04 Abril 2023
"O conflito entre evangelho e religião que ainda persiste hoje não questiona? Algumas liturgias brilhantes e triunfantes são mais dignas das cortes imperiais do que de um pequeno rebanho pois cegam e não permitem ver? A vítima é sempre o justo, o pobre, quem é sem direitos e é chamado de formas diferentes: fugitivo, migrante, vítima da guerra, exilado ou simplesmente é uma pessoa que ousa sentir-se responsável por quem mais precisa dele", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 03-04-2023. A tradução de Luisa Rabolini.
Todos os anos, na chamada "semana santa", repetem-se ritos, palavras e gestos em todas as igrejas cristãs marcando a sucessão de dias sobre os acontecimentos que se inscrevem na paixão e morte de Jesus de Nazaré. É uma verdadeira singularidade cristã aquela de repetir e tentar reviver o que viveu Jesus no caminho da própria morte – acontecimentos, gestos que infelizmente se tornaram parte do folclore, a ponto de atrair turistas curiosos e certamente não crentes –: sentiu-se no cristianismo essa necessidade que se realizou entre imitação e seguimento.
Imita-se Jesus, que entra triunfalmente na cidade santa de Jerusalém, agitando palmas e ramos de oliveira e invocando a vinda do Reino de Davi; celebra-se uma ceia como Jesus fez para dizer adeus aos seus discípulos doando-lhes no pão partido e no cálice de vinho partilhado os sinais de sua vida vivida no amor até o extremo; se realizam caminhos de procissão da cruz até a crucificação. Por fim, venera-se a cruz: não o cadafalso, mas um instrumento de glorificação, onde Jesus é exaltado e glorificado até atrair o olhar de todos.
Tentativa de mimese? Necessário envolvimento dos corpos dos crentes na memória de Paixão? Experiência de luto e escuridão para se inscrever na fé? Os cristãos ainda vivem a semana santa assim, e desse "esforço" deveriam, coerentemente com os Evangelhos, chegar a se fazer perguntas sobre por que o justo se torna vítima dos ímpios até ser perseguido e eliminado.
Deveriam se perguntar por que prevalece a violência onde há humildade, fraqueza, solidariedade com todos os outros numa atitude que nunca se quer contra os outros, nunca sem os outros, mas a favor dos outros.
Como pode alguém que é cristão não se sentir ferido pelo fato de Jesus ser rejeitado justamente pelo poder religioso legítimo, pela autoridade legítima de seu povo santo?
Esse conflito entre evangelho e religião que ainda persiste hoje não questiona? Algumas liturgias brilhantes e triunfantes são mais dignas das cortes imperiais do que de um pequeno rebanho pois cegam e não permitem ver? A vítima é sempre o justo, o pobre, quem é sem direitos e é chamado de formas diferentes: fugitivo, migrante, vítima da guerra, exilado ou simplesmente é uma pessoa que ousa sentir-se responsável por quem mais precisa dele.
A Semana Santa, depois de uma vida em que a celebro fiel e fervorosamente, ainda me apresenta muitos problemas e me obriga a repercorrer esse caminho de sofrimento: por que veneramos, contemplamos, choramos Jesus preso, torturado, condenado à morte pelo poder religioso – graças à concordata com o poder político –, crucificado e morto? Isso não é uma loucura? Mas na medida em que os cristãos acreditam que Jesus ressuscitou por ter amado tanto (este é o sinal do seu sofrimento padecido livremente e por amor!) então a cruz não é loucura, mas torna-se esperança para todos.
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A Páscoa das perguntas. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU