Jorge Bergoglio, a morte do pontífice reformista que mudou a Igreja. Artigo de Iacopo Scaramuzzi

Papa Francisco | Foto: Vatican Media

23 Abril 2025

"Jorge Mario Bergoglio não é um conservador, mas também não é um revolucionário". 

O artigo é de Iacopo Scaramuzzi, publicado por La Reppublica, 21-04-2025. 

Eis o artigo. 

O paradoxo de seu pontificado está inscrito desde a escolha do nome. Jorge Mario Bergoglio, que morreu hoje aos 88 anos de idade, escolheu ser chamado de Francisco, em homenagem ao santo que reformou a Igreja a partir de baixo, mas estando em seu topo. Como bispo de Roma, sacudiu a Cúria Romana, da mais alta cátedra quis despertar o “povo de Deus”, açoitou o clericalismo para abrir espaço para os leigos, para os pecadores, para os não crentes. Ao ser eleito, no Conclave de 2013, ele herdou uma Igreja profundamente em crise: o Vaticano abalado por escândalos, o Magistério percebido como distante das massas de fiéis. A tradição nos diz que Jesus disse a São Francisco de Assis: “Vá, conserte minha casa que, como você vê, está toda em ruínas”. O Papa Francisco começou a consertá-la com a força, e os limites, de sua função. Profeta visionário e político prudente, homem de oração e de manobras, ele deu início a uma profunda reforma da Igreja, ora acelerando e arrancando, ora desacelerando para não colocar em risco sua unidade: no final de seu pontificado, a fé continua em retrocesso diante do avanço da secularização, mas Francisco deixa para trás um Vaticano profundamente renovado em comparação com onze anos atrás.

Como qualquer reformador, ele foi alvo de críticas de ambos os lados, daqueles que temiam que ele desestabilizasse a instituição e daqueles que queriam medidas mais ousadas. Ele governou uma Igreja repleta de conflitos entre conservadores e progressistas, clérigos e leigos, países desenvolvidos e “sul global”. Sem escondê-los, deixando-os amadurecer: para evitar que explodissem e, em vez disso, extraindo deles a energia regeneradora. A “unidade na diversidade” não foi um slogan, mas um programa de governo.

Quando Bento XVI renuncia, isso perturba os planos daqueles que, por baixo dos panos, estavam preparando uma sucessão em continuidade, olhando, por exemplo, para o italiano Angelo Scola. Os cardeais que chegam a Roma vindos de todo o mundo no final de fevereiro de 2013 querem virar a página das lutas pelo poder, dos escândalos financeiros e sexuais e do pessimismo que marcaram os anos Ratzinger, mas que, na realidade, foram incubados no período de João Paulo II. Aumenta o sentimento anti-italiano. O que é necessário é um homem de autoridade, fora dos círculos romanos, capaz de limpar a casa, cortar algumas cabeças, se necessário, e relançar a fé católica. Jorge Mario Bergoglio desponta, sem chamar grande atenção, embora já tenha 78 anos e poucos, a princípio, o levem em consideração. Eleito 266º bispo de Roma, ele traz o “complexo antirromano” (copyright Hans Urs von Balthasar) para o coração de Roma. “Fazer reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egito com uma escova de dente”, ele diz, mas “uma Cúria fechada em si mesma estaria condenada à autodestruição”.

A eleição representa uma novidade histórica tripla. Ele é o primeiro papa latino-americano da história. É o primeiro Papa a adotar o nome de São Francisco. E é o primeiro jesuíta: os jesuítas, em princípio, não aceitam cargos governamentais. Mas, ao longo de sua história, a Igreja tem contado com eles em momentos de crise histórica: a ordem foi fundada por Santo Inácio de Loyola na época da Reforma Protestante. A extraordinária eleição de Bergoglio revela a natureza extraordinária da crise que o catolicismo atravessa.

Francisco governa habilmente a coabitação sem precedentes com seu antecessor. Bergoglio não poderia ser mais diferente de Ratzinger, mas não teria sido eleito se seu antecessor não tivesse renunciado (uma escolha que tanto ratzingerianos quanto wojtylianos não lhe perdoam), e ele realiza a reforma da Cúria que o alemão não conseguiu fazer. Inicialmente, ele o envolve também publicamente, mas as distâncias são demasiado grandes. E elas são alimentadas por Georg Gaenswein, o secretário particular de Bento XVI, que, assim que Ratzinger morre, passa a atacar Bergoglio. Um fato “triste”, como o definiu Francisco no livro-entrevista El Sucesor com Javier Martinez Brocal, “lamentei que Bento estivesse sendo usado”.

Seu pontificado é enérgico, ativo, cheio de novidades e conflitos. Escolhido “quase do fim do mundo”, como ele dirá ao saudar a multidão na noite de sua eleição, em 12 anos Bergoglio continua fundamentalmente alheio ao Vaticano. Eleito para reformar e limpar, ele vive uma solidão reivindicada e estabelece uma desconfiança mútua com a Cúria Romana, que imediatamente define como “a lepra do papado”, e critica, ora suas “doenças espirituais”, ora reduzindo seus escritórios, ora devolvendo funções, peso e, às vezes, até fundos para as Igrejas locais. Uma desconfiança tão estrutural que não diminui com o passar dos anos e com o progresso do sistema de despojos: Bergoglio coloca homens e mulheres de sua confiança nos gânglios decisórios do Estado Pontifício e depois os ignora, como se, uma vez nomeados, eles se tornassem parte daquele aparato do qual o pontífice marciano mantém distância. Ele administra zelosamente sua própria agenda, toma decisões que seus colaboradores não conhecem, segue um discernimento solitário, um pouco como profeta contracorrente, um pouco como monarca absoluto. Com a Igreja italiana, da qual ele é primaz, a tensão é contínua. Desde o início, quando, após a fumaça branca, a Conferência Episcopal Italiana publica acidentalmente um comunicado parabenizando a eleição do Papa... Angelo Scola. Francisco não esconde seu incômodo com um episcopado que, desde a época do cardeal Camillo Ruini, abraçou batalhas políticas centradas em “valores não negociáveis”.

A presidência do Cardeal Matteo Zuppi, um espírito digno de 1968 e habilidade democrata-cristã, está muito mais em sintonia com o novo rumo. Ele agita a Conferência Episcopal Italiana. “Que Deus proteja a Igreja italiana de todo substituto de poder, de imagem, de dinheiro”, diz ele em Florença em 2015: ”A pobreza evangélica é criativa, acolhedora, sustentadora e rica em esperança. Ele reabilita, com uma série de viagens ao longo da península, alguns padres mal vistos pela hierarquia da época: Don Lorenzo Milani, Don Primo Mazzolari, Don Tonino Bello. Ele telefona para o padre Roberto Sardelli, o sacerdote dos moradores das favelas nos subúrbios romanos; mas não telefona para o padre Giovanni Franzoni, o abade de San Paolo, bem como padre conciliar, que havia sido afastado do Vaticano quando se candidatou pelo PCI. Ele renova completamente o episcopado italiano, promovendo figuras como Roberto Repole (Turim), Mimmo Battaglia (Nápoles), Corrado Lorefice (Palermo), Erio Castellucci (Modena) e Baldo Reina (Roma). Em Roma, sua diocese, intervém pesadamente e, às vezes, de maneira desordenada: reestrutura o Vicariato, critica os sacerdotes, muda completamente a cúpula da administração, promove uma auditoria das finanças e assume a responsabilidade por muitas decisões. Ele é retribuído com descontentamento, perplexidade e maledicência. Ele resume seu programa de governo na exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013).

A Igreja “em saída”, “missionária”, “misericordiosa”, não fechada nas reclamações moralistas, nas disputas doutrinárias, nas fixações litúrgicas ou nos saudosismos do passado, mas aberta a crentes e não crentes, acolhedora para com os pecadores, atenta às exigências do homem contemporâneo. É a sistematização do discurso que havia proferido nas Congregações Gerais que precederam o Conclave, posteriormente publicado por seu amigo Jaime Ortega, cardeal arcebispo de Havana. Jorge Mario Bergoglio quer mudar. Ele muda o estilo: paga pelo quarto de hotel onde dormiu antes do Conclave, deseja “um bom almoço” no final do Angelus, decide morar na Casa Santa Marta, o residencial do Vaticano, em vez de se fechar no Palácio Apostólico, “um funil”. Ao longo dos anos, ele concede muitas entrevistas. Ele quebra tabus: conta que se apaixonou por uma garota, confessa que foi a uma psicóloga (judia), cita Rossellini e Mina, a Festa de Babette e a ópera, Borges e Holderlin. É acusado de dessacralizar a figura do papado, a Igreja, a própria fé cristã. Ele lembra de que o cristianismo é a religião da encarnação, a fé que se mistura às dinâmicas da humanidade. Convencido de que em uma sociedade secularizada, se não descristianizada, o magistério não pode fazer nada exceto entrar em diálogo com a sociedade contemporânea, deixando de lado a arrogância, o proselitismo, a pretensão de ditar leis aos Estados, a competição com outras as denominações cristãs ou as outras religiões. A Igreja, explica ele em sua autobiografia Spera (Mondadori), “não pode ser o clã dos bons velhos tempos, que certamente já se foram e não eram necessariamente tão bons em todos os aspectos”.

Diante da modernidade, com o homem descobrindo a autodeterminação, ele adota uma linha que constitui uma cesura em comparação com seus dois predecessores imediatos, João Paulo II e Bento XVI. Ele se reporta ao Concílio Vaticano II (1962-1965) e ao pontífice que o convocou, João XXIII, de quem compartilha a desconfiança em relação aos “profetas da desgraça”: ele tem “muito claro que o homem moderno, empenhado na construção autônoma de sua própria história, não aceita a imposição de normas elaboradas por uma autoridade que se proclama depositária de verdades universalmente válidas em todos os tempos e em todos os lugares”, escreveu o historiador Daniele Menozzi. Ele opta por uma atitude de não-beligerância em relação à modernidade: não por relativismo - ele não é, além disso, nem liberal nem progressista - mas porque é jesuiticamente otimista, convencido de que Deus está em todas as coisas, mesmo no presente: não se trata, explica Menozzi, “de diluir os valores evangélicos, mas de torná-los plenamente compreensíveis” para o homem contemporâneo. Conquistando, com a mensagem evangélica, aqueles que se afastaram da Igreja, reconquistando aqueles que se distanciaram dela, colaborando com os não crentes ou diversamente crentes. “Não estamos mais em um regime de cristandade, não mais!”, adverte: “Não estamos mais em um regime de cristandade porque a fé - especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente - não constitui mais um pressuposto óbvio da vida comum, na verdade, muitas vezes é até negada, zombada, marginalizada e ridicularizada”.

Francisco muda, novamente, a política externa da Santa Sé: a sensibilidade latino-americana, a sintonia com o “sul global” o ajudam a arquivar definitivamente a mentalidade da Guerra Fria. Ele relança a Ostpolitik, olha para o Oriente, para os países de maioria muçulmana, estende a mão à China e à Rússia. Obtém alguns grandes sucessos diplomáticos: contribuiu para a virada nas relações entre Cuba e os Estados Unidos de Barack Obama; é o primeiro papa da história a se encontrar com um patriarca russo, em Havana, em 2016; assina um acordo histórico com Pequim sobre nomeações episcopais, em 2018, longamente almejado por seus antecessores. Dificuldades não faltam: nos anos de seu pontificado, aumenta o vento populista e nacionalista, há Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil, o acordo com a China é contestado até mesmo dentro do catolicismo, em 2022 Vladimir Putin invade a Ucrânia e destrói os sonhos de um novo impulso ecumênico, após o massacre realizado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, os desentendimentos com Israel se multiplicam. Francisco muda a agenda e a linguagem do papado. Ele não modifica a doutrina, mas introduz novos temas. Ele escolhe o nome de São Francisco, explica, para enfatizar a importância de três questões cruciais, a pobreza (“Como anseio por uma Igreja que seja pobre e para os pobres!”), o “cuidado da casa comum”, a paz.

Escreve apenas quatro encíclicas: Lumen Fidei (2013), na verdade uma carta inacabada de Bento XVI que Francisco decide assumir, acrescentando alguns toques pessoais; e depois - textos bergoglianos cem por cento - Laudato si' (2015), a primeira vez que um Papa dedica uma carta a questões ecológicas; Fratelli tutti (2020), um compêndio de seu ensinamento social, equanimemente distante do “dogma neoliberal de fé” e do “populismo”; e Dilexit nos (2024), no final de seu pontificado, dedicado à devoção popular do Sagrado Coração de Jesus. No entanto, mais do que com escritos, é com discursos e gestos que Francisco muda a agenda da Igreja. Ele recebe em várias oportunidades os “movimentos populares” internacionais, cuja luta por “terra, teto e trabalho” compartilha. Ele defende ferozmente os imigrantes, desde sua primeira viagem fora de Roma, para Lampedusa.

Com frases que são amplamente repercutidas na opinião pública (“Quem sou eu para julgar?”), ele abre para as pessoas homossexuais, usa palavras de compreensão para as mulheres que abortam, admite divorciados recasados à comunhão. Ele não mudou de opinião, em comparação com seus antecessores, sobre o aborto (define os médicos que o praticam de “sicários”), a eutanásia, a bioética, mas não são questões centrais de sua pastoral. Ele evita que a Igreja acabe em um beco sem saída, arquiva as batalhas eclesiais sobre os “valores não negociáveis”, abre portas e janelas. Seu objetivo é fazer com que a sociedade redescubra a atualidade, às vezes subversiva, do Evangelho. Seus detratores o acusam de transformar a Igreja em uma ONG, de preferir o horizontal ao vertical.

Ele amplia o campo de ação da Igreja na sociedade contemporânea e consegue muitos inimigos, mesmo dentro do Vaticano. Os reacionários o atacam abertamente, os conservadores, mais numerosos, porém mais cautelosos, o boicotam passivamente. Muitos bispos dos EUA não o suportam, os poloneses o veem com desconfiança, mas também na Itália, na Espanha e na América Latina há bolsões de resistência às suas inovações. Os campos de batalha são a moral sexual, os ministérios e a liturgia. Sua decisão de anular a liberalização da “missa em latim”, que havia sido decidida por Bento XVI, atrai críticas ferozes; suas aberturas, na realidade muito graduais, sobre a moralidade sexual levam um punhado de cardeais ultraconservadores (Burke, Brandmueller, Caffarra e Meisner) a considerar incriminá-lo por heresia; anos mais tarde, Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, o acusaria de descarrilar a Igreja, cúmplice do Concílio Vaticano II, e seria excomungado por heresia; os tímidos movimentos para reconhecer as mulheres diáconas ou os “viri probati” (homens casados) provocam reações histéricas.

Na defesa do celibato obrigatório, até mesmo o Papa Emérito Bento XVI se manifesta, que, durante o sínodo sobre a Amazônia, participa de um livro do Cardeal Robert Sarah que fecha todas as brechas. Em 11 anos, o papa latino-americano muda a geografia do papado. Ele faz isso com viagens: esnoba Paris, Londres, Madri, Viena e Berlim e visita países periféricos, onde a Igreja é muitas vezes minoritária, lugares feridos pela história, da Amazônia a Sarajevo, do Iraque que sobreviveu à guerra dos EUA e às devastações do ISIS ao Canadá, onde viaja, já em cadeira de rodas, para pedir perdão aos povos nativos maltratados nas escolas residenciais católicas, da República Centro-Africana, onde inaugura o Jubileu da Misericórdia, a Abu Dhabi, onde assina uma declaração conjunta sobre a “fraternidade humana” com o grande imã de al-Azhar Ahmed al-Tayyeb, até - é a viagem mais longa do pontificado, 12 dias, e ele a faz aos 87 anos de idade - visitar a Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Cingapura: “Eu venho do fim do mundo, mas vocês mais ainda!". Francisco muda a geografia eclesial com as nomeações de cardeais: de consistório em consistório, ele redesenha as fronteiras do colégio que elegerá seu sucessor. Não apenas quebra costumes antigos, deixando sedes episcopais tradicionalmente cardinalícias sem púrpura (Milão, Veneza, Paris...), não apenas nomeia cardeais em países que nunca tiveram um (Ruanda, Haiti, Mianmar, Tonga, Luxemburgo, Mongólia...), mas, acima de tudo, “estica” as fronteiras do Colégio cardinalício, prendendo-o às diferenças culturais. No Conclave que elegeu Bergoglio em 2013, 48 países estavam representados, hoje os cardeais-eleitores vêm de 74 países diferentes. Francisco está ciente, como ele mesmo disse, de que “o que parece normal para um bispo de um continente pode ser estranho, quase como um escândalo - quase! - para o bispo de outro continente”. Mas está convencido de que “todo princípio geral precisa ser inculturado para ser observado e aplicado”.

Jorge Mario Bergoglio não é um conservador, mas também não é um revolucionário. Como escreveu a historiadora Cathleen Kaveny, “ele não está tentando expulsar os católicos conservadores da Igreja, mas interrompeu decisivamente seus esforços para expulsar todos os outros”. Francisco é um reformador, em palavras, abre muitos canteiros de obra, mas, a longo prazo, ele desacelera algumas reformas que havia acelerado no início de seu pontificado. Na Igreja Católica, não há mulheres diáconas, o celibato obrigatório dos padres não foi ajustado. Quando ele se atreve, o rebote é forte: em dezembro de 2023, ele consegue que seu cardeal de confiança, Victor Manuel Fernandez, o teólogo argentino que ele chamou para liderar o antigo Santo Ofício, aprove a bênção de casais homossexuais, o episcopado africano rejeita a medida quase em bloco. Ele consegue nomear - mas levantando um vespeiro nos Estados Pontifícios - duas mulheres para posições de destaque no Vaticano, a irmã Simona Brambilla à frente do dicastério para os religiosos e a irmã Raffaella Petrini à frente da governadoria do Vaticano. Uma nomeação, esta última, que ele assina de seu quarto na policlínica Gemelli, onde estava internado por causa de uma infecção do trato respiratório.

O papa argentino manteve a Igreja unida, correndo o risco de decepcionar os progressistas que gostariam de avançar os ponteiros da história, enfurecer os conservadores que gostariam de pará-los, enfurecer os tradicionalistas que gostariam de levá-los para trás. Paradoxalmente, descentralizou o poder do Vaticano com decisões imperiosas, inovou para conservar, revolucionou a linguagem para deixar a diversidade respirar, mas depois colocou os freios para não prejudicar a unidade.

Francisco não reverteu o declínio de um cristianismo que, no Ocidente, mas não apenas nele, registra uma queda constante nas vocações, na frequência às missas, na adesão aos ditames da Igreja. Ele escolheu uma estratégia diferente daquela de João Paulo II e Bento XVI, mas o resultado não é diferente. Em onze anos de pontificado, no entanto, mudou completamente o clima no Vaticano. Hoje, há mulheres à frente de dicastérios, o IOR [Banco Vaticano] e as finanças estão substancialmente limpos, até mesmo cardeais podem acabar sendo processados (isso aconteceu com Angelo Becciu, que protesta sua inocência), os bispos que vêm a Roma de todo o mundo encontram uma Cúria Romana que escuta, enquanto no passado dava ordens e repreendia.

O pontificado de Francisco tem se movido, às vezes na corda bamba, entre duas instâncias: reformas e unidade. Ele apostou no sínodo: um órgão que retornou à Igreja Católica após o Concílio Vaticano II, mas que por muito tempo permaneceu sem poder, reduzido a uma espécie de convenção eclesial sem consequências. O papa argentino o revitalizou, transformando-o em um local de discussões animadas sobre temas polêmicos, com debates públicos, emendas e votações. A dupla assembleia sobre a família (2014-2015) viu os padres sinodais se dividirem sobre casais de fato, homossexualidade, divorciados recasados. O Papa acabou abrindo a comunhão para os casais casados após um divórcio anterior, com a exortação apostólica Amoris laetitia (2016), e desperta a ira dos conservadores. A isso se seguirá o sínodo sobre a juventude, com a exortação Christus vivit (2019) e o combatido sínodo sobre a Amazônia, com a exortação Querida Amazônia (2020). Aqui o papa, pressionado pelos conservadores, freia. Ele decide não decidir sobre os “viri probati”, sobre as mulheres diáconas, sobre um rito amazônico especial.

Se ele acelerasse as reformas, pensou, dividiria a Igreja. Decide ir mais devagar, convoca um grande sínodo global (2021-2024) dedicado ao próprio método sinodal. A dinâmica é a do Concílio Vaticano II, mas espalhada pelos continentes. No final, a assembleia abre um pouco algumas portas, em particular sobre o papel das mulheres no futuro da Igreja, sobre a necessidade de combater os abusos sexuais e de poder, sobre a importância de os bispos serem responsáveis por suas ações (e delitos) perante o povo de Deus, mas não ousa. Surgem diferenças profundas e aparentemente irreconciliáveis entre os episcopados alemão e polonês, entre estadunidenses e franceses, asiáticos e latino-americanos, escandinavos e africanos. Francisco acredita que dissimular as diferenças faz com que elas explodam; trazê-las à tona permite que uma nova síntese seja encontrada e um novo ímpeto seja dado à fé. Ele quer levar a Igreja adiante, mas mantê-la unida. “Passos compartilhados”, explicou ele, ”são passos seguros, progressivos e irreversíveis. É melhor um pequeno passo compartilhado do que dois passos que criam divisões e podem ser revertidos pelo sucessor. “Unidade na diversidade” era mais do que um slogan: é a reforma necessária para evitar que a Igreja se torne um museu do passado, para garantir seu futuro. Francisco não será enterrado no Vaticano, mas na basílica de Santa Maria Maggiore: “O Vaticano é a casa do meu último serviço”, disse ele, “não aquela da eternidade”. 

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