08 Mai 2018
Elizabeth A. Johnson é a ilustre professora de teologia da Fordham University e uma das teólogas católicas mais proeminentes da última geração. Ela é ex-presidente tanto da Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos e da Sociedade Teológica Estadunidense, de nível ecumênico.
A reportagem é de Charles C. Camosy, publicada por Crux, 03-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Natural do Brooklyn, ela atuou como teóloga no Diálogo Luterano-Católico dos Estados Unidos (1984-1991); como consultora da Comissão Episcopal sobre as Mulheres na Igreja e na Sociedade dos bispos dos Estados Unidos; como teóloga para o diálogo promovido pelo Vaticano entre ciência e religião e no congresso ecumênico promovido pelo Vaticano sobre Cristo e as religiões mundiais; e como membro do comitê central da Common Ground Initiative, iniciada pelo cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, para reconciliar grupos polarizados na Igreja Católica.
Johnson está se aposentando neste ano e conversou com Charles Camosy sobre sua carreira.
É realmente difícil acreditar que você está se aposentando. Praticamente desde que eu conheci a teologia acadêmica, eu penso em você como um sujeito importante e ativo. Quais são seus pensamentos ao chegar ao fim de sua carreira acadêmica formal?
Olhando para trás ao longo dos anos, os pensamentos do meu coração estão cheios de gratidão: gratidão pelo apoio da minha comunidade religiosa; gratidão pelo ambiente de uma boa universidade; gratidão pela rede mundial de ótimos colegas e amigos; e, acima de tudo, gratidão pela oportunidade, dia após dia, de buscar a vida da mente, que eu amo.
Através do ensino, da pesquisa, da escrita e das palestras públicas, tenho me empenhado na antiga tarefa da “fé em busca de entendimento”, como Anselmo definiu a teologia, ou da reflexão sobre a práxis à luz da Palavra de Deus, como diz Gutiérrez, que significa pensar sobre o sentido da fé para os nossos dias. Ouvindo as perguntas das pessoas, analisando situações de sofrimento social, lidando com fontes sagradas, oferecendo interpretações e extraindo implicações para a ação correta e a oração: cada dia trouxe uma centelha de luz para a minha vida, porque o cerne daquilo que estou pensando é profundamente bonito, ou seja, o amor de Deus pelo mundo.
Antes de nos concentrarmos tanto no fim, por que não nos concentramos um pouco no seu início? Qual era a sua relação com a Igreja quando você estava crescendo?
No bairro onde eu cresci, no Brooklyn, nos anos 1950, a Igreja estava simplesmente lá, integrada na vida de família, na escola e nos amigos. Ela moldava a semana. O domingo era um dia de grandes cafés da manhã depois da missa das crianças, em que meu pai cozinhava, e depois carne assada no fim do dia preparada pela minha mãe. E ela moldava o ano, incluindo as festividades do Natal e os sacrifícios da Quaresma. Eu amava os itens materiais ao redor da missa (velas, flores, incenso, música), e ficava bastante impressionada com o mistério daquilo que o padre fazia de costas para nós no altar.
Uma história pode dar uma ideia geral. Fomos ensinados sobre as indulgências plenárias e encorajados a obter tais bênçãos pelas pobres almas do purgatório que não tinham mais ninguém para rezar por elas. Um ano depois da escola, no Dia de Finados, eu reuni alguns dos meus irmãos e amigos da vizinhança e os levei para a igreja. Juntos, rezamos seis Pai-Nossos, Ave-Marias e Glórias, obtendo, assim, um total de oito indulgências plenárias e oferecendo-as às almas mais abandonadas do purgatório. Seguindo as regras que diziam que você só podia receber uma indulgência por pessoa em cada visita, eu levei as crianças para fora da igreja para uma volta ao redor da quadra. Entrando de novo na igreja, repetimos as orações; e depois de novo, uma terceira vez. Antes do jantar, havíamos libertado 24 almas do purgatório. Isso é muito poder para se dar a uma menina de 12 anos de idade.
Acho que o ensinamento atual da Igreja sobre uma opção pelos pobres segue essa mesma linha de pensamento. Em meu próprio trabalho, eu escrevi que, se a teologia não beneficiou de algum modo as pessoas mais ameaçadas – que poderiam ser as mulheres negras pobres com seus filhos dependentes em situações violentas –, ela não cumpriu seu propósito.
Então você saiu de um contexto bastante tradicional. Mas, como alguns podem não estar cientes, não seria justo dizer que, embora você tenha pressionado a margem de crescimento da teologia católica, você nunca deixou totalmente esse lugar tradicional? Você sempre defendeu que a doutrina é importante e fundamentou seu trabalho na tradição.
Na minha própria experiência, eu não sinto uma forte dicotomia entre a “margem de crescimento” e o “lugar tradicional”, como se fosse preciso escolher entre eles. Talvez seja porque eu comecei os estudos de pós-graduação em teologia dois anos após o encerramento do Concílio Vaticano II.
A empolgação era palpável. A Igreja estava mudando diante dos nossos olhos. Em vez de lidar com uma tradição estática, estávamos lidando com uma tradição viva, que queria estar em diálogo com o mundo moderno. Isso afetou o modo como a teologia seria feita. Formulações anteriores poderiam ter sido adequadas para seu próprio tempo, mas a tarefa agora era interpretar as mesmas boas novas de novo, para torná-las relevantes e atraentes. Esses anos de formação afetaram tudo o que fiz desde então.
Você escreveu muitos livros amplamente lidos, mas talvez seja mais conhecida por She Who Is: The Mystery of God in Feminist Theological Discourse [Ela que é: o mistério de Deus no discurso teológico feminista]. Na minha opinião, esse é um exemplo clássico da sua obra que vai além das fronteiras, mas, mesmo assim, se fundamenta profundamente na tradição e na doutrina. De fato, de um certo ponto de vista, o livro tenta conservar as categorias teológicas tradicionais.
A categoria central, nesse caso, é o Deus inefável. As religiões ao longo do tempo e em todo o mundo hoje refletiram sobre a presença desse mistério. A tradição cristã fez isso com tanta ênfase em Deus como Pai que o santo mistério do divino se perdeu. Deus é entendido literalmente como um homem dominador com poder absoluto, amoroso, mas que exige obediência.
Quando as mulheres começaram a teorizar, isso foi considerado inadequado e até mesmo opressivo. Minha sensação era de que não precisávamos reinventar a roda e criar uma nova divindade, mas poderíamos reinterpretar a narrativa cristã do Deus trinitário de uma maneira mais inclusiva. O método foi o de pôr a sabedoria do passado a serviço do presente, com a convicção de que Deus se move na história, acompanhando o ritmo da experiência.
O que você pensa sobre esses compromissos com as tendências da disciplina hoje? Às vezes, eu me preocupo que estamos muito focados em ideias e preocupações que, embora importantes, nos desconectam artificialmente da vida da Igreja e nos empurram para uma direção dos estudos religiosos.
Um dos desdobramentos incríveis do nosso tempo é o surgimento do pluralismo na teologia. Basta pensar no crescimento global da teologia em vários continentes, em contextos culturais nitidamente diferentes. Pense nas novas vozes que contribuem para a disciplina, como as das mulheres e das minorias étnicas, vozes que não eram ouvidas antes.
Considere as questões profundamente preocupantes que estão sendo levantadas, como o racismo arraigado. Pense nos novos parceiros, acadêmicos e inter-religiosos, no debate teológico. Coloque tudo isso em movimento diante dos três públicos da academia, da Igreja e da sociedade aos quais a teologia deve se dirigir.
Não é de se admirar que muitas variedades de construtos transcendentais, processuais, místico-políticos, radicalmente ortodoxos, tomistas, estéticos, contextuais, da libertação, negros, feministas/womanistas/mujeristas, latinxs, queer, ecológicos, literários, pós-liberais e pós-modernos, junto com o diálogo inter-religioso, fazem com que o pluralismo de métodos e de pontos de vista pareça inteiramente normal agora.
Embora os estudos religiosos se definam de forma diferente em relação à teologia, eles são uma disciplina cognata com uma enorme riqueza para contribuir com a tarefa teológica.
É justo dizer que os últimos anos de sua carreira acadêmica formal deram uma guinada ecológica?
Provavelmente não. O primeiro livro que eu publiquei, Consider Jesus (1990), tem uma seção sobre a salvação que afeta todo o cosmos. She Who Is (1992) inclui consistentemente a Terra em frases sobre a vontade de Deus de que tudo floresça.
Depois, em 1993, eu publiquei a pequena monografia Women, Earth, and Creator Spirit [Mulheres, Terra e Espírito criador], explorando como esses três elementos inter-relacionados foram severamente negligenciados na teologia patriarcal. Então, o interesse sempre esteve aí. Nos últimos anos, à medida que a crise ecológica se agravou, essa preocupação ficou mais evidente, como você observou.
Que papel a Laudato si’ desempenhou para você nessa jornada?
Como a encíclica é de safra recente (2015), ela não poderia influenciar meu pensamento em grande medida. Mas é muito bem-vinda à mesa teológica, por trazer à tona o cuidado pela terra como uma questão de preocupação para aqueles que amam a Deus.
Na sua opinião, de que maneira as faculdades e universidades católicas – e talvez outras instituições também – podem implementar melhor a Laudato si' enquanto tentam viver sua missão?
Muitas pesquisas e projetos reais estão mostrando como isso pode ser feito. Isso inclui a criação de centros acadêmicos dedicados a esse assunto; realizar conferências; promover cursos ecológicos no currículo das disciplinas; estabelecer metas de sustentabilidade e produzir um relatório anual sobre o estado da universidade; banir a água engarrafada; suprir as refeições dos estudantes com produtos locais; reciclar; fazer compostagem; conectar o cuidado ecológico com a espiritualidade através da pastoral universitária; e muito mais.
Você e eu compartilhamos um profundo interesse teológico pelos animais não humanos, e o seu livro Ask the Beasts: Darwin and the God of Love [Pergunte às feras: Darwin e o Deus de amor] foi uma contribuição muito importante ao longo dessa crescente trajetória de preocupação teológica. Como esse livro foi recebido? Você está começando a ver uma mudança na forma como pensamos sobre os animais não humanos?
O livro recebeu críticas muito boas e vários prêmios. O que mais me agradou foram os cientistas que me escreveram com ideias e perguntas. Em vez de contestar ou rejeitar o trabalho deles, esse livro apreciou-o e usou-o para fomentar o pensamento religioso.
Avanços recentes no estudo científico dos animais, da sua inteligência, emoção, relações sociais e ação intencional estão levando a uma mudança radical na atitude da sociedade em relação aos animais que não são humanos. Começamos a perceber que somos todos ramos da árvore da vida, e que as capacidades humanas estão em um espectro com as dos animais, não são uma nova aparição sem nenhum precedente.
Isso já está afetando a antropologia teológica, e muitos trabalhos interessantes vêm pela frente. A Laudato si’' forja um caminho pela frente, ao ver que, no fim, nós, humanos, nos encontraremos face a face com a beleza infinita de Deus, e o universo, com cada uma de suas criaturas “transfiguradas resplandecentemente”, compartilhará dessa plenitude sem fim. Uma grande mudança.
Seu livro mais recente, recém-publicado, intitula-se Creation and the Cross: The Mercy of God for a Planet in Peril [A Criação e a cruz: a misericórdia de Deus por um planeta em perigo], que propõe a sua virada em relação à preocupação ecológica de forma significativa. Qual é a sua tese de base nesse livro e que direção ele aponta para as pessoas de fé que compartilham suas preocupações?
O livro explora a redenção cósmica, a visão encontrada nas Escrituras e em várias linhas da tradição de que todo o cosmos não será aniquilado, mas será redimido junto com os seres humanos. A fim de trazer isso à tona, eu acompanhei o ensinamento bíblico sobre a misericórdia divina que precede e envolve o evento histórico da crucificação de Jesus.
Esse ensinamento é muitas vezes ofuscado pela teoria da satisfação de Anselmo. Refletindo seu contexto feudal, ele argumentou que a morte de Jesus era necessária para pagar a desonra prestada a Deus pelo pecado humano. Nos séculos seguintes, essa ideia prevaleceu, levando à ideia de um Deus vingativo que requer sangue e justifica a violência.
Recuperando um ensinamento bíblico muito mais rico, esse livro argumenta que ninguém tinha que morrer para que Deus fosse misericordioso. Pelo contrário, a cruz mostra as profundezas do amor divino de uma forma diferente, na medida em que o Verbo se faz carne e desce à morte para acompanhar todas as criaturas em seu viver e morrer, com a promessa de um futuro de vida.
A cruz dá esperança a todos os que morrem, não apenas aos pecadores humanos.
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"É possível reinterpretar a narrativa cristã do Deus trinitário de uma maneira mais inclusiva." Entrevista com Elizabeth A. Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU