Em dezembro de 1932, um jovem Dietrich Bonhoeffer proferiu uma conferência sobre “Cristo e a paz”, no contexto do grupo de trabalho ecumênico da Deutsche Christliche Studentenvereinigung, a associação cristã alemã de estudantes.
Temos vestígios daquela conferência graças às anotações feitas naquela ocasião por Jürgen Winterhager, um dos estudantes de Bonhoeffer do grupo de Berlim, futuro teólogo evangélico e professor de ecumenismo. O material foi depois reproduzido dentro da coleção da opera omnia de Bonhoeffer, para a Itália em “Scritti scelti (1918-1933)”.
Publicamos abaixo essa preciosa reflexão sob a insígnia do Sermão da Montanha, entre a promessa das bem-aventuranças e o mandamento do amor: “Para quem o lê com alma simples, o Sermão no Monte diz coisas absolutamente inequívocas”.
As anotações foram publicadas em Teologi@Internet, 16-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua mente: este é o maior e o primeiro dos mandamentos. E o segundo é semelhante a este: Amarás teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39).
As autoridades humanas, que tentaram estabelecer a paz sobre uma base política, agora naufragaram novamente [1]. E seria bom refletir sobre isso e não achar esse fato extraordinário demais, pois as instâncias terrenas são sempre produzidas por seres humanos e, portanto, não têm uma autoridade absoluta.
Existe uma única autoridade que falou de modo vinculante sobre esses problemas, e se trata de Jesus Cristo.
Na realidade, Cristo não deu regras de conduta para todas as situações complicadas individuais que se apresentam na vida das pessoas, no nível político, econômico ou qualquer outro. Mas isso não significa que a mensagem de Jesus Cristo não diga nada de claro sobre os problemas que estão diante de nós. Para quem o lê com alma simples, o Sermão da Montanha diz coisas absolutamente inequívocas.
Dietrich Bonhoeffer, teólogo, pastor luterano, membro da resistência alemã anti-nazista e membro fundador da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica contrária à política nazista. (Fonte: Wikimedia Commons)
Aqui queremos partir do ponto central do Novo Testamento e, portanto, ler esses problemas à luz do mandamento mais nobre e mais alto, e daquilo que o Senhor anunciou a esse propósito. Não queremos arrancar uma única palavra sobre as autoridades terrenas de todo o contexto do Novo Testamento (cf. Rm 13,1), e assim esconder de nós mesmos que Cristo pregou o reino de Deus, contra o qual todo o mundo – e também a autoridade – vive em inimizade.
Permitam-me, acima de tudo, aprofundar alguns pontos que muitas vezes dão origem a mal-entendidos.
Para Cristo, o que importa não é mudar as condições deste mundo em nome da segurança e da tranquilidade. Menos ainda devemos acreditar que podemos eliminar com tratados políticos aquele pecado público que são os horrores da guerra. Enquanto o mundo abrir mão de Deus, as guerras existirão.
Para Cristo, é muito mais importante que nós amemos a Deus, que nos coloquemos naquele seguimento de Jesus ao qual somos chamados com a promessa das bem-aventuranças (Mt 5,3-12), e que, fazendo isso, sejamos testemunhas da paz.
Esse seguimento de Cristo provém e se baseia totalmente em uma fé simples, e, vice-versa, a fé também só é autêntica no seguimento. Assim, portanto, o testemunho de paz de Cristo se dirige a quem tem fé, enquanto o mundo é julgado por ele. Mas a fé deve ser uma fé simples, caso contrário se torna reflexão, não obediência; caso contrário, a esquerda também sabe o que faz a direita, e não há seguimento onde se conhece o bem e o mal. E é somente em um seguimento assim que nós também assumimos a posição justa em relação a quem sacrificou a vida na guerra.
Portanto, não há possibilidades humanas de estabelecer a paz, de organizá-la. Pelo contrário, tal tentativa humana por vias políticas pode representar justamente, mais uma vez, a dominação de um autocrata, pode ser pecado. Não existe uma paz assegurada. O cristão pode apenas ousar a paz a partir da fé. Não existe, portanto, nenhuma confraternização direta entre os seres humanos, há apenas o fato de ir ao encontro do inimigo mediante a oração dirigida ao Senhor por todos os povos.
Pelo contrário, a relação entre lei e evangelho muitas vezes é mal compreendida. O evangelho é entendido como uma mensagem de remissão dos pecados que não toca a existência civil, e mais geralmente toda a existência terrena, do ser humano. É verdade que ainda é comunicado ao ser humano que ele é um pecador, mas ele não é chamado a sair do pecado e dos laços com o pecado. Como podemos nós, que não trilhamos o caminho da obediência, quando pecamos esperando pela graça, como podemos ainda levar a sério a graça da remissão dos pecados e, em geral, a oração a Deus e crer nele com um coração puro?
Fazemos da graça um objeto barato [2], esquecemos com a justificação do pecador mediante a cruz de Cristo aquele grito do Senhor, que nunca justifica o pecado. O mandamento: “Não matarás” (Ex 20,13); a palavra: “Amai os vossos inimigos” (Mt 5,44), nos é dada para ser obedecida com simplicidade.
Ao cristão, é proibido qualquer serviço militar, mesmo que o serviço voluntário, e qualquer preparativo bélico. A fé que vê a liberdade da lei em dispor da lei à sua vontade é uma fé humana e um desafio a Deus. A obediência simples não conhece o bem e o mal: ela vive no seguimento de Cristo e faz as obras como algo que ocorre naturalmente.
A nós, cristãos, é dirigida a palavra segundo o mandamento do amor, acima de tudo para que estejamos pessoalmente em paz com qualquer pessoa, assim como Cristo quando pregava a paz à comunidade, exemplificando a paz com o irmão, com o próximo, com o samaritano. Sem estarmos nós mesmos nessa paz, não conseguimos pregar a paz aos povos. E a maioria das pessoas que se irritam quando ouvem falar de paz entre os povos já põem em discussão o amor aos inimigos em relação ao próprio inimigo pessoal.
Portanto, quando tivermos que falar sobre as coisas relativas à paz, sempre teremos em mente que as relações entre dois povos têm uma profunda analogia com as relações entre duas pessoas individuais. As coisas que se contrapõem à paz são, em ambos os níveis, a ânsia de poder, o orgulho, o desejo de glória e de honra, a presunção e o sentimento de inferioridade, o medo das pessoas e, depois, a luta pelo espaço vital [3] e pelo pão.
Pois bem, aquilo que é pecado nos indivíduos nunca é uma virtude para um povo. Aquilo que é anunciado como evangelho à Igreja, à comunidade e, portanto, aos cristãos individuais é dito ao mundo como juízo. Mas, quando um povo não quer escutar esse mandamento, então os cristãos são chamados para fora desse povo na qualidade de testemunhas. Prestemos atenção ao fato de que nós, míseros pecadores, anunciamos a paz a partir do amor, não para buscar a segurança ou um propósito político.
Paz com quem? A paz autêntica é só em Deus e vem de Deus. Essa paz nos é dada com Cristo, ou seja: a paz está indissoluvelmente ligada ao evangelho. A paz, portanto, nunca pode consistir na conciliação do evangelho com as concepções religiosas do mundo.
Assim diz Jesus: “Eu não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34). Para quem está arrependido, para o pecador que se desviou do caminho, vale a remissão do pecado: devemos amá-lo, não julgá-lo. Para o pecador persistente, o mandamento se torna juízo. Mas com o pecado, assim como com a falsa doutrina, não há reconciliação.
Na luta do evangelho com esses poderes terrenos, o cristão é separado do pai e da mãe. A luta do cristão, portanto, é uma luta pela causa. Mas, no conflito com o inimigo do evangelho, as armas são a fé e o amor que são purificados no sofrimento. Quanto mais na luta por bens puramente terrenos!
1. Se Bonhoeffer estava se referindo aqui ao fracasso da Conferência pelo Desarmamento realizada em Genebra no verão de 1932, a datação deste discurso deveria ser revisada. Recordamos que a conferência tentou evitar uma segunda guerra na Europa, negociando a redução dos armamentos entre os vários Estados. Em outubro de 1933, porém, Hitler rejeitou essa tentativa, retirando a delegação alemã da conferência (e, ao mesmo tempo, da Liga das Nações).
2. O tema da graça barata e da graça cara antecipa aqui uma das intuições que Bonhoeffer desenvolveria alguns anos depois, no seminário clandestino de Finkenwalde. Ver D. Bonhoeffer, Sequela, Querinana, Brescia 20012, 27-41.
3. A propaganda nazista fez uso extensivo do conceito de "espaço vital" (Lebensraum) para legitimar a expansão do Terceiro Reich a leste.