20 Março 2020
“Vai lavar-te na piscina de Siloé” (Jo 9,6).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 4° Domingo da Quaresma que corresponde ao texto de João 9,1-38.
Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade cristã é uma “espiritualidade de olhos abertos”.
Na realidade, isso vale para toda espiritualidade genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da realidade mais dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma espiritualidade que não desemboca na compaixão, entendida esta como a capacidade de entrar em sintonia com o outro que sofre, e que se traduz numa ação eficaz a seu favor.
A Campanha da Fraternidade deste ano nos apresenta o samaritano como personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.
Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos cegos de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas sociais e religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar avesso e atrofiado. A cura do cego de nascimento, apresentado pelo evangelista João, é o sinal que nos fala daqui-lo que o Senhor nos oferece: caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo fechado e ao longo de toda a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga. Jesus vai curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um espetáculo para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente agachou-se, cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com a gema de seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se na piscina de Siloé. É uma cena de re-construção de uma pessoa quebrada e que nos recorda o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano.
No cego curado se revela a ação permanente de Deus: despertar a luz escondida em nosso interior, ativar a vida para dar-lhe amplitude maior.
Com o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo um processo catecumenal que com-duz o ser humano das trevas à luz, da opressão à liberdade, da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à participação. Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer em direção a Siloé, lugar das águas re-criadoras. Este texto remete à experiência fundante da vida.
O caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé está situada na parte baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta, controlam e manipulam religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do culto, da tradição... Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar em todas as suas potencialidades.
O reservatório de Siloé estava situado fora das muralhas, na parte baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte de Guijón e que chegava até ele conduzida por um canal-túnel (daí o nome aramaico de “siloah”= emissão-envio, água emitida-enviada). Era uma maravilha de engenharia, mandado construir pelo rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se faz presente, lava-se, assume sua vida, torna-se independente: um novo nascimento. Agora ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como ser humano, em sua capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua condição humana e deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e mestres, como um mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua vida, decidir, dizer, afirmar-se...
Inspirados no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a manifestação da perda do contato do ser humano com sua fonte divina. As duas narrativas de cura mais importantes no 4º evangelho, ocorrem no tanque de Betesda e no reservatório de Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte divina, ele adoece, e a cura acontece, quando esse contato com a fonte interior é restabelecido.
Para que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente até a piscina de Siloé; bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para reconectar o enfermo com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em sua dignidade, mas motiva-o a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao reservatório de água de Siloé e rompendo sua dependência para com os fariseus e sacerdotes que o oprimiam, mantendo-o preso à sua situação de cegueira existencial.
O apelo de Jesus é para que o cego seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção a Siloé é descer em direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo, para lavar-se no manancial das águas puras.
O cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à
vida, da opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado de recursos internos inesgotáveis. Cada um possui dentro de si uma fonte de forças reconstrutoras, renováveis, resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de um estímulo externo para reconectar-se com essa fonte.
Sabemos e sentimos, no mais profundo, o que é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades.
O evangelho deste domingo nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos, também nós, atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
O manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-lo, abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia..., constituem a plenitude de nossa realização.
A “descida” até o mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade e isolamento...
O encontro com a “água viva” abre futuro novo, motivando-nos à tomada de decisões, a assumir um estilo de vida coerente com aquilo que encontramos no fundo do nosso próprio coração.
Sente-se junto à sua Siloé interior; mergulhe na “fonte” que corre, desça às “águas” do amor do Pai, deixe-se molhar pelas Palavras do Filho e receba a força e a luz do Espírito.
- Na sua vida, o que está bloqueando, impedindo a manifestação das melhores forças, inspirações, criatividade?
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“Descer” às águas de Siloé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU