17 Mai 2020
Por trás das falsas teologias que contestam o papa, está a guerra do templo-palácio.
O comentário é de Enrico Peyretti, teólogo, ativista italiano, padre casado e ex-presidente da Federação Universitária Católica Italiana (Fuci), em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 15-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As Igrejas cristãs, também no diálogo profundo com as outras religiões, fazem hoje uma contribuição de civilização humana e espiritual, portanto, um respiro, assim como toda busca pelo verdadeiro, pelo bom, pelo justo, pelo belo. Ajudam as pessoas a não se afogarem no funcionalismo, como puros instrumentos, entre o mito e o medo do futuro.
Talvez seja precisamente por isso que surgem oposições fortes contra o despertar do Evangelho e, em particular, contra a ação do Papa Francisco.
Aqui, reúno algumas observações de várias pessoas atentas sobre essa verdadeira “guerra ao papa”, travada por determinadas forças. Na divulgação televisiva, essa “guerra” foi documentada pela Rai3 no programa “Presa direta”, no dia 13 de janeiro, e no programa “Report”, no dia 20 de abril de 2020.
Uma primeira observação lê a contestação ao papa como oposição teológica. Para uma certa teologia, Deus deve ser uma referência de segurança e de ordem; por isso, a sua lei é totalmente definida e definitiva, o mal é bem identificado: Deus o pune, e a sociedade também deve proibi-lo e puni-lo.
Não há necessidade de compreender mais e melhor a palavra de Deus; devemos apenas executá-la. É um tradicionalismo estreito e estático, enquanto a tradição viva e vital é dinâmica, caminha e cresce.
Francisco, com o Evangelho de Jesus, apresenta Deus como pai da misericórdia que a todos ama, acolhe e sempre perdoa e reanima, e inspira uma larga fraternidade.
Para aqueles adversários, isso é causa de desordem, licença, desobediência. Para eles, pensar que “a Escritura cresce com quem a lê” (Gregório Magno) e que “a humanidade passa de uma concepção predominantemente estática da ordem das coisas para outra, preferencialmente dinâmica e evolutiva” (Concílio, Gaudium et spes, n. 5) é se afastar de uma verdade totalmente já vista e possuída.
Também é verdade que a teologia usada contra Francisco teve um peso histórico: Deus visto como “fundamento dos tronos” (como denunciava Ernst Bloch), razão última das hierarquias do mundo, vigilante dos submissos e juiz definitivo e terrível.
Hoje, essa teologia é utilizada por poderes políticos e econômicos diferentes, mas unidos nessa luta. Eles sabem muito bem que o Evangelho é perigoso pela sua reivindicação absoluta e soberana, porque cria dignidade humana e liberdade de consciência. J. B. Metz opunha religião “burguesa” a religião “messiânica”.
Esses poderes, que produzem desastres sociais e ambientais, temem ser contestados também moralmente e, então, tentam se sustentar com razões elevadas, até mesmo religiosas, fazendo com que pesem acima das camadas populares culturalmente indefesas. Armam-se de instrumentos de influência e fazem um uso político grosseiro de uma religião supersticiosa, milagreira, domesticadora, com a aparência de um valor tradicional.
Entre as forças anti-Francisco, está também aquele tradicionalismo identitário, aquela religiosidade étnica, nacionalista, difundida na Europa oriental e na Rússia, que se apresenta também com recaídas italianas grosseiras na direita nacional-fascista, na ideologia populista do “primeiro nós”, no racismo que despreza as diversidades e as necessidades alheias, envernizando tudo isso de religião nacional.
A religião étnica aparentemente cristã pretende voltar ao chamado divino do “povo escolhido”, Israel, como se a eleição fosse “seleção”, enquanto, pelo contrário, é um encargo, uma missão para todos os povos, aos quais, de fato, amplia-se a mensagem de Jesus, como já anunciavam os profetas judeus.
Também é inimigo de Francisco aquele “progressismo relativista”, ultracapitalista e laicista das empresas multinacionais, empresas e grupos econômicos, dos quais escreveram Nello Scavo no livro “I nemici di Francesco” [Os inimigos de Francisco] e Sergio Paronetto em “Papa Francesco: l’uomo più pericoloso al mondo” [Papa Francisco: o homem mais perigoso no mundo].
Pode-se relacionar essa posição com o projeto “trans-humanista” (ver L. Manicardi, “Memoria del limite” [Memória do limite], e Thierry Magnin, revista Munera, n. 3/2019, “Transumanesimo, una sfida alla finitezza umana” [Trans-humanismo, um desafio à finitude humana]). É a ideia de potencializar o ser humano, até superar a mortalidade, com base em um paradigma tecnocrático e utilitarista, na dominação do mundo.
A tecnociência salvará os humanos, libertando-os de todos os limites. A técnica, com o seu poder, se torna uma filosofia da existência, e o progresso humano consiste no máximo desempenho técnico e econômico. O ser humano vale enquanto funcionante com força sobre o mundo e as coisas.
Essa ideia do ser humano está muito distante não apenas da visão cristã, mas também das grandes sabedorias humanas antigas, semelhantes na sua variedade, que produziram as civilizações diversas e irmãs na história humana. Vejam-se os estudos sobre o “consenso ético entre culturas” ou ethos mundial, de Bori, Küng, Kuschel, Boff, expressados na universal “regra de ouro”.
Nessas antigas sabedorias comprovadas, o ser humano é humilde e grande: é carne, alma, espírito. A vida humana é matéria viva, é alma sensível e inteligente, é busca e acolhida do mistério maior. A redução da pessoa humana à racionalidade funcional, que faz uso econômico das pessoas, choca-se com as culturas dos valores além do lucro e, portanto, também com a mensagem do Evangelho.
Hoje, quem leva mais claramente essa mensagem é o Papa Francisco: assim, ele liberta a alma e o espírito das pessoas, que, ao invés disso, o projeto tecnocrático quer usar como peões da produção material poderosa.
Portanto, contra o papa, não há apenas um tradicionalismo estreito, mas também um “progressismo” tecnocrático. Esse conceito de poder dos fortes e dos hábeis não suporta a crítica do Evangelho às duras desigualdades sociais e não reconhece que todos os povos são uma única família humana, em vez de competir duramente no eficientismo.
Essas forças, junto com um certo clero e notáveis eclesiásticos, lideram campanhas midiáticas bilionárias para frear, no próximo conclave, a Igreja de Francisco: menos hierárquica, mais fraterna e sinodal (que significa “caminhar juntos”), solidária com toda a humanidade.
Assim, travam guerra contra o papa não apenas tradicionalistas, ultraconservadores ou fascistas que instrumentalizam a religião, mas também homens modernos dos centros de poder. Todos eles não suportam um papa que representa exigências de justiça conflitantes com os seus projetos.
Ateísmo tecnocrático e humanismo autossuficiente e poderoso se opõem às religiões autênticas, isto é, à consciência tanto do limite humano (a pandemia deveria nos ensinar algo) quanto da libertação espiritual, que nos faz crescer juntos na paz e na justiça, a possível felicidade de todos. A vida espiritual desafia o homo economicus, porque propõe valores não monetizáveis no mercado competitivo.
O Papa Francisco denunciou logo a economia hoje predominante: “Esta economia mata” (Evangelii gaudium, n. 53). Esse julgamento é imperdoável para quem entende a vida como comércio e utilidade. É motivo suficiente para abater o Papa Francisco, e para esse objetivo servem a religião passiva, a calúnia, o utilitarismo, o materialismo como o espiritualismo, as tramas palacianas e curiais, o poder político, a acusação de heresia e paganismo, a corrupção... e também a proposta de um cristianismo mais sedutor do que o de Jesus Cristo. Tudo serve.
Eis então que a direita estadunidense, tanto católica quanto “evangélica”, propõe irrefreavelmente uma “teologia da prosperidade”, ou seja, a doce doutrina segundo a qual a riqueza é sinal da bênção divina. Essa também era uma ideia judaica que prosperou até a época de Jesus, o qual, porém, indica os pobres como prediletos de Deus e denuncia o perigo da riqueza não compartilhada.
Somente na parábola do rico esbanjador (“comilão”) e do pobre Lázaro, em Lucas 16, o Hades, que é o lugar de todos os mortos, aparece como um terrível lugar de fogo, para punir o rico egoísta. O fogo aparece também em Mateus 25 para aqueles que se recusam a socorrer o próximo necessitado.
Jesus usa a linguagem corrente do seu ambiente, mas a sua mensagem não diz que Deus tortura ferozmente, pela eternidade, os pecadores do egoísmo (como diria, depois, a imagem tradicional do inferno), mas diz que a vida deles termina no nada, assim como o fogo destrói aquilo que toca.
O Hades ardente é uma severa advertência pedagógica contra a riqueza opulenta: nada de bênção ou de benevolência divina! A “teologia da opulência” da direita pseudocristã estadunidense (que produziu Trump) é o oposto da evangélica “teologia da libertação”, ou teologia popular da dignidade e do resgate dos pobres.
Este aspecto é importante: a guerra contra o Papa Francisco não é apenas teológico-moral, mas também teopolítica-imperial. Isto é, o poder material (Mamon) vai contra o espírito de humanidade e liberdade, que é o Evangelho, pregado por Francisco. Não ataca tanto uma doutrina cristã, mas sim a caridade e humanidade operante: a guerra contra Francisco é guerra contra os pobres, portanto, ao Evangelho dos pobres.
É a mesma guerra que clero e império travaram contra Jesus. Por isso, a memória da sua paixão é “subversiva” (J. B. Metz). É sempre a guerra do templo-palácio contra o caminho de todos, contra a fé e o culto “em espírito e verdade”, que Jesus ensina à Samaritana em João 4, revelando-se a ela como messias.
Jesus realiza e supera a religião, assim como a caridade realiza e supera a lei. “Em espírito e verdade”, escrevia Bori, une a dimensão vertical (Deus está além de toda imagem, encontra-se apenas no espírito) e a horizontal (Deus se encontra na justiça) e supera, cumprindo-a, a questão de qual é a verdadeira religião.
A acusação contra Francisco de que ele não é verdadeiro cristão e papa é falsa e malévola, porque – com a paciência de não abandonar ninguém, de estar no meio do rebanho, de se deixar até conduzir, de ter o cheiro do rebanho – ele prossegue verdadeiramente no fiel cumprimento gradual, por meio de processos e não de rasgos, do Evangelho de Jesus no mundo de hoje.
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Quem move a guerra contra o papa: o clero e o império. Artigo de Enrico Peyretti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU