03 Dezembro 2018
É hora de repensar a crucificação, afirma a teóloga estadunidense Elizabeth Johnson.
A reportagem é da revista U.S. Catholic, vol. 83, n. 12, de dezembro de 2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O cuidado com a criação muitas vezes fica muito embaixo na lista de prioridades da maioria dos cristãos, sendo que muitos dizem até que o zelo ambiental não é um chamado cristão. Há algo profundamente errado nisso, diz Elizabeth A. Johnson, uma das principais teólogas da Igreja dos séculos XX e XXI.
O problema está no modo como pensamos sobre a redenção oferecida por Deus, que ela aborda em seu último livro, Creation and the Cross: The Mercy of God for a Planet in Peril [A Criação e a Cruz: a misericórdia de Deus por um planeta em perigo] (2018, Ed. Orbis).
“O objetivo do livro era expandir a redenção na nossa oração e na nossa fé para incluir todas as criaturas, que estarão conosco transfiguradas em plenitude”, diz Johnson. “Assim, nós agimos eticamente em relação à Terra como resultado disso e trazemos a Terra para a nossa narrativa.”
A fim de fazer isso, ela precisou recuar 1.000 anos, até quando a teologia começou a ignorar a criação, a saber, com o Cur Deus Homo (“Por que Deus se fez homem”), um tratado do arcebispo de Canterbury do século XI, Anselmo. Em Creation and the Cross, Johnson modela o diálogo entre Anselmo e seu estudante Boso com uma conversa entre ela e Clara, uma figura que representa as pessoas que Johnson encontrou ao longo dos anos. Juntos, eles “desatrelam” teologicamente a misericórdia divina da cruz e escavam a Escritura em busca de evidências da abundante misericórdia de Deus por toda a criação.
“É antigo, é bíblico e básico”, diz Johnson. “Não é algo que falte completamente, mas aqui no Ocidente nós simplesmente não atentamos a isso, e é hora de fazê-lo. Urgentemente.”
O que a cruz tem a ver com a criação?
A teologia da redenção tem se focado principalmente em nós como humanos. Mas o Papa Francisco, na Laudato si’ (Sobre o cuidado da casa comum), escreve: “Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer” [n. 33].
Esse é um sentimento muito forte. No fim da Laudato si’, Francisco escreve: “243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (...) onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar” [n. 243].
Quando comecei a pensar sobre isso, voltei para a Escritura. Ao longo de toda ela, há narrativas sobre o amor de Deus pelo mundo natural e sua resposta a Deus. Até mesmo no Salmo 36, onde se diz: “Socorres a homens e animais, Ó Deus” [aqui e seguintes: trad. Bíblia Pastoral]. Eu disse a mim mesma: “Por que não sabemos disso?”. A ausência dessa consciência, portanto, coloca o cuidado com a criação muito embaixo em todo o tipo de pesquisa sobre aquilo com que os cristãos se importam.
Nós não transformamos os animais e o mundo natural como parte da nossa narrativa de salvação. Nós não os incluímos naquilo que Cristo fez. Sabemos que Deus criou tudo no início, mas depois eles desaparecem. Tudo é totalmente sobre nós. Então, eu comecei a escrever um livro ambicioso para nos levar a considerar toda uma nova teologia da redenção, começando do zero e trazendo à tona aquilo que é crucial para o futuro da vida neste planeta.
Quando eu dava palestras sobre essa ideia, em todos os lugares que eu ia, alguém inevitavelmente dizia: “Você está realmente errada sobre tudo isso, porque nós fomos salvos pela cruz, e Jesus morreu para nos salvar dos nossos pecados”.
Alguém, em algum lugar, deu muito boas aulas de catequese, porque todos sabem que Jesus morreu para nos salvar dos nossos pecados. Isso está em todas as liturgias e em todas as nossas orações na missa. Essa ideia de que a salvação ocorre através da cruz para nos salvar e nos perdoar dos pecados tem um verdadeiro apego sobre a nossa imaginação coletiva. Mas isso reduz seriamente o significado da redenção na Bíblia judaica e no Novo Testamento.
Então, eu comecei a vasculhar por aí e o que eu descobri foi que essa ideia realmente se consolidou no Ocidente graças à teoria da satisfação de Anselmo sobre a expiação, no século XI.
O que é a teoria da satisfação de Anselmo sobre a expiação?
É a ideia de que Jesus teve que morrer uma morte sangrenta e horrível na cruz a fim de nos salvar dos nossos pecados, porque Deus foi ofendido pelos nossos pecados e precisava receber uma “satisfação”, precisava receber uma compensação a fim de nos perdoar. A honra de Deus estava em jogo.
Como Anselmo chegou a essa ideia?
De maneira muito simples, pelo modo como todos nós chegamos às nossas ideias: a partir da sua própria experiência no seu próprio mundo. Anselmo vivia em uma sociedade feudal, onde não havia forças policiais nem exércitos. A palavra de um senhor era lei, e isso mantinha a ordem civil. Se você rompesse uma lei que perturbasse a ordem da sociedade em que você vivia, você tinha que devolver algo ao senhor a fim de restaurar essa ordem. Essa compensação era chamada de “satisfação”. Você tinha que dar satisfação quando você rompia uma lei, a fim de restaurar a honra do senhor, sobre a qual toda a tranquilidade cívica repousava.
Anselmo tomou esse arranjo político e o tornou cósmico. Ele disse: “É assim que o universo funciona, e Deus é o senhor do mundo. O pecado viola a palavra de Deus e rompe a lei de Deus. Temos que pagar algo para restaurar a ordem do universo”.
Quando Anselmo é questionado: “Por que Deus não pôde simplesmente dizer: ‘Eu te perdoo?’”, ele disse: “Isso não restauraria a ordem do universo, porque não estaríamos retribuindo a honra que é devida a Deus”. É assim que ele estabelece o dilema de que os humanos devem pagar a Deus pelos nossos pecados. Mas nós não podemos fazer isso, porque Deus é infinito, e nós, humanos, somos apenas finitos. Nada infinito pode vir de nós.
Aqui, estamos nesse impasse. Como Anselmo afirmou, “só nós devemos compensar, mas somente Deus pode”. Então, Deus envia o seu filho, que é divino, para assumir a nossa obrigação.
Aqui está a última parte da teoria: Jesus Cristo é sem pecado e, portanto, não merece morrer. Mas os humanos merecem, porque pecamos. Se Jesus tivesse simplesmente vivido a sua vida de pura obediência a Deus e, depois, fosse levado ao céu sem passar pela morte, a dívida não seria paga, porque cada pessoa deve obediência e honra a Deus.
Então, Jesus morreu livremente uma morte violenta na cruz, a fim de compensar algo a Deus, que era devido a Deus, mas que não podíamos pagar de volta. Jesus compartilha essa satisfação com todas as suas irmãs e irmãos que são pecadores, e é assim que todos nós somos salvos.
O que há de errado com essa teoria?
A teoria da satisfação torna a morte de Jesus necessária. Mas ninguém tem que morrer para que Deus seja misericordioso. Isso vai completamente contra o ensinamento de Jesus nos Evangelhos. Veja a parábola do filho pródigo, em que um pai acolhe de volta o filho que o desonrou, gastando metade da sua fortuna. Quando o filho volta, o pai sai correndo, abraça-o e dá uma festa. Misericórdia completa. De acordo com a teoria de Anselmo, esse pai deveria ter dito: “Agora vá para o campo e trabalhe por vários anos, até que você pague o que me deve”.
Anselmo estava tentando dar sentido à cruz para as pessoas que faziam perguntas. Ele fez isso convocando o sistema político do seu tempo. Mas isso vai muito contra os Evangelhos. Pessoas, incluindo Tomás de Aquino, criticaram Anselmo por tornar necessário que Jesus fizesse isso, por tirar a liberdade de Deus de ser misericordioso.
Na mesma época da história, começamos a ver o sacramento da penitência entrando em cena. É assim que você pode receber um pouco dessa satisfação que Cristo venceu na cruz: arrependendo-se dos seus pecados e fazendo penitência. Então, a satisfação se conectou com os sacramentos, com a prática na Igreja e na Eucaristia. As orações litúrgicas, então, foram escritas com a ideia da satisfação. E isso se conectou com um gigantesco número de sermões.
Em outras palavras, a ideia da satisfação avançou muito rapidamente por todos os cantos e recantos do modo como os católicos acreditavam e viviam a própria fé.
Anselmo deixou de fora a ressurreição?
A primeira vez que eu ensinei o Cur Deus Homo de Anselmo, eu cheguei ao fim e pensei: “Eu acho que ele não mencionou a ressurreição”. Voltei e não a encontrei em lugar algum. Com certeza, tudo tem a ver com a morte de Jesus, porque esse foi o pagamento.
Se você comparar isso com os testemunhos da experiência da ressurreição no Novo Testamento, a morte foi um desastre, não o ponto central. Estava tudo acabado para os seus seguidores. Quando os discípulos foram para Emaús, eles disseram: “Nós esperávamos que ele fosse o escolhido, mas estamos voltando para casa, porque ele não era”.
Se a ressurreição não tivesse acontecido, se eles não tivessem experimentado o Cristo ressuscitado, não haveria cristianismo. Se a morte de Jesus não resultasse em algum novo ato da parte de Deus para trazer à tona a vida a partir dessa tragédia, não haveria cristianismo. Mas a ressurreição é acidental no tratado de Anselmo.
Quando você olha para os nossos tempos litúrgicos, quando você chega à Semana Santa e ao Tríduo Pascal, a Vigília Pascal está lá em cima, é a liturgia mais alta do ano. Tudo tem a ver com o que Deus fez diante dessa violência horrível. Deus a superou. Sem isso, não há nenhuma boa nova cristã.
O que a Escritura tem a dizer sobre a redenção divina?
Em todo o Antigo Testamento cristão – as Escrituras judaicas –, assim que você começa a fazer a pergunta, isto lhe aparece claramente: Deus é o redentor misericordioso do mundo inteiro. O Deus misericordioso que liberta os escravos, ama os animais e caminha com o povo em seus problemas é o Deus do Antigo Testamento. Em Êxodo 34, quando Moisés está no Monte Sinai, ele encontra Deus, que diz: “O Senhor, o Senhor! Deus de compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor e fidelidade”.
Essa frase e esses adjetivos se repetem inumeráveis vezes nos Salmos e também nos profetas. O biblista Walter Brueggemann chama esse texto de “um credo de adjetivos sobre o caráter de Deus”.
“Deus de compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor e fidelidade”: uma e outra vez, esse é o Deus da história bíblica que o povo judeu continua apresentando ao mundo durante séculos de sua própria experiência de vida, história, tragédia e novamente tragédia. Esse é o Deus em quem Jesus acreditou.
O que a vida – e não apenas a morte – de Jesus diz sobre a misericórdia de Deus?
Se Anselmo está certo, precisamos apenas de um capítulo de cada Evangelho, certo? Toda a vida de Jesus – a maneira como ele pregava, curava, defendia aqueles que estavam às margens, entrava em conflito com os que estavam no poder e tentava viver fielmente aquilo a que ele estava sendo chamado em seu próprio ministério profético –, é isso que o leva à cruz.
São Oscar Romero, Martin Luther King e algumas das mulheres de El Salvador viveram esse tipo de vocação – e não apenas cristãos. O poder do Estado oprime as pessoas enquanto estamos conversando. Olhe para todos os lugares em que estão prendendo jornalistas. Um jornalista poderia se afastar e dizer: “Tudo bem, eu não vou contar essas histórias de opressão”, mas eles as contam e acabam na cadeia – ou assassinados.
O que temos no Novo Testamento é um ministério que brilhou como um meteoro. Foi muito curto, um ano de acordo com Mateus, Marcos e Lucas; três anos de acordo com João. Jesus irrompeu da carpintaria depois de ser batizado por João e começou esse ministério.
As pessoas apenas se reuniam, porque o que ele dizia tocava. Elas sabiam em seus corações que era isso que elas procuravam. Era uma boa notícia. Havia alegria irrompendo aonde quer que ele fosse: todas as parábolas e o modo como ele compartilhava a mesa e a companhia de pecadores e prostitutas e dizia às prostitutas que elas iriam para o céu à frente daqueles que estavam encarregados da lei.
Todas essas coisas são muito radicais à sua maneira. Elas apresentam, de fato, o roteiro para a vida cristã: cuidar do próximo e não apenas da pessoa da sua família que você ama, mas também do estrangeiro e até do inimigo.
Se você deixar de fora a vida de Jesus, tudo isso será varrido. Se tudo o que você faz é focar na cruz e no sofrimento, a vida cristã desaparece.
Jesus pregou a redenção para toda a criação?
Deixe-me colocar desta forma: o Novo Testamento não fala muito, nem Jesus, sobre toda a criação, porque os primeiros cristãos apenas assumiram a teologia judaica da criação e o fato de que toda a criação será salva. Em outras palavras, você não precisa reinventar a roda quando essa já é toda a sua tradição.
O que Jesus fazia sempre que falava sobre a criação era mostrar que ela era o recipiente do cuidado amoroso e misericordioso de Deus.
São especialmente aqueles textos sobre os pardais, os passarinhos que caem no chão morto [cf. Mateus 10, 29]. Você podia comprar dois desses passarinhos por alguns trocados, segundo Evangelho de Mateus. Nem mesmo uma criaturinha tão inútil e sem valor cairá no chão sem que o seu Pai celeste o saiba. Depois, no Evangelho de Lucas, nenhum deles é esquecido aos olhos de Deus.
Na própria abordagem de Jesus, ele é muito judeu ao ver tudo incluído no Deus Criador que tudo fez. Deus não vai abandonar a criação que ele fez e amou, mas vai vê-la até o fim, até mesmo para além da morte. Os profetas descrevem como será a nova criação: os desertos florescerão, e toda a natureza florescerá.
Jesus nunca pregou sobre isso; ele apenas o assumiu. Ele tomou isso como evidente. Essa era a sua fé.
Então Jesus não foi um sacrifício pascal?
Uma das maneiras pelas quais os discípulos tentaram entender a morte de Jesus foi através do sacrifício dos cordeiros no templo. A conexão entre a morte sangrenta e o sacrifício dos cordeiros era outro modo para interpretar a morte de Jesus. Quando os judeus sacrificavam cordeiros no templo, eles achavam que estavam dando satisfação a Deus? A resposta é não. Mesmo que um animal seja sacrificado, isso não compensa a Deus. As pessoas sacrificavam frutas, as primeiras de sua colheita. Eles sacrificavam grãos, sacrificavam incenso e assim por diante. Havia quatro ocasiões diferentes em que esses sacrifícios eram feitos.
Levar algo para o templo e sacrificá-lo significava, originalmente, compartilhar com Deus novamente, em gratidão, algo que Deus mesmo lhe dera. Há, principalmente, uma ação de graças que acontece.
Às vezes, se alguém cometesse um pecado e quisesse se acertar com Deus, levaria aquilo que se chamava de “oferta pelo pecado”. O que você estava fazendo era tentar, de certa forma, “resetar” a sua relação com Deus, já que você a havia rompido. Não era que Deus precisasse ser aplacado dessa maneira, mas você precisava pedir desculpas.
É muito semelhante, à sua maneira, à teologia do sacramento da reconciliação. Contar seus pecados ao padre, pedir desculpas e fazer uma penitência não torna Deus misericordioso. Deus já é misericordioso. A reconciliação é algo que nós fazemos como seres humanos para reencenar o caminho de volta à nossa relação com Deus.
É uma “reconsagração”, uma “rededicação”, voltar novamente ao caminho certo nessa relação. É uma coisa humana. Não é necessário mudar a mente de Deus da raiva à misericórdia.
O que você quer dizer quando diz que a ressurreição de Jesus cria um novo futuro para toda a criação?
É preciso começar dizendo que não se pode imaginar a ressurreição. E o problema quando se tenta imaginá-la é que se entra em um beco sem saída impossível. Nenhum de nós morreu e foi capaz de voltar e contar ao restante de nós a esse respeito. É um futuro que está envolto em escuridão. Como diz Paulo, “o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam”. Não podemos imaginar como é não estar vinculado ao tempo e ao espaço, quando vivemos em nossos corpos neste planeta.
Imagens de luz ou da irrupção de uma nova vida das flores são boas metáforas. Algumas pessoas acham muito valioso pensar na lagarta que se transforma em uma pupa, entra naquele estágio de pupa, desintegra-se totalmente e, então, emerge como borboleta. É o mesmo inseto, mas você nunca saberia disso. Completamente diferente, não apenas na sua aparência, mas também naquilo que ele pode fazer. A borboleta pode voar. A ressurreição é assim.
Acreditar na ressurreição não é acreditar em um milagre científico. É acreditar em Deus. É um ato de esperança no Deus que criou você e todos os outros, e o tudo mais, que ainda tem o amor e o poder para recriar, até mesmo quando a morte tirou a única vida que você conhece.
Quando morremos, não somos aniquilados, porque Deus ainda está lá. Existe mais vida. Os discípulos experimentaram isso com a ressurreição de Jesus, que eles achavam que tinha ido embora para sempre. Ele está com eles sempre quando dois ou mais estão reunidos. Ele está no estrangeiro que está com fome ou com sede. Ele está na Eucaristia. Ele está.
Existem todos os tipos de padrões da presença de Cristo, fluindo através do poder do Espírito, avançando através do tempo, desde que isso aconteceu no primeiro século. A boa notícia é que Deus é um Deus de luz e que ama a carne, e sabe o que é morrer, e está acompanhando cada criatura através da morte, com a esperança de mais.
Paulo usa uma boa metáfora em 1 Coríntios 15, em que ele diz que, quando você planta uma semente, o que você obtém no fim, em termos de grão, parece muito diferente, e, a fim de que aquela semente produzisse aquele grão, ela teve que morrer. Ela tem que se desintegrar e se abrir, e o seu interior tem que lançar raízes e germinar um broto, e depois você consegue essa coisa nova. É a mesma criatura, mas está muito transformada. Quando você “planta” o corpo de alguém quando morre (essa é a analogia dele), ele passa por uma transformação, e o que Deus traz à vida é transformado. Especialmente na morte.
Essa é a questão. E devemos cuidar de todas as vidas, reconhecendo o amor de Deus por toda a criação. Esse é o ponto central do meu livro. No último capítulo, eu digo que, quando dizemos “nós” nas nossas orações, o “nós” não diz respeito apenas aos católicos, nem apenas aos humanos, mas também a todas as criaturas vivas.
Como podemos mudar o nosso pensamento em relação a uma teologia da expiação?
Em vez da teoria da satisfação, vejamos a salvação em termos de acompanhamento. No fim do primeiro século, as pessoas chegaram à conclusão de que Jesus, como visto no Evangelho de João, era como se o Deus de misericórdia compassiva e cheia de graça houvesse se unido pessoalmente à carne do mundo, vivido entre nós e levado à morte. Ele é o Emanuel, o “Deus conosco” ou, como afirma João, “o Verbo que se fez carne”.
Portanto, aquilo que passamos por meio da agonia e do sofrimento não é desconhecido por Deus. Deus, que criou tudo, escolheu se unir ao sofrimento do mundo, submeter-se a ele e saber o que isso significa a partir de dentro.
Todo o sentido de dizer “o Verbo se fez carne” é expandir isso para além dos humanos. A carne percorre todo o Antigo Testamento para descrever tudo o que está vivo, incluindo os animais e até mesmo a vegetação. Quando os Salmos falam de toda a carne, eles se referem a todas as criaturas vivas.
O Verbo se fez carne. Na teologia, estamos falando hoje em “encarnação profunda”. A encarnação não significa que o Verbo de Deus se tornou um ser humano, mas sim que o Verbo de Deus se tornou carne, que é uma categoria mais ampla identificada com toda a vida que vive, é bela e depois sofre e morre. Há muita teologia se desenvolvendo a partir da ideia de que Deus está com toda criatura que sofre e morre.
O Papa Francisco também afirma isso na Laudato si’. Quer a criatura viva apenas alguns minutos ou uma longa vida, elas pertencem a Deus, e Deus está com elas. Isto é o acompanhamento: a presença de Deus com todos os seres em sua vida e em sua morte, com a esperança de que há algo mais.
Não há nada realmente radical nessa ideia. Temos apenas que situar isso nesse marco em que toda a criação é redimida em Cristo.
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Ninguém precisava morrer pelos nossos pecados. Entrevista com Elizabeth Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU