22 Setembro 2018
(Foto: Reprodução La Croix International)
Há alguns anos, alguns dos chamados católicos "tradicionalistas", especialmente aqueles dentre o clero, expressaram indignação com o Papa Francisco quando foi relatado que ele decretou silenciosamente que os padres com menos de 65 anos não receberiam mais o título honorário de "monsenhor".
O comentário é de Robert Mickens, jornalista, em artigo publicado por La Croix International, 21-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Foi um débil primeiro passo na tentativa de pôr um fim ao carreirismo eclesiástico e à cultura do clericalismo, tão evidentes na Igreja. Mas foi apenas uma meia medida, na melhor das hipóteses.
Dizem que o Papa queria acabar com essas honrarias de maneira geral, mas enfrentou forte oposição de alguns no Vaticano e de outros na hierarquia da Igreja.
De fato, Francisco cedeu às pressões e concordou que a nova disposição não se aplicaria aos padres que servem na Cúria Romana ou no corpo diplomático da Santa Sé.
Este incidente deve servir como um lembrete de quão difícil será "dizer um 'não' enfático a todas as formas de clericalismo", como Francisco nos diz que devemos em sua recente "Carta ao Povo de Deus".
A carta, que foi publicada no último dia 20 de agosto, identifica o "clericalismo" como um dos principais fatores que permitiram aos padres abusar de jovens e que permitiu que os bispos mantivessem tais crimes em segredo por tanto tempo.
Mas não vamos colocar a culpa apenas nos homens das ordens sagradas. Como o Papa corretamente aponta, não é preciso ser um membro do clero para ser um clericalista:
O clericalismo, seja ele promovido pelos próprios padres ou por leigos, conduz a uma cisão no corpo eclesial que sustenta e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje condenamos.
Ainda assim, não está claro se Francisco compreende plenamente o quão "enfático" e profundo deve ser o "não" a "todas as formas de clericalismo" para que possa erradicá-lo do Corpo de Cristo.
Porque, como o autor e padre laicizado James Carroll notou alguns dias atrás em The New Yorker: "(Francisco) está tristemente nas garras do clericalismo celibatário dominado pelos homens, apesar de criticá-lo."
Infelizmente, Carroll está correto. Francisco está nas garras do clericalismo. E toda a Igreja.
O clericalismo é um gene vítima de mutação para pior em nosso DNA católico. É uma doença que se manifesta bem no topo da hierarquia eclesiástica com a "papolatria" (o culto exagerado e a semidivinização do Papa).
E se manifesta ao longo de toda a estrutura piramidal da autoridade da Igreja, começando em sua base - o seminário, a porta de entrada para uma casta única de homens que se veem separados (como ontologicamente diferentes, especiais, mais santos, etc.) do restante dos fiéis batizados.
Mas o clericalismo não poderia florescer, como claramente tem sido por muitos séculos, sem a conformidade e a cumplicidade dos leigos.
É por isso que o Papa Francisco está novamente certo em reconhecer, como fez em sua recente carta, que "cada um dos batizados deve se sentir envolvido na mudança eclesial e social de que tanto necessitamos" para erradicar o clericalismo.
"É impossível pensar em uma conversão de nossa atividade como Igreja que não inclua a participação ativa de todos os membros do povo de Deus", disse ele.
"Isto é claramente visto em uma forma peculiar de compreender a autoridade da Igreja ... (como é) o caso do clericalismo, uma abordagem que não apenas anula o caráter dos cristãos, mas também tende a diminuir e subvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo colocou no coração do nosso povo", disse o Papa.
Como isso pode ser corrigido? Como pode haver uma "conversão de nossa atividade como Igreja", que se suspeita ser o código do Papa para dizer "reformar nossas estruturas de autoridade eclesial"?
Francisco tem insistido desde o início de seu ministério como bispo de Roma que isso começa com a "reforma da atitude" ou mentalidade.
"As reformas estruturais e organizacionais são secundárias - isto é, elas vêm depois", disse ele em 2013 em sua primeira grande entrevista.
No entanto, mesmo após entrar em guerra contra o clericalismo nos últimos cinco anos e meio, há poucas evidências que mostrem que o Papa mudou dramaticamente a atitude dos clericalistas na Igreja. Com efeito, eles apenas endureceram sua determinação de defender os direitos e privilégios do clero.
Uma das explicações mais abrangentes do clericalismo é oferecida por um padre da Irlanda que foi censurado pelo escritório doutrinal do Vaticano há vários anos.
Aqui estão apenas algumas das características do clericalismo, que ele lista:
É pertencer e se ver como pertencente a um clube exclusivo - masculino, hierárquico e celibatário - que é fechado e reservado, parte de um sistema de privilégio, deferência e poder... O ponto de vista dos leigos não é levado a sério. Os membros da casta clerical, aqueles nos degraus superiores da escada hierárquica, são os que têm o monopólio da sabedoria e do acesso ao Espírito Santo...
O clericalismo prospera no poder e é sustentado por ele. É um forte crente na prestação de contas - mas apenas para cima, não para baixo... Os leigos e o clero comum não precisam ser consultados - e raramente são...
O clericalismo não tem tempo para diálogo e debate. Considera aqueles que falam sobre a renovação na Igreja como perigosos e como tendo uma agenda liberal...
Assim, não deveria ser surpresa que os clericalistas - encontrados tanto entre os ordenados quanto entre os fiéis leigos, em todos os níveis da Igreja e da sociedade - sejam os católicos que se opõem ao Papa Francisco.
Donald Cozzens, padre e ex-reitor do seminário de Cleveland (Ohio), também escreveu extensamente sobre o clericalismo. Ele o chama de "câncer que está aleijando o mundo católico" e afirma que "está tão profundamente enraizado no tecido da nossa Igreja, passada e presente, que precisamos de um cuidadoso exame pré-operatório" antes de podermos removê-lo.
Em um ensaio de 2015, Cozzens descreve o fenômeno assim:
O clericalismo é uma atitude encontrada em muitos (mas não em todos) integrantes do clero, que colocam sua condição de padres e bispos acima de seu status de discípulos batizados de Jesus Cristo. Ao fazê-lo, surge uma sensação de privilégio e direito em sua psique individual e coletiva.
Isso, por sua vez, cria um grupo de elites eclesiásticas que pensam que são diferentes do resto dos fiéis.
Cozzens oferece três passos iniciais para remover a doença ou pelo menos colocá-la em remissão:
1) Os seminaristas devem ser ensinados que a ordenação sacerdotal está enraizada no batismo, não acima ou fora dele;
2) Títulos – até mesmo "Padre" - podem ter seu lugar, mas nunca devem ser impostos; e
3) O celibato sacerdotal obrigatório deve ser "revisitado" porque seus "encargos inerentes... levam alguns integrantes do clero a um senso de direito e privilégio, marcas do clericalismo".
Todos estes são passos importantes. Mas é improvável que eles removam a doença do clericalismo. Para que isso aconteça, medidas mais radicais devem ser tomadas.
Algumas delas exigirão um retorno às práticas e estilos de vida que estavam presentes nos primeiros séculos do cristianismo. E todas as medidas devem refletir uma adesão mais fiel à desafiadora mensagem dos Evangelhos.
Primeiro, toda a essência dos ministérios da Igreja deve ser revista, reconhecendo que os Espíritos Santos distribuem dons de maneira diferente e livre para todos os batizados - incluindo mulheres e homens, tanto os casados quanto os solteiros.
Todo o povo de Deus (e não apenas os bispos) tem o direito e a responsabilidade de discernir cuidadosamente quais de seus membros são chamados a quais ministérios específicos - isso inclui aqueles admitidos nas ordens sagradas.
Em segundo lugar, o sistema de seminário como existe atualmente deve ser abolido. Como muitas outras instituições da Igreja, tornou-se anacrônico, disfuncional e totalmente inadequado para o nosso tempo.
Em terceiro lugar, todas as estruturas que estimulem a ambição para cargos mais altos ou nutram o "carreirismo" clerical precisam ser eliminadas.
Mas não se engane. Isso será combatido com unhas e dentes, ainda que a eliminação de tais estruturas e práticas significasse nada mais do que ser mais fiel às práticas e ensinamentos mais antigos da Igreja cristã.
Nesta área, pelo menos cinco coisas devem ser feitas.
1) Todos os títulos eclesiásticos como Eminência, Excelência, Meu Senhor etc. devem ser abolidos imediatamente.
2) O bispo de Roma não deve ser chamado de Santo Padre. Este é o título da primeira pessoa na Santíssima Trindade e é usado para se referir a Deus na Oração Eucarística na Missa. Ele não deve mais ser usado para se referir ao Papa.
3) A Igreja deve restaurar a antiga prática de “um bispo, uma diocese”. Diz-se que um bispo é casado com sua diocese, e essa supostamente é a justificativa para ele usar um anel. Mas muitos bispos dirigiram até três ou quatro (e mesmo cinco) dioceses diferentes em sua "carreira".
Para ser mais fiel às tradições mais antigas da Igreja, uma pessoa deve ser bispo para apenas uma diocese e nunca ser movida. Isso teria um efeito imediato na redução do carreirismo.
4) Nesta mesma luz, o cargo de bispo auxiliar ou titular deve ser abolido.
5) O Colégio Cardinalício, que é de invenção humana e surgiu de um contexto social e eclesial que não existe mais, deve ser abolido.
Não há outra instituição na Igreja Católica que incorpore mais todas as características do clericalismo do que esse corpo de elite. Não é de se admirar que o Papa Francisco tenha se recusado a nomear mulheres como cardeais com base em sua crença de que isso apenas as "clericalizaria".
Isso tudo é apenas um sonho? Poderia ser.
Mas o próprio fato de que isso pareça sonho é um triste testemunho do quão arraigado o clericalismo se tornou dentro da fibra da Igreja. Porque a maioria dos costumes, instituições e hábitos que o fomentam são absolutamente não-essenciais à natureza da Igreja ou à expressão da fé cristã.
O fato de acharmos tão difícil admitir isso é um claro sinal de que a Igreja precisa seriamente de uma reforma.
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O quão a sério o Papa Francisco está levando a erradicação do clericalismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU