente mais consistente à luz não dos discursos filosóficos, mas a partir das provas e evidências empírico racionais que se estavam sendo obtidas no mundo cosmológico, biológico e lógico-formal, é ser deísta ao invés de não sê-lo. Ele disse naquela ocasião: 'deixo de ser um ateu e passo a ser um deísta'".

 

Essa mudança de posição, esclarece o teólogo, "não teve nada a ver com a fé ou com as igrejas porque ele não descobriu nenhuma fé e tampouco pertencia a uma confissão religiosa. Ele estava comprometido com a máxima de que deveria seguir a argumentação até onde ela nos leva. E 'a racionalidade me leva', disse Flew, 'a descobrir argumentos válidos que me conduzem a conclusões verdadeiras e essas me levam a descobrir o divino presente no cosmos'".

 

 

Novos crentes - F. S. Collins

 

O segundo crente apresentado por Gordo foi o geneticista estadunidense, diretor do Instituto Nacional Estadunidense de Investigação do Genoma Humano, F. S. Collins (1950). "Ateu até os 27 anos de idade, se converteu a um Deus pessoal e amoroso e interessado por nós. Trata-se de uma crença teísta, porque crê em um Deus pessoal, preocupado conosco, com o qual nos preocupamos e podemos manter uma relação, e não apenas em um Deus que é suma bondade, sabedoria e logos", afirma.

 

O agnosticismo ou ateísmo de Collins, disse, brotava de sua própria prática cotidiana, na qual tinha que tomar decisões a partir de dados e evidências. "Urgido pela necessidade de despejar a incomodidade que o provocava ser ateu ou agnóstico por comodidade e incapaz de apontar as provas que o sustavam, contatou representantes de uma igreja metodista que lhe facilitaram um exemplar de 'Mere Christianity', de C. S. Lewis. Ele leu o livro com avidez, se dando conta de que os argumentos contra a plausibilidade da fé em que havia se apoiado eram os próprios de uma criança".

 

 

Novos crentes - C. S. Lewis

 

C. S. Lewis passou pelas três fases do pensamento: foi ateu, deísta e, por fim, teísta. Segundo o teólogo, Lewis começou a abandonar o ateísmo quando "percebeu que era impossível separar a matéria das ideias, que as ideias permitem nomear, reconhecer e identificar as coisas, as pessoas e a realidade. Ele percebeu que não era possível a existência da matéria sem a existência das ideias. Matéria e ideia estão intimamente inter-relacionadas, de tal maneira que a ciência empírica não é independente de nossa observação e o pensamento, por sua vez, era tampouco puramente subjetivo, mas estava referido à realidade empírica. Diante disso, não havia outra alternativa que não assumir uma perspectiva integradora, caracterizada por articular a descrição empírica com a explicação racional e argumentativa, a qual ele denominou de realismo cognoscitivo".

 

 

Processo de clarificação intelectual

 

Na interpretação do teólogo, a conversão desses autores ao deísmo e ao teísmo indicam que essas posições "são mais consistentes racionalmente porque a visão materialista se fixa somente na matéria e não se dá conta de que a matéria, sem leis, não vai a nenhum lugar. O cosmos é perfeitamente articulado e forma um mistério com determinadas leis e regularidades dentro das quais se dá saltos qualitativos. Isso é uma 'transparência' do que dizemos quando dizemos Deus".

 

 

A conversão de C. S. Lewis, exemplifica, "surgiu como fruto maduro de um laborioso e racional processo de clarificação intelectual. F. S. Collins tratou da fé a partir das evidências científicas. Isto é, quando temos presente as evidências científicas, neste caso, protobiológicas, o mais consistente racionalmente é ser crente. Não foi menor a surpresa da comunicação de A. Flew, quando disse que era deísta. Eles têm em comum o desejo de maior rigor racional do deísmo e do teísmo sobre o ateísmo, assim como a necessidade de colocar em seu campo [científico ou filosófico] o que está 'aparecendo' em tudo isso".

 

 

Por fim, Jesús Martínez Gordo chamou a atenção para o que subjaz e transparece em meio ao avanço do conhecimento científico e histórico ao longo dos séculos. Ao levar essa manifestação em conta, afirma, podemos ser convertidos ao deísmo, que, de algum modo, nos instiga a continuar buscando respostas para a questão: "O que dizemos quando dizemos 'Deus existe'?" "Como se explica essa conjunção de expansão e movimento do universo e a regularidade e permanência em meio à expansão e à historicidade? Como respondeu Flew, 'quando, como deísta que sou, digo 'Deus', ou 'mistério', me refiro à existência do que é 'transparente' nessa conjunção de permanente surpresa e regularidade; uma unidade, cuja existência constato nas provas ou evidências da astrofísica e, por sua vez, cuja racionalidade me escapa (porque não sou capaz de vê-la em um discurso lógico-matemático com comprovação empírica). Mas aí está, existindo como 'Algo' ou 'Alguém', que me escapa'."

 

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