28 Mai 2022
"Ou acredita-se que tudo é força e o bem é engano e ilusão; ou acredita-se que, além da força, existe a dimensão do bem, da justiça, do amor, e que justamente esta é a dimensão mais verdadeira a que a vida deve aspirar e conformar-se...", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 20-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Da prisão nazista, um ano antes de ser enforcado por ordem de Hitler (que queria eliminar todos os prisioneiros políticos antes da chegada do Exército Vermelho em Berlim), Dietrich Bonhoeffer assim escrevia a seu amigo Eberhard Bethge em 30 de abril de 1944: "Você ficaria surpreso, ou talvez até preocupado com minhas ideias teológicas e suas consequências".
Também teólogo, Bethge conhecia bem as obras anteriores de Bonhoeffer repletas de radicalismo evangélico que não o haviam preocupado em nada porque se desenvolvidas sob a insígnia da mais consolidada tradição cristã: aquela que pensa a relação Deus-Homem como "revelação” unilateral de Deus e transmissão de uma mensagem inconcebível pela razão humana. É uma perspectiva segundo a qual não se trata de "encontrar Deus", mas sim de "ser encontrado" por ele: um caminho não natural, mas sobrenatural.
Nos últimos meses de sua breve existência, no entanto, Bonhoeffer realizou uma surpreendente revolução teológica. Ele estava ciente disso, pressentia a explosão que se acumulava em sua mente, e por isso escreveu ao amigo teólogo que nele estava se misturando algo perturbador que descrevia assim: "Encontrar Deus no que conhecemos".
Dietrich Bonhoeffer, teólogo, pastor luterano, membro da resistência alemã anti-nazista e membro fundador da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica contrária à política nazista. (Fonte: Wikimedia Commons/Arquivo Nacional Alemão)
O que nós conhecemos? A vida cotidiana. Torna-se, portanto, o lugar privilegiado do conhecimento de Deus, enquanto perdem importância a Bíblia e suas histórias, ao contrário do que ensinam as tradições judaica e cristã, e até muçulmana. O que constitui uma revolução inaudita para os monoteísmos, e era sobre isso que Bethge deveria ficar surpreso e preocupado.
Assim, seu amigo escreveu-lhe em 30 de maio de 1944: “Devemos encontrar Deus naquilo que conhecemos, não naquilo que não conhecemos. Deus quer ser apreendido por nós não nas questões não resolvidas, mas nas resolvidas.
Isso vale para a relação entre Deus e o conhecimento científico. Mas também vale para as questões humanas em geral, aquelas da morte, do sofrimento e da culpa”. Ele continuava: "Os homens de fato sempre resolvem esses questionamentos mesmo sem Deus, é simplesmente falso que só o cristianismo tenha uma solução". E concluía: "Deus não é um tapa-buracos".
Não sei se, ao usar a palavra "tapa-buracos", Bonhoeffer tinha diretamente em mente Nietzsche. Certamente esse termo se encontra exatamente desta forma nesta passagem do filósofo sobre o cristianismo: “O espírito desses redentores era feito de lacunas; mas em cada lacuna haviam posto sua ilusão, seu tapa-buracos, que chamavam de Deus” (Assim falou Zaratustra, II, Dos sacerdotes). Lückenbüsser, tapa-buracos.
Bonhoeffer em 1924 (Foto: Site Living Lutheran)
Bonhoeffer adota a crítica radical de Nietzsche ao observar que o papel de Deus, e ainda mais de Cristo, são funcionais para cobrir um enorme buraco introduzido pelo cristianismo na consciência humana cujo nome é "pecado original". Em sua cela, às voltas com carcereiros e prisioneiros, enquanto as sirenes de alarme soavam cada dia mais altas em Berlim, Bonhoeffer percebeu que a construção tradicional do cristianismo não estava mais funcionando.
Então o que fazer com Deus? Sua resposta é um hino à vida natural: "O divino não nas realidades absolutas, mas na forma humana natural"; e ainda: "O além não é o que está infinitamente distante, mas o que está mais próximo"; e finalmente: "O ser-para-os-outros de Jesus é a experiência da transcendência".
Trata-se de uma revolução: o encontro com Deus realiza-se naquilo que conhecemos e podemos fazer por nós mesmos: não na suspensão da liberdade, mas na sua exaltação através da dedicação ao bem e à justiça. O que pode ser feito por todo ser humano, totalmente independente da adesão ao cristianismo e à Igreja. Esta é a razão que levou Bonhoeffer a estudar os deuses gregos sobre os quais escreveu ao amigo: “Você entende que os deuses assim apresentados me escandalizam menos do que determinadas formas de cristianismo? Aliás, quase acredito que posso reivindicar esses deuses em favor de Cristo” (408).
É exatamente o oposto da visão tradicional do cristianismo, em particular do protestantismo, cujas pedras angulares são o apóstolo Paulo, Tertuliano, Agostinho, Lutero, Kierkegaard, Barth. E é, ao contrário, uma retomada da linha humanística que tem entre seus expoentes Justino, Orígenes, Cusano, Erasmo, Teilhard de Chardin. Esta teologia comporta a superação do conceito de "eleição" e "povo eleito", e o consequente desprezo pelos outros povos e suas religiões.
Bonhoeffer em Londres (Fonte: Portal Dietrich Bonhoeffer)
Reivindicar os deuses em favor de Cristo significa ver em Cristo não algo oposto, mas algo que olha na mesma direção da religião grega e das outras religiões naturais. O conceito decisivo é o de natureza, considerada não corrupta, mas boa, proveniente de Deus e, portanto, capaz de falar dele. Os Deuses são assim compreendidos pelo que realmente são: vozes do divino presente na natureza e na cultura. E daí surge um sentimento de comunhão com todos os seres humanos que buscaram honestamente o bem e a justiça, a dimensão divina por excelência.
Um ensaio dessa nova espiritualidade é a maneira como Bonhoeffer fala do sol em 30 de junho de 1944: “O sol... Eu gostaria de me cansar dele em vez dos livros e das ideias, gostaria que ele despertasse a minha existência animal, não aquela animalidade que diminui o ser humano, mas aquela que o libera dos bolores e da inautenticidade de uma existência apenas espiritual e torna o homem mais puro e mais feliz”. A inautenticidade de uma existência apenas espiritual! A verdadeira espiritualidade surge, portanto, do contato imediato com a matéria do mundo, um contato sem leis exteriores: é a superação completa da espiritualidade bíblica. Bethge realmente tinha com que se preocupar.
Nós, no entanto, muito menos do que ele. De fato, hoje não é mais possível pensar em Deus como um tapa-buracos, porque a fé não tapa os buracos da razão, não preenche nenhum vazio cognitivo.
Pelo contrário, é a energia que atua no plano prático, fazendo com que a consciência, diante da antinomia a que está pregada no plano teórico, escolha em favor do bem e da justiça. A fé é razão prática porque diz respeito à atitude geral diante da vida.
Escultura de Dietrich Bonhoeffer na igreja principal de Sankt Petri, em Hamburgo (Foto: Wikimedia Commons/David Meisel)
E diante da vida, em minha opinião, o jogo é jogado hoje ultimamente entre Nietzsche e Kant: entre aqueles que defendem o império da força e aqueles que defendem o primado da ética. O bem e a justiça existem? Nietzsche responde que não, argumentando que nada são além de invenções interessadas dos fracos. Kant responde que sim, argumentando que o valor de um ser humano é medido por sua capacidade de reproduzi-los.
Aqui o tudo está em jogo. Ou acredita-se que tudo é força e o bem é engano e ilusão; ou acredita-se que, além da força, existe a dimensão do bem, da justiça, do amor, e que justamente esta é a dimensão mais verdadeira a que a vida deve aspirar e conformar-se. Este é o estatuto da "nova verdade", sobre a qual Bonhoeffer escrevia assim: "Será uma nova linguagem, talvez completamente não religiosa, mas capaz de libertar e redimir, como a linguagem de Jesus, tanto que os homens se sentirão amedrontados por ela e, mesmo assim, conquistados por seu poder, a linguagem de uma nova justiça e uma nova verdade".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A lição de Bonhoeffer: encontrar Deus no que conhecemos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU