O verão e o calor italianos não interrompem o intenso diálogo que se desenrola sobre o tema do pós-teísmo e que o sítio Adista acolhe há muito tempo. Enrico Peyretti responde à intervenção de Domenico Basile no número 29/21 de Adista (“Como pensar um Deus impessoal”, disponível em italiano aqui).
A carta foi publicada por Adista, 11-08-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Caro Domenico,
Se você é a mesma pessoa (como eu creio) que interveio em Adista Documenti, em 31 de julho de 2021, pp. 12-13, com o título “Como pensar um Deus impessoal”, permito-me continuar o diálogo sem pretensões.
Você diz que o “núcleo da questão” é que atribuímos a Deus “características antropomórficas”, nele projetamos “pulsões de onipotência e necessidades de proteção”. Certamente, nas nossas várias imagens de Deus, existe esse fenômeno, nós o imaginamos à nossa imagem.
Mas também certamente essa imagem é continuamente corrigida, discutida, desmentida, transcendida, tanto pela crítica religiosa, quanto principalmente por aquelas luzes que sentimos como mensagens, apelos, revelações, profecias que as pessoas que creem reconhecem como provenientes do Deus verdadeiro.
Certamente, existem muitas imagens, e teorias, e potências “humanas, demasiadamente humanas” a respeito de Deus, até mesmo na Bíblia. Mas, dentro da própria tradição bíblica, elas são desmentidas sonoramente: a crítica profética e Jesus!
Ora, se do mistério indizível de Deus chega até nós alguma “comunicação” (isto é, um sinal que pode ser “comum “ a quem fala e a quem escuta), que nós dizemos que é uma “Palavra”, então aí, no mistério, há uma consciência comunicante, falante, comungante, inspirante, semelhante àquela por meio da qual nos comunicamos entre nós, pessoas conscientes, dotadas de “consciência” (cons-cientes de nós e dos outros como nós).
Então, acho que posso dizer: nós não projetamos a nossa natureza consciente em Deus, mas somos originados à imagem do Deus consciente, pessoal, comunicante. Essa substância da Palavra bíblica e de todo monoteísmo me parece profundamente convincente, reconfortante, exigente; e me parece ser o único modo de pensar e de confiar em um Vivente, para além de todo nome e de todo conceito, que é Vida-que-dá-vida, isto é, comunica vida e consciência a seres como nós, embora remotamente semelhantes a ele.
Nós somos conscientes porque Deus é consciente. Foi-nos dada a consciência também para a dignidade e para a defesa dos outros seres que nos parecem (talvez?) sem uma consciência semelhante à nossa.
Se Deus é “impessoal”, se ele não é uma pessoa autoconsciente e comunicante, você e eu estamos mais vivos do que ele. E estamos sozinhos, porque não há ninguém que, como fazemos entre nós, nos escuta e nos fala. Se ninguém me fala, eu não existo.
Continuemos pensando, em escuta. Agradeço-lhe, com uma saudação amiga,
Enrico Peyretti