A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 4º Domingo do Tempo de Quaresma, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 9,1-41.
“Enquanto estou no mundo, Sou a Luz do mundo.” (Jo 9,5)
A cura do cego de nascença (Jo 9) revela-se como uma instigante narrativa que requer ser lida em seu contexto imediatamente anterior; ali encontramos uma discussão de Jesus com os judeus e que começa com esta afirmação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Frente à cegueira cultural-religiosa, Jesus se mostra como Luz na vida.
O relato deste domingo nos põe em contato com Jesus que traz Luz-Vida. Ele não só se revela como Luz, mas, através de seu “toque”, ativa a luz presente naquele que não podia ver a luz do dia. Como no caso da samaritana, é Jesus quem toma a iniciativa, mas o interessado deve responder pessoalmente.
Todo o relato é simbólico; as alusões ao batismo são constantes. A Igreja primitiva chamava o batismo “photismós”, que significa “iluminação”. Trata-se de indicar aos catecúmenos o caminho que precisam percorrer antes do batismo.
Este cego de nascença representa toda a humanidade, porque, em certo sentido, todos somos cegos enquanto não acolhamos Aquele que é Luz. Esta cegueira é a que impede ver a verdade que nos fará livres. Somos cegos quando nos fechamos em nossa mentalidade, critérios, ideologias... Somos cegos quando nos petrificamos no fanatismo, na intolerância e na resistência em perceber a luz que habita naquele que pensa e sente de maneira diferente.
“Jesus ia passando, quando viu um cego de nascença”. O “passar” é uma evocação do caminho do Êxodo, caminho de liberdade. No deserto, Deus é o “clarão” que orienta e move o povo de Israel a fazer a travessia da terra da escuridão para a terra da liberdade. Jesus é Luz que “passa” em meio ao mundo da marginalidade e da exclusão, reacendo a luz da esperança e da vida em cada pessoa.
Jesus é a “Luz que toca”; aqui aparece, com muita força, o símbolo do contato físico. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato; é a idade da comunhão, a idade da ternura materna. O caminho do tato é o da mais profunda comunhão.
Jesus tocava pessoas feridas, quebradas... e sua gestualidade prolongava o sexto dia da Criação.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato.
Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
Existem forças reconstrutoras presentes em todos nós. Através de suas palavras e do seu toque, o Mestre da Galileia restabelece o contato do cego com a fonte, com os seus recursos interiores. Esses recursos existem em cada pessoa, e cada um pode aproveitá-los. Através do encontro com Jesus e do seu toque, as pessoas descobrem os recursos interiores que devem ser mobilizados. Ele confia nas forças de autocura do ser humano; não precisa fazer tudo sozinho.
No encontro com Jesus, o doente entra em contato consigo mesmo, com as fontes interiores que o Pai lhe deu: estas são as fontes das forças de autocura, de dons e habilidades, de força e de esperança.
Jesus não explica, não faz uma teoria sobre a origem da cegueira (quem pecou?). Realiza algo muito maior: ajuda o cego, afasta-o da cidade alta (dominada por sacerdotes e escribas) e o convida a descer à fonte da vida, abaixo, no manancial de Siloé, que é sinal profético de abundância e de iluminação futura.
Este cego é o homem que não consegue ver desde o nascimento; não se trata de pecado, mas da própria situação vital, da cegueira humana que se expressa, de um modo claro, neste ser humano. Há muitos que lhe querem ensinar a ver (os mestres da lei), mas lhe deixam na cegueira. É uma cegueira que começa sendo externa (não ver as coisas, não compreender o sentido da vida) e que termina sendo interior (não saber quem é, em quem pode confiar, viver sendo manipulado por outros).
Podemos, então, afirmar que o relato de João é um “texto de rebelião”, um texto que denuncia toda religião que aprisiona as pessoas nas trevas do sentimento de culpa, de medo e de impotência. É o testemunho de Jesus que se rebela contra aqueles que querem manter as pessoas cegas, travando a verdadeira identidade delas que se revela como participação na luz divina, presente no interior de cada uma.
Contra tal situação Jesus diz ao cego de Siloé que se rebele, que não permaneça cego à beira do caminho, que veja por si mesmo, que decida, que confesse sua nova liberdade mesmo que isto lhe custe a rejeição das autoridades religiosas, inclusive de seus próprios familiares.
Junto ao cego de nascença se faz visível o pecado de todas as pessoas que não lhe ajudam, que não querem entendê-lo, que o submetem às suas leis e conveniências. Pois bem, Jesus não consola o cego (em sentido superficial), mas lhe diz para ser ele mesmo, que assuma sua própria vida, que desça à água, que se purifique... Jesus mesmo põe barro nos olhos do cego (terra com saliva, alento vital) e lhe diz que vá, que veja, que não tenha medo, que assuma seu destino... Jesus não cria dependência; ativa no cego sua autonomia para que ele seja autor de sua própria vida, inclusive correndo riscos de ser rejeitado.
No fundo, Jesus pede ao cego que se rebele contra uma lei de cegueira, que o obriga a mendigar, sob a “caridade” dos mestres cegos que vivem à custa da cegueira dos outros. Pede-lhe que se rebele, que deixe seu lugar de mendigo, que saia da margem e que recupere sua verdadeira identidade. Trata-se de uma rebelião para a liberdade, para a vida. É uma rebelião que conduz ao encontro com Jesus que é simplesmente “filho do homem”, o homem em plenitude.
O cego passa a crer em Jesus como “filho do homem”, ou seja, como humanidade libertada e libertadora.
Pouco a pouco, o mendigo vai ficando sozinho. Seus pais não o defendem; os dirigentes religiosos o expulsam da sinagoga. Ao ver a realidade com o novo olhar que Jesus lhe ofereceu, já não cabia dentro da sinagoga, lugar de uma atrofiada visão de Deus e da vida.
O que era cego experimentou o amor gratuito e libertador. Para ele é impossível negar o que pessoalmente viveu. Do mesmo modo que Jesus teve que sair do templo, o cego que recebeu a luz, foi expulso da sinagoga.
Jesus não veio colocar uma pequena vela sobre nossas cabeças, mas acender nossa existência humana para que brilhemos a partir de nosso interior, com luz própria. Cada um de nós carrega dentro o combustível inextinguível da luz, colocada por Aquele que é Luz e que ilumina constantemente nossa existência.
Ao despertar, caímos na conta de que não somos o “ego inflado” criado por nossa mente, mas o “eu sou” universal, numa identidade compartilhada com todos.
A luz da treva é sedutora, mentirosa e assassina. Todos levamos dentro resquícios de trevas, espaços onde ainda não deixamos entrar a luz.
Por um lado, temos a luz, a visão e a vida. Por outro, as trevas, a cegueira e a morte. No meio, a longa gestação da luz dentro de nós, que pode progredir na visão de
Deus e do mundo como o cego curado, ou que pode crescer também na cegueira das trevas como as autoridades que negam o evidente. Este é o dilema: “Ver ou perecer” (cf. Benjamin Buelta, sj).
Aquele(a) é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente a realidade que o cerca.
Espeleologia é a ciência das cavernas.
A oração é a “espeleologia” que se dedica a explorar as cavernas do “eu profundo”: nossa dimensão iluminada.
O “eu profundo” é um emaranhado de cavernas iluminadas por uma luz que se insinua por frestas estreitas, cavernas que vão ficando cada vez mais fundas e escuras. Lugar do silêncio e da escuta atenta.
Ao entrar na caverna o medo se manifesta; são poucos os que tem coragem de fazer este percurso. Lá dentro tudo é diferente. As vozes se transformam em sussurros; a pupila dos olhos aumenta; também cresce o assombro diante das novas descobertas.
Aqui nos descobrimos sozinhos. Há solidão e silêncio, habitados por uma Presença iluminante e iluminadora que tudo harmoniza, integra e pacifica. Aqui está enraizada nossa identidade (“sou eu”), a verdade do “eu profundo” onde as palavras cessam e podemos ouvir uma serena melodia.