05 Abril 2020
A quarentena induzida pelo coronavírus deveria forçar a Igreja a fazer uma séria reflexão sobre a Eucaristia.
O comentário é de Robert Mickens, publicado em La Croix International, 03-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O mundo inteiro agora está infectado. O coronavírus continua dando a volta ao globo, levando os ritmos habituais da vida e do comércio a uma paralisação quase total.
A pandemia pegou a maioria dos países e suas populações completamente desprevenidos e despreparados. E muitos já estão dizendo que esta crise global nos forçará a repensar radicalmente muitas coisas sobre o modo como vivemos, organizamos a nossa sociedade, conduzimos os nossos negócios, nos relacionamos uns com os outros...
Eles dizem que as coisas nunca voltarão a ser como antes. Teremos que mudar.
Isso inclui as nossas Igrejas também. As nossas comunidades de fé foram pegas desprevenidas, assim como qualquer outra.
E a maioria das lideranças religiosas – especialmente os nossos padres e bispos católicos – ficaram paralisadas no modo como responderam àquele que logo se tornou um confinamento litúrgico.
Eles realmente não tinham nenhuma ideia do que fazer, exceto continuar celebrando a missa por conta própria e depois transmiti-la pela televisão ou ao vivo pela internet, para o resto da Igreja apenas assistir.
Porque é disso que se trata – de algo para assistir. E, embora isso não seja necessariamente tão ruim, certamente não é participar de maneira essencial da celebração da Eucaristia.
Apesar de muitas décadas de missas transmitidas pela TV e pelo rádio, as últimas semanas de liturgias públicas canceladas deveriam deixar muito claro que esse tipo de “participação virtual” precisa ser repensado.
Você não pode ter uma missa virtual, assim como não pode ter um jantar de Ação de Graças virtual. Este último seria extremamente estranho e até absurdo, assim como a primeira está provando o mesmo para muitos católicos, durante estes dias de confinamento litúrgico.
Pense nisso. E se mamãe e papai estivessem em casa sozinhos, mas quisessem preparar um imenso banquete de Ação de Graças e compartilhá-lo pela TV ou transmitindo ao vivo ao resto da família?
Para fazer a analogia funcionar, digamos que os filhos e os parentes que estão participando desse banquete virtual não têm nenhuma possibilidade de preparar a sua própria refeição. Eles só podem assistir enquanto mamãe e papai realizam o ritual da festividade. E então eles assistem a seus pais comerem, enquanto eles não têm nada.
E, para reforçar ainda mais a analogia, os pais exortam fortemente – senão até exigem – que seus filhos participem dessa farsa.
Isso não seria apenas absurdo. Seria cruel.
Pais verdadeiros e amorosos não colocariam seus filhos nessa situação. Mas, mesmo que ousassem, apenas aqueles filhos que cresceram sendo abusados suportariam tal depravação.
Bons pais não privam seus filhos. Se seus filhos não podem comer, eles também não comerão.
Obviamente, a analogia não é exata, porque não estamos falando de uma refeição normal quando falamos da Eucaristia. É uma refeição sacrificial; uma refeição/sacrifício celebrada em torno de um altar/mesa.
O aspecto da refeição da celebração eucarística não pode ser separado do seu aspecto sacrificial. Mas não deve ser minimizado a ponto de ser quase completamente eliminado, assim como é para mais de 99% dos membros da Igreja durante essas missas virtuais.
Somente quem come pode se alimentar. É assim que a Igreja sempre entendeu as palavras de Jesus: “Tomai todos e comei”.
Mesmo quando a comunhão frequente não era praticada, o Quarto Concílio de Latrão (1215) estabeleceu aquele que ficou conhecido como o “dever de Páscoa”, obrigando os católicos a confessarem seus pecados a um padre pelo menos uma vez por ano e a receber a Eucaristia durante o Tempo Pascal.
Esse tempo litúrgico continua até o dia 31 de maio neste ano. E, esperançosamente, até então, os católicos, na maioria dos lugares, poderão começar a celebrar juntos de novo.
Mas, enquanto isso, a missa virtual é realmente necessária ou útil?
O confinamento litúrgico nos mostrou que a Igreja é muito mais centrada no clero do que muitos de nós gostariam de admitir. Também revelou inadequações e até um tipo de esquizofrenia na nossa teologia sobre a Eucaristia.
Ela se encontra entre uma visão legalista/mecânica pós-tridentina dos sacramentos e a compreensão/recuperação do batismo pós-Vaticano II como o sacramento principal que faz de alguém membro não apenas da Igreja, mas também do sacerdócio comum.
Aqueles que são ordenados às Ordens Sagradas são mais apropriadamente chamados de presbíteros. Eles foram organizados para organizar e liderar o culto da comunidade. Mas o caráter sacerdotal é compartilhado por toda a comunidade dos batizados e está presente na assembleia celebrante.
Nossos teólogos e pastores devem discernir com mais atenção e refletir mais profundamente sobre essa realidade. Isso certamente levará a ramificações mais amplas, embora talvez mais sutis, sobre o modo como entendemos e celebramos a Eucaristia.
Foi surpreendente ler um documento que os bispos da região italiana da Úmbria publicaram no dia 31 de março para justificar o fato de os padres celebrarem a missa sozinhos sem a presença de mais ninguém.
“A assembleia participa da celebração, mas não é a protagonista constitutiva do ato sacramental, como, em vez disso, é o ministro ordenado, presbítero ou bispo”, escreveram os bispos.
“Isso claramente não é aquilo que o Povo de Deus precisa ouvir – que eles são adereços estranhos em um drama clerical”, comentou um amigo, que por acaso é um presbítero.
Não está claro quem escreveu o documento dos bispos, mas o autor afirma algumas coisas ainda mais perturbadoras que sublinham a esquizofrenia teológica (e eclesiológica) da Igreja em torno da Eucaristia.
Independentemente disso, os homens que lideram as 13 dioceses localizadas na Úmbria são os principais responsáveis pelo conteúdo.
E é alarmante que um deles seja o presidente da Conferência Episcopal Italiana (o cardeal Gualtiero Bassetti), enquanto outro é ex-secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (arcebispo Domenico Sorrentino).
A pessoa que, de fato, assina e publica o texto é o presidente da Conferência Regional, o arcebispo Renato Boccardo.
Ele é um diplomata papal de carreira e uma antiga autoridade vaticana que se tornou o número dois do Estado da Cidade do Vaticano. Ele também trabalhou no escritório das cerimônias litúrgicas papais por vários anos.
Boccardo escreveu aos padres da sua própria diocese 10 dias antes, expressando sentimentos semelhantes encontrados no documento regional.
“Peço que não negligenciem a oferta cotidiana ‘pro populo’ do sacrifício de Cristo”, escreveu ele.
Não há necessidade de pessoas. O padre oferece o sacrifício em favor delas. E come a refeição sozinho, também…
Os católicos terão que decidir por si próprios como vão rezar e participar dos mistérios sagrados desta Semana Santa e Páscoa. Não há muitos padres ou bispos que serão de grande ajuda, exceto para presidir a velha missa para confinados.
Talvez possamos tirar uma lição de Edith Stein, a convertida judia que se tornou freira carmelita e foi morta durante a Shoá.
Ela sabia o que significava seguir em frente sem a Eucaristia.
No dia 4 de agosto de 1942, ela escreveu estas palavras a partir de um campo de trânsito nazista na Holanda, apenas cinco dias antes de ser morta em uma câmara de gás em Auschwitz:
“Estamos muito calmos e alegres. É claro que, até agora, não houve nenhuma missa e comunhão; talvez isso venha mais tarde. Agora temos a chance de experimentar um pouco como viver puramente a partir de dentro”.
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A missa acabou... mas os abusos clericais continuam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU