16 Julho 2021
“A tarefa urgente da Igreja, neste momento, consiste em perceber que a maior loucura que cometeu na sua longa história foi fundir e confundir o Evangelho com a Religião. São Francisco de Assis foi o maior homem que a Igreja já teve, porque percebeu esse absurdo. E ele deu a ela o remédio que ele poderia dar a ela. Ele não se concentrou em ortodoxias e autoritarismos, mas na exemplaridade do Evangelho”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 06-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Redigindo minhas “Memórias”, dei-me conta de que, há muitos séculos e sem ver a importância que tem este assunto, a pura verdade é que, nos países reconhecidos como “cristãos”, está mais presente e é mais determinante a Religião que o Evangelho.
Não exagero. Nem tiro as coisas de irritação. O problema está em que muita gente não pode nem pensar nisto. Pela simples razão de que, para essa gente (que é muita, muitíssima...), Religião e Evangelho são duas palavras e dois fatos que se referem ao mesmo. Afinal, para os que pensam assim, o Evangelho é um dos elementos da Religião. Por isso, no ato religioso mais importante (a missa), as pessoas que assistem a esse ato, quando se lê o Evangelho, se colocam de pé. Segundo os padres da Religião, o Evangelho é o fato litúrgico que merece mais respeito.
Porém, ocorre que, aqueles que veem assim as coisas da Igreja, não se dão conta da enorme contradição que existe nisso tudo. Que contradição? Pois, muito simples: o Evangelho (ou os quatro Evangelhos) são uma recopilação de breves relatos nos quais o argumento central e determinante é um enfrentamento, que termina em conflito. Um conflito mortal. O conflito de Jesus — centro e eixo do Evangelho — com a Religião.
De fato, se há alguém que Jesus de Nazaré enfrentou, foi precisamente com os “homens da Religião” e suas instituições: o templo, os sacerdotes, os ritos, as leis litúrgicas, os fariseus, os fiéis observantes da normativa religiosa. Um enfrentamento que chegou ao conflito mortal. Quando Jesus devolveu a vida a Lázaro (Jo 11, 41-44), o Sinédrio (supremo órgão de governo da Religião) viu que tinha que matar Jesus (Jo 11, 53).
Ficou evidente que Religião e Evangelho são incompatíveis. E o Sinédrio condenou Jesus à morte. Por que esta incompatibilidade? Religião e Evangelho geram interesses opostos. A religião atrai “capital” e “poder”, enquanto o Evangelho se identifica com o sofrimento dos “pobres” e “enfermos”. Santo Ambrósio foi feito bispo de Milão quando era catecúmeno (não foi batizado). Ele era um homem rico e poderoso. E era frequente, na época de Ambrósio e dos séculos subsequentes, eleger para bispos aqueles que tinham dinheiro e poder, mesmo que não fossem batizados (Peter Brown, “Por el ojo de una aguja”, Ed. Acantilado, 2016).
Assim, o papado e sua teologia se convenceram de que a Igreja possuía a riqueza e o poder conferido pela “plenitudo potestatis”, que tornou possível o colonialismo da Europa na maior parte do mundo. Por exemplo, em 1454, o Papa Nicolau V presenteou o Rei de Portugal, Henrique IV de Castela, todos os reinos da África. E também tornou todos os habitantes daquele continente “escravos” do rei (Bullarium Rom. Pont., Vol. V, pg. 113).
Mas nem tudo foi negativo na Igreja. Nem muito menos. A Igreja preservou e transmitiu-nos o Evangelho, que traz a este mundo o que é mais decisivo do que dinheiro e poder. A Igreja tornou possível que a sedução e a força do Evangelho chegassem até nós. Neste momento, a cultura que se impõe não é o “poder opressor”, mas o “poder sedutor”. "Horizontalidade" é derrotar a “verticalidade” (Peter Sloterdijk).
Por isso, a tarefa urgente da Igreja, neste momento, consiste em perceber que a maior loucura que cometeu na sua longa história foi fundir e confundir o Evangelho com a Religião. São Francisco de Assis foi o maior homem que a Igreja já teve, porque percebeu esse absurdo. E ele deu a ela o remédio que ele poderia dar a ela. Ele não se concentrou em ortodoxias e autoritarismos, mas na exemplaridade do Evangelho.
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Nos países cristãos, a Religião está mais presente que o Evangelho – Jesus deixou evidente que são incompatíveis. Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU