05 Agosto 2017
Também este ano se renova a tradição, dentro do Festival dos Dois Mundos, dos “Sermões em Spoleto". O ciclo, que ocorreu de 1º de julho até o dia 15, foi dedicado “à oração de Jesus: o Pai nosso”.
Renato Boccardo, arcebispo de Spoleto-Norcia, encerra a reflexão sobre a oração do Pai Nosso, com o tema “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. “É nos momentos de prova que o homem se conhece até o fundo e mede a sua força interior”. O texto foi publicado por Avvenire, 15-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Pai Nosso desenvolve-se num crescendo de intensidade e termina quase com um grito: "Não nos deixeis cair em tentação." Pedimos para não cair na tentação, não ter nenhuma tentação. Porque a tentação faz parte do homem. Já o dizia São Paulo: "a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis" (Gal 5, 17).
A expressão "Não nos deixeis cair em tentação", no entanto, continua a suscitar surpresa. A tradução usual, de fato, sugere que Deus poderia nos induzir voluntariamente em tentação, enquanto a Escritura afirma: "Ninguém, ao ser tentado, diga: ‘Sou tentado por Deus’; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta" (Tiago 1: 13). [...] Deus pode causar, mesmo que indiretamente, nosso mal? Não, Deus não tenta ninguém (cf. Tiago 1, 13), mas doa a sua graça para aqueles que precisam enfrentar a tentação e a prova. Após ter lembrado severamente as faltas do povo de Israel no deserto, Paulo conclui: "Deus (...) não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar, mas, quando forem tentados, ele lhe providenciará um escape, para que o possam suportar" (1 Cor 10, 13). A oração do Pai Nosso, portanto, refere-se às várias solicitações para o mal, para aqueles escândalos tão fortemente condenados pelo Evangelho (Mt 5, 29-30; 18,6-9) e às provas da existência que possam colocar em perigo a fé. Porque apenas com a oração podem ser vencidos os maus espíritos (cf. Mt 17, 21; Mc 9, 29). Devemos, portanto, ver o demônio em todos os lugares? [...] Seria um álibi muito conveniente para que nos esqueçamos que a causa normal pelas nossas falhas está em nós. "Do coração, na verdade - diz Jesus -, procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicações, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias" (Mt 15, 19). Só o homem é responsável pelo mal que faz e que através dele entra para o mundo. Os pais do deserto relembram: "Não culpe nem, Deus nem o diabo, nem o mundo, nem a carne com as suas paixões, mas culpa a ti mesmo e apenas a ti mesmo!"
Devemos perguntar, portanto, pela purificação do coração. Tomás Spidlík, um dos maiores especialistas da espiritualidade oriental, em seu livro A Arte de Purificar o coração, enumera cinco estágios de penetração da malícia no coração humano: 1) a sugestão, 2) o colóquio, 3) o combate, 4) o consentimento, 5) a paixão. A "sugestão" é a primeira imagem gerada pela fantasia, a primeira ideia, o primeiro impulso: se imediatamente a colocarmos de lado, ela se vai exatamente como veio. Mas o homem normalmente não faz isso, deixa-se provocar em vez disso e começa a refletir. É o "colóquio": um pensamento que, muito cultivado, instala-se no coração e não pode mais ser facilmente expulso. Nesse estágio, no entanto, o homem ainda é livre para não concordar. "Ele pode e deve sair vitorioso dessa luta, mas os custos são muito altos": é o "combate". O "consentimento" é dado quando se decide realizar aquilo que o pensamento perverso sugere: é o verdadeiro pecado, que, embora não seja realizado externamente, permanece no interior. A "paixão" "é o último estágio, o mais trágico. Aqueles que sucumbem aos maus pensamentos, muitas vezes enfraquecem, gradualmente, seu caráter. O resultado é uma inclinação constante para o mal que pode se tornar forte a ponto de ser muito difícil resistir-lhe".
Explica o Papa Francisco: "No sacramento da Reconciliação Deus perdoa os pecados, que são realmente apagados; no entanto, a marca negativa que os pecados deixaram no nosso comportamento e nos nossos pensamentos permanece. Mas a misericórdia de Deus é mais forte inclusive que isso. Torna-se indulgência do Pai que através da Noiva de Cristo (a Igreja) alcança o pecador perdoado e o liberta de qualquer resíduo da consequência do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor ao invés de recair no pecado".
É claro que na tentação precisamos da ajuda de Deus. Os nossos recursos são insuficientes. Assim, o essencial é saber como se comportar. Jesus nos mostra o caminho: "Vigiai e orai, para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mc 14, 38). Essa vigilância – que se exercita com a oração e o discernimento dos desejos que nos agitam – é a nossa colaboração necessária à ação de Deus. Santo Agostinho é inequívoco: "Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti." [...] Como pode Deus, que é o pai de todos, permitir que seus filhos caiam? E é profundamente verdadeiro. Deus não poupou Jesus da tentação. Nem sequer o fará por nós. Até parece que ele "usa" a tentação para a nossa salvação.
Então, quem é o autor da tentação? O Maligno, o mau, o malvado, o diabo, que é a potência personificada do mal. O apóstolo João confirma essa identificação falando da antiga serpente chamada Diabo e Satanás, que engana todo o mundo (cf. Ap 12: 9). O plano de Deus é salvar, não enganar ninguém. Quem cumpre essa manobra perversa é o demônio. É um mistério que nos escapa, mas que a tradição cristã tem tentado expressar se não explicar. Orígenes escreveu no século II: "Para algo a tentação serve". E Santo Agostinho assim explica: "A nossa vida neste exílio não pode ser sem provas, e o nosso progresso é conseguido através da tentação. Ninguém é capaz de se reconhecer até que seja tentado; da mesma forma que ninguém poderá ser coroado senão após a vitória, uma vitória que não existiria se não houvesse a luta contra um inimigo e as tentações". A Imitação de Cristo acrescenta: "Há duas maneiras em que eu visito os meus escolhidos: a tentação e a consolação. Há duas lições que eu lhes dou todos os dias: uma, repreendendo os seus vícios; a outra, instando-os a reforçar a sua virtude "(III, 2).
"Aquele que não tem experiência, pouca coisa sabe", diz Eclesiástico (34, 10). Como o ouro no crisol é provado pelo fogo, assim é necessário que a nossa preciosa liberdade seja posta à prova para que conheça seus limites e abra-se plenamente para o bem que lhe é proposto e que é o próprio Deus. Toda tentação, portanto, permite ao homem se conhecer. Satanás, de fato, não consegue nos atacar a não ser onde deixamos uma porta aberta. A nossa resistência à tentação, ao contrário, revela a nossa força interior. E assim a tentação torna-se um momento fundamental de autoconhecimento. Por isso, entre os primeiros ditados de Antão, o pai dos monges, há este: "Ninguém sem tentações poderá entrar no reino dos céus. Suprime as tentações e ninguém será salvo". A tentação é, em suma, o momento da verdade. Na esteira de Inácio de Loyola, o Papa Francisco afirma que “o lugar da tentação é o lugar da graça. (...) O coração da tentação reside na combinação fidelidade-infidelidade. Deus nosso Senhor quer uma fidelidade que se renove a cada prova". A tentação figura, portanto, como a "passagem necessária" na construção da liberdade, que é reforçada através das escolhas que fazemos. A nossa relação com Deus não nos preserva do combate humano e espiritual, mas nos doa na fé a certeza de sairmos vencedores com Cristo. São Pedro escreveu aos primeiros cristãos: "Nisso vocês exultam, ainda que agora, por um pouco de tempo, devam ser entristecidos por todo tipo de provação. Assim acontece para que fique comprovado que a fé que vocês têm, muito mais valiosa do que o ouro que perece, mesmo que refinado pelo fogo, é genuína e resultará em louvor, glória e honra, quando Jesus Cristo for revelado"(1 Pedro 1, 6-7).
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A tentação é a hora da verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU