21 Agosto 2020
“Com esta religião e esta explicação do Evangelho, para onde vamos? Pois, nem mesmo a espantosa desgraça da pandemia modifica nossa forma de pensar sobre o que nos humaniza, ou o que nos desumaniza. O futuro é claro: sairemos da pandemia. O que temo não escapar é da nossa maneira de pensar e viver a importância do dinheiro e da recuperação do bem-estar. Por mais que os mais infelizes sejam cada vez mais infelizes a cada dia”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 20-08-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Todos sabemos de sobra que a pandemia do coronavírus é uma ameaça, que nos causa insegurança e pavor. Isto não necessita de muita explicação. Já estamos vivendo.
Porém, não é somente isto que estamos vivendo. Ademais da ameaça, talvez com mais força que essa mesma ameaça, também estamos experimentando uma experiência que nos humaniza.
A ameaça é algo tão evidente, que todos a palpamos. A humanização, pelo contrário, não está tão clara. Porque somos muitos os que nem nos damos conta do desnível tão profundo de desumanização que estamos vivendo. E porque não é um problema de bons e maus. É um problema cultural.
Nascemos, crescemos e vivemos em uma sociedade e uma cultura que nos mete, até as veias desta sociedade e desta cultura, até o convencimento natural e espontâneo, que o que importa na vida é ganhar dinheiro e ser importante. Porque esses são os pilares sobre os quais se edifica – segundo o pensamento de muitos – o que nos tem que interessar a todos. Viver com solidez e segurança. E ter os meios mais eficazes para passar o melhor possível.
Ou seja, é um projeto de vida no qual o sujeito centra-se em si mesmo. E o centro da vida está nele mesmo. Um projeto de vida que se alimenta da economia, da política, da religião, do ofício que cada um tem, da família em que nasce, dos parentes, tanto dos que gosta quanto dos que lhe dão vergonha. Tudo, tudo, absolutamente tudo, ao serviço do meu viver bem. E o que fica para trás, que aperte o passo.
Nesta sociedade e nesta cultura, nascemos, nos educaram e, a serviço deste projeto de vida, está organizado todo o demais. Não digo que todos os cidadãos sejam assim e vivam assim. Nem podem ser assim. Porque a consequência mais forte, que se segue disso, é precisamente a desigualdade. Nesta sociedade, na qual as liberdades têm tanta importância, inevitavelmente o peixe grande come o peixe pequeno. E a consequência é que a economia, a riqueza e o bem-estar concentram-se, cada dia mais e mais, em menos e menos privilegiados. Ao mesmo tempo, os mais vulneráveis crescem em mais e maior desamparo. De forma que os que melhor vivem são cada dia menos, enquanto os desamparados aumentam, até ao ponto de que levamos as mãos à cabeça porque na Espanha morreram trinta pessoas pelo vírus, no mesmo dia que, no chamado “terceiro mundo”, morreram trinta mil de fome e miséria.
Isso não tem pés e nem cabeça. E nós: angustiados pela pandemia! O que é perfeitamente compreensível. Porém, atrevo-me a dizer que a pandemia tem algo positivo: veio nos dizer que temos que repensar – e repensar muito a fundo – que cultura, que sociedade, que economia, que política, que valores, que direito, que religião... que forma de viver (em definitivo) organizamos, até o mais natural do mundo, quando na realidade, isto é a desumanização mais selvagem que se poderia inventar. E se não, como se explica que haja tanta gente que prefere uma festa, uma boate, ainda que isso lhe custe sair infectado com o vírus que a todos assusta?
E já que dediquei a minha vida à religião e à teologia, pergunto-me (impressionado e até assustado) como é possível que, neste cenário, haja tantos clérigos (conservadores e progressistas, à direita, centro e esquerda) que começam a explicar o Evangelho e não sei o que dizem, mas o fato é que muitas pessoas saem da Igreja mais calmas em suas consciências, mas pensando como pensavam antes do sermão. Não é de se admirar que tenha sido dito que “a experiência religiosa, de todos nós, já não é mais confiável’. E não é de confiança, porque nos fortalece na convicção de que o que importa é que a pandemia acabe, que se recupere a vida boa e o luxo. E as centenas de milhões, que estão morrendo de fome, que se virem como podem. Mas não venham aqui para nos incomodar.
E eu me pergunto: com esta religião e esta explicação do Evangelho, para onde vamos? Pois, nem mesmo a espantosa desgraça da pandemia modifica nossa forma de pensar sobre o que nos humaniza, ou o que nos desumaniza.
O futuro é claro: sairemos da pandemia. O que temo não escapar é da nossa maneira de pensar e viver a importância do dinheiro e da recuperação do viver bem. Por mais que os mais infelizes sejam cada vez mais infelizes a cada dia.
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Com esta religião e esta explicação do Evangelho, para onde vamos? Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU