08 Abril 2020
Nesta semana, as pessoas nos EUA, e aqui em Nova York em particular, estão sendo alertadas a se prepararem para o período mais difícil e mais letal na luta contra a Covid-19.
A reportagem é de Jamie Manson, publicada em National Catholic Reporter, 07-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu nunca gostaria de afirmar que Deus de algum modo arranjou a liberação do coronavírus neste país para estar em sincronia com as festas judaicas e o calendário litúrgico cristão. No entanto, nesta semana, os judeus começarão a Páscoa, um tempo repleto de rituais, leituras e conversas que relembram as histórias de profundo sofrimento e o contínuo anseio humano por justiça e liberdade. E os cristãos, tendo suportado as semanas de práticas quaresmais, repassam os três atos da história da paixão de Jesus, recordando – ao longo dos dias com liturgias épicas – o seu sofrimento, crucificação e ressurreição. Mesmo aqueles que tenham escassos sentidos do sagrado não podem evitar esse rico simbolismo.
De fato, o que os memes chamam de “a Quaresma mais quaresmal da história” – na qual muitos abriram mão forçosamente de inúmeras fontes de estabilidade, conforto, prazer e alegria – deu lugar à Semana Santa mais angustiante de todos os tempos.
À medida que eu envelheço e fico cada vez mais sobrecarregada com o sofrimento causado pelos seres humanos neste mundo, eu percebo que estou questionando as minhas crenças mais do que nunca. Também acho que um bom número dos meus amigos não acredita mais em alguns dos princípios centrais da fé cristã, particularmente aqueles que se baseiam na narrativa da Semana Santa.
Mas, mesmo quando estou no auge das minhas dúvidas, eu tento me lembrar disto: você não precisa crer na história literal da crucificação, morte e ressurreição para encontrar um sentido nela. Nesta semana, especialmente, e particularmente onde eu moro nos arredores de Nova York, seus temas centrais estão sendo expostos em tempo real.
Para vê-los, você primeiro deve dar adeus à teologia da expiação, que afirma que Jesus se tornou humano, sofreu e morreu uma morte brutal para pagar aquilo que é devido a Deus pelos nossos pecados.
Essa “teoria da satisfação” tem sido difundida na teologia cristã há séculos. É uma ideia que a teóloga e irmã Elizabeth Johnson, das Irmãs de São José, trabalhou brilhantemente para desmantelar em seu livro “Creation and the Cross” [A Criação e a Cruz], no qual ela nos convida a interpretar a crucificação de maneiras novas e profundas. A “teoria da satisfação”, diz ela, é apenas uma interpretação medieval dos eventos do sofrimento e da morte de Jesus.
Johnson argumenta que Jesus veio “trazer boas novas aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, libertar os oprimidos”, como escreveu Marian Ronan em sua resenha sobre o livro no NCR. “Mas a proclamação de Jesus do reino de Deus constituiu um sério desafio para os romanos que governavam Israel durante a sua vida.” Suas palavras e obras “constituíram tamanha ameaça ao injusto poder do império que os governantes crucificaram Jesus para silenciá-lo”.
Jesus também curava os doentes e assumiu riscos radicais como ao tocar em leprosos e ao curar pessoas no sábado. Seu cuidado com o sofrimento também desafiava as autoridades religiosas que estavam mais interessadas na posição social e na proteção pessoal do que em aliviar o sofrimento.
Hoje vemos um drama análogo ocorrendo em nossas estruturas médicas. Enfermeiros, médicos e técnicos de enfermagem estão arriscando a sua saúde e segurança devido à profunda bondade e compaixão sacrificial. Eles estão fazendo o trabalho sagrado de ir ao encontro de uma doença aterrorizante e de acompanhar os doentes que, de outra forma, poderiam se sentir abandonados. Eles estão clamando por suprimentos básicos para proteger suas vidas; estão trabalhando o tempo todo e criando alas improvisadas em tempo real para que outros possam viver.
No entanto, eles estão sendo traídos por autoridades arrogantes como o presidente Donald Trump, que semeia desconfiança e se preocupa muito mais com suas “classificações” e com o modo como essa crise afetará a economia.
Esse cinismo também está exposto nas palavras de seu genro Jared Kushner, que afirmou na semana passada que o equipamento salva-vidas que os nova-iorquinos estão exigindo se baseia em projeções que ele considerava “irreais”.
Trump, Kushner e outros são alimentados pela ganância, pela ignorância e pelo medo da perda do poder. Suas ações injustas estão crucificando dezenas de milhares de pessoas que sofrem com a Covid-19. Muitas vítimas são pobres e estão esmagadas pela desigualdade estrutural, e muitas são negras, perseguidas pelo racismo sistêmico. Todas elas são vítimas das lideranças políticas que ignoraram flagrantemente as advertências dos epidemiologistas e deram as costas enquanto o sistema de saúde público dos EUA era destruído.
Outros milhares sucumbirão a essa cruel doença, e muitos darão seus últimos suspiros sozinhos. Enfrentarão a indignidade de terem seus corpos carregados em caminhões refrigerados, enquanto os transeuntes, em um fascínio horrorizado, tentam tirar fotos.
Suas mortes estão forçando todos nós a confrontarmos a nossa própria morte. Muitos de nós estão discutindo os nossos desejos finais, enquanto outros estão contemplando o que podem estar dispostos a abrir mão, como ceder um respirador, para que outra pessoa possa ter a chance de viver. Todos nós somos assolados por um tipo de luto que nunca conhecemos antes.
Entretanto, mesmo neste momento sombrio, somos informados de que há uma luz no fim do túnel. Em breve, a doença atingirá o seu pico e diminuirá lentamente. Ao contrário de muitas pessoas no nosso mundo que sofrem muito mais, temos motivos para esperar que as nossas vidas, e todos os seus confortos e privilégios criaturais, voltarão ao normal.
Mas a ressurreição não tem a ver com voltar ao normal. Trata-se de transformação. Como vamos mudar depois desse imenso sofrimento e morte? O que vamos aprender?
Será que a nossa experiência de medo, incerteza e impotência transformará a nossa consciência, para que possamos identificar e simpatizar com os refugiados, os indocumentados, os doentes crônicos e os empobrecidos, cujo sofrimento não termina após alguns meses de quarentena?
Será que vamos aumentar a nossa consciência e a nossa gratidão pela estabilidade, segurança, abundância, saúde e lar de que desfrutamos e que frequentemente assumimos como óbvios?
Será que encontraremos uma nova reverência pela nossa Terra que nos sustenta com água, comida e, sim, até papel higiênico?
Será que aprenderemos que o acúmulo não nos dá controle, apenas priva os outros? Ordens de confinamento em todo o mundo reduziram significativamente a produção de carbono. Será que isso nos inspirará a encontrar maneiras de mudar permanentemente os nossos hábitos para salvar o nosso planeta doente?
Já estamos vendo sinais de nova vida. Com o tempo extra que nos foi concedido, alguns de nós estão sendo criativos através de atos simples, mas estimulantes, como cozinhar, cuidar dos nossos lares e estar presente para nós mesmos e para nossos entes queridos.
Alguns de nós estão voltando para a terra e cultivando-a: uma reportagem do programa CBS Sunday Morning diz que, nas últimas semanas, a venda de sementes quase triplicou, e os viveiros estão se esforçando para manter árvores frutíferas e vegetais nas prateleiras.
Quer você acredite ou não na ressurreição física de Jesus, a narrativa de encontrar nova vida e da transformação após suportar a injustiça, o sofrimento e a morte deveria ressoar dentro de nós, particularmente nesta semana e principalmente depois de tudo o que passarmos. No fim, esse ato final na nossa história da paixão da Covid-19 pode ser o mais desafiador.
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Não é preciso crer em Deus para testemunhar uma crucificação hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU