18 Mai 2020
A última quinta-feira, 14 de maio, foi um dia especial de oração universal pela cura do coronavírus, proposto pelo Alto Comitê para a Fraternidade Humana, um órgão formado após a viagem do Papa Francisco em 2019 aos Emirados Árabes Unidos e o “Documento sobre a Fraternidade Humana” que ele assinou lá, junto com o Grão-Imã de al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 15-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Francisco abraçou o chamado para um dia de oração no dia 14 de maio feito por todas as tradições religiosas no início do mês e começou sua missa transmitida ao vivo nessa quinta-feira, referindo-se a isso.
“São Francisco de Assis dizia: ‘Todos somos irmãos’”, disse o papa.
“Por isso, homens e mulheres de todas as confissões religiosas, hoje, nos unimos na oração e na penitência, para pedir a graça da cura dessa pandemia”, disse Francisco.
(A ironia de que o Alto Comitê para a Fraternidade Humana é financiado pelos Emirados Árabes Unidos, que atualmente está envolvido em conflitos na Líbia e no Iêmen, em violação a um embargo de armas da ONU, e cujo governo tem um histórico decididamente misto em relação aos direitos humanos, obviamente não se perde com Francisco, mas a sua abordagem parece ser a de acolher iniciativas positivas onde quer que elas se originem.)
Pelo menos na Itália, no entanto, onde as injunções do papa geralmente têm a mais ampla ressonância, porque é o seu próprio quintal, a iniciativa surgiu em um momento em que muitos italianos não estão com um humor especialmente fraterno.
Ao invés disso, o país tem sido dilacerado por uma polêmica em torno de Silvia Romano, agora com 24 anos de idade, que atuava como voluntária humanitária no Quênia, quando foi sequestrada há 18 meses por militantes ligados ao grupo terrorista radical al-Shabab da Somália.
As notícias da sua libertação no fim de semana passado inicialmente levaram a uma celebração nacional, mas as coisas rapidamente tomaram um rumo vicioso quando veio à tona que Romano havia se convertido ao Islã durante o seu cativeiro e adotado o nome “Aisha”. Em conversas com as autoridades do governo, ela teria afirmado que a sua conversão não foi forçada, dizendo que havia sido o resultado da leitura do Alcorão e da discussão da fé com um de seus captores.
As revelações sobre a sua conversão provocaram uma série de comentários particularmente nojentos, tanto nas mídias sociais quanto nos círculos políticos. Um dos principais políticos conservadores, Vittorio Sgarbi, sugeriu que Romano fosse processada.
“Se a máfia e o terrorismo são análogos, na medida em que ambos representam uma guerra contra o Estado, e se Silvia Romano se converteu radicalmente ao Islã, ela deve ser presa por cooperação material com uma associação terrorista”, disse Sgarbi. “Ou ela se arrepende ou é cúmplice dos terroristas.” Sgarbi agora é uma das várias figuras proeminentes sob investigação de um promotor de Milão sob as disposições da lei italiana sobre “discurso de ódio”.
O editor do proeminente jornal conservador Il Giornale, Alessandro Sallussti, comparou o fato de assistir a Romano chegando ao aeroporto Ciampino, de Roma, no domingo, vestindo trajes islâmicos tradicionais, a “ver uma prisioneira de um campo de concentração orgulhosamente vestida como nazista”.
Nos níveis mais baixos, o ódio presente nas mensagens das mídias sociais e nos comentários postados nos artigos de notícias tem sido generalizado. Um comentador em um grande site de notícias, identificado como “Max”, escreveu: “Eu a teria deixado na África”, enquanto outro, chamado “Rocco”, sugeria “enviá-la de volta e fazê-la pagar pelo custo dessa operação”.
Tais reações têm raízes profundas na Itália, que foram turbinadas na última década pela crise europeia dos migrantes e refugiados e pela percepção de que o país está sendo “invadido” principalmente por imigrantes muçulmanos, vistos por alguns como incompatíveis com a identidade cultural da Itália.
Mesmo agora, depois de mais de dois meses em que ele ficou praticamente invisível por estar fora do poder, Matteo Salvini e seu partido de extrema-direita, Liga, estão à frente de todas as outras facções políticas do país, com uma base estável de cerca de 30% de apoio.
Nesse contexto, as lideranças católicas têm se esforçado bastante para defender a fraternidade, sem falar da paciência.
Na véspera do dia fraterno de oração, o próprio jornal do papa, L’Osservatore Romano, publicou um longo editorial da poeta e escritora italiana Daniele Mencarelli, denunciando aquilo que ela chamou de “incrível sequência de reações e julgamentos imundos”.
“Sem compaixão, o ser humano se ergue como juiz, cometendo aquela que é a negação mais clara e ignóbil da mensagem cristã”, escreveu Mencarelli.
“A nossa época é bulímica em julgamentos”, escreveu ele. “Sabemos com perfeição aquilo que não está certo nos outros e estamos prontos para atirar pedras sem piedade. Mas, felizmente, ainda resiste uma humildade que ama e se oferece aos outros.”
“Bem-vinda de volta, Silvia”, concluiu Mencarelli, “tome todo o tempo que precisar.”
O editorial se baseava em elogios anteriores à coragem e ao desejo de Romano de servir, demonstrados pelo Avvenire, o jornal da Conferência Episcopal Italiana, que a chamou de “embaixadora de uma Itália melhor”, e pela revista católica muito lida Famiglia Cristiana, que a denominou “um exemplo para os nossos jovens”.
O cardeal Gualtiero Bassetti, de Perugia, presidente dos bispos italianos, disse que todos os italianos devem sentir que Romano é sua filha, chamando-a de “uma jovem mulher com coragem, e essa força interior certamente é aquilo que a salvou”.
Não está claro se essa campanha de compaixão está fazendo muito efeito. O Il Giornale publicou um artigo em resposta, intitulado “Uma Igreja entusiasta pela conversão”, criticando os comentários católicos oficiais como representativos do tipo de Igreja que apela aos “católicos ‘hipocrentes’, além de inúmeros ateus, agnósticos, espiritualistas, deístas, panteístas” e assim por diante.
O jornal reservou um deboche especial para o Pe. Enrico Parazzoli, pároco da pequena paróquia de Milão que atende a família de Romano, que disse que a conversão dela merece “grande respeito” e que “só ela pode dizer se o Islã é a resposta certa para a sua vida”.
“Talvez ele não se deu conta”, escreveu Il Giornale, “mas, ao dizer isso, o Pe. Enrico apresentou a sua renúncia como padre: aos sacerdotes é confiada a missão apostólica; quem deixa de evangelizar e começa a abençoar a ‘alcoranização’ alheia não é mais confiável e deveria mudar de ofício, talvez empregando-se em uma daquelas magníficas ONGs islamófilas”.
A justaposição não planejada do Dia de Oração de 14 de maio e a polêmica em torno de Silvia Romano na Itália, portanto, talvez ilustrem duas verdades.
Primeiro, o Papa Francisco não perderá nenhuma oportunidade de abraçar os apelos à fraternidade humana e à solidariedade inter-religiosa, não importa de onde vierem. E, segundo, parece que os desafios à fraternidade em uma era polarizada não vão recuar tão cedo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa defende a oração fraterna, mas está em um ambiente nada fraterno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU