03 Setembro 2024
Uma análise da viagem papal e as chaves que orientam seu pontificado.
A opinião é de Victor Gaetan, correspondente do National Catholic Register, em artigo publicado por Religión Digital, 02-09-2024.
A ousada peregrinação do Papa Francisco por quatro países, de 2 a 13 de setembro, será marcada por uma série de encontros diversos e significativos. As nações anfitriãs — Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor-Leste e Cingapura — receberão o Pontífice com entusiasmo, enquanto ele, por sua vez, buscará inspirar as pessoas e líderes de cada região. As prioridades diplomáticas do Papa, assim como os efeitos alcançados, se manifestarão ao longo da viagem, começando por seu compromisso com o diálogo inter-religioso, um dos temas centrais de seu pontificado.
Primeira etapa da viagem papal: Indonésia
Uma forma de entender essa missão em sua totalidade é contemplá-la e considerá-la através dos quatro princípios para a convivência social que o Papa Francisco delineou na Evangelii Gaudium (parágrafos 217-237): a unidade prevalece sobre o conflito, o todo é superior à parte, o tempo é superior ao espaço e a realidade é superior às ideias.
Na mesma exortação apostólica (Evangelii Gaudium, 238-258), Francisco identifica três áreas de diálogo cruciais para a busca do bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade e com aqueles que não compartilham a fé católica. Seu itinerário é um claro reflexo dessas prioridades.
Em uma entrevista concedida à Agência Fides (veja Fides 23/8/2024), o cardeal indonésio Ignatius Suharyo Hardjoatmodjo explicou que a harmonia religiosa é um objetivo associado à própria independência do país dos Países Baixos, alcançada em 1945. “Nossas relações com a comunidade islâmica são realmente boas. E essa relação harmoniosa se mantém desde o início da nação”, afirmou Ignatius Suharyo. Isso é uma forma de valorizar a unidade social acima da divisão. Por exemplo, o primeiro líder da Indonésia, o presidente Sukarno, incentivou a construção de uma mesquita em Jacarta no local de um castelo holandês, para simbolizar a superação do colonialismo, e em frente à catedral católica em 1900, para expressar a amizade entre as duas tradições religiosas. Recentemente, foi adicionado um túnel subterrâneo que conecta ambas as estruturas.
Francisco visitará tanto a catedral quanto a mesquita Istiqlal, a maior mesquita do sudeste asiático, para celebrar um encontro inter-religioso e expressar seu “apreço pelo povo indonésio, especialmente no que diz respeito à liberdade religiosa, à convivência inter-religiosa e à harmonia entre as comunidades de fé”, conforme explicou o cardeal Suharyo.
Segundo o Ministério dos Assuntos Religiosos indonésio, a população é composta por cerca de 242 milhões de muçulmanos e 29 milhões de cristãos, dos quais 8,5 milhões são católicos, um número que está aumentando. O Papa Francisco continua construindo relações cada vez melhores com o islamismo sunita, uma prioridade diplomática buscada desde 2013, quando herdou um panorama de relações fraturadas com grande parte do islamismo. Como escreveu o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, “a diversidade é bela quando aceita entrar constantemente em um processo de reconciliação” (§ 230).
Logotipo da viagem papal à Indonésia
Dos 10 milhões de habitantes de Papua-Nova Guiné, mais de 95% são cristãos. A maioria pertence a diversas denominações protestantes, enquanto a Igreja Católica é considerada a comunidade religiosa mais numerosa, com cerca de 30% dos fiéis do país. No entanto, o cristianismo se combinou com as práticas indígenas locais, resultando em uma Igreja culturalmente muito variada. Os Missionários do Sagrado Coração (MSC) são a Ordem religiosa que iniciou a presença da Igreja em 1881.
O cardeal John Ribat é um sacerdote MSC e o primeiro cardeal da nação, criado em 2016 pelo Papa Francisco. Os líderes da Igreja local estão muito atentos às questões ambientais e, desde a publicação da Laudato Si', têm dado prioridade especial à proteção do meio ambiente, opondo-se à exploração mineral e à desflorestação realizadas por empresas comerciais.
Essa atividade de proteção ambiental é um excelente exemplo de como reconhecer que o todo é maior que suas partes individuais. Na Evangelii Gaudium, o Papa utiliza uma analogia com a natureza para descrever esse princípio: “Sempre há que ampliar a visão para reconhecer um bem maior que beneficiará a todos. Mas isso deve ser feito sem evasão, sem desarraigo. É necessário aprofundar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus” (§ 235).
Logotipo da viagem a Papua-Nova Guiné
É bem sabido que Timor-Leste, após conquistar a independência em 2002, é atualmente a nação com maior percentual de católicos do mundo. Colônia portuguesa até 1975, esteve sob controle da Indonésia até 1999. Diversos estudos mostram que mais de 170.000 pessoas morreram durante a ocupação militar indonésia devido a execuções arbitrárias, desaparecimentos e fome. Quando o Papa João Paulo II visitou Timor-Leste em 1989, enquanto o país ainda estava sob ocupação indonésia, foram plantadas as sementes da identidade nacional.
Apesar das tensões, a Igreja se opôs firmemente à violência. Através da proteção dos cidadãos perseguidos e do cuidado da comunidade, a fé se fortaleceu gradualmente. Em 1975, cerca de 20% da população era católica, cifra que subiu para 95% em 1998. Isso também se deve ao fato de que a Igreja estava próxima das aspirações nacionais.
O processo pelo qual Timor-Leste alcançou a independência é uma excelente aplicação do princípio exposto pelo Papa Francisco de que o tempo é superior ao espaço. O Espírito Santo pode entrar no espaço criado no tempo; o tempo permite que a confiança cresça e que as soluções amadureçam no terreno. Como escreve Francisco na Evangelii Gaudium: “Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem se obsessar com resultados imediatos. Ajuda a suportar com paciência situações difíceis e adversas, ou as mudanças de planos impostas pelo dinamismo da realidade” (§ 223). A visita do Papa ao primeiro novo país do século XXI, onde o primeiro cardeal do país, Virgílio do Carmo da Silva, SDB, criado pelo Papa Francisco em 2022, é arcebispo de Dili, será sem dúvida uma visita repleta de alegria.
Logotipo da viagem a Timor-Leste
A prosperidade econômica e a integração global fazem de Cingapura a nação mais desenvolvida que o Papa visitará. Sua mensagem sobre o meio ambiente ganha nova relevância, assim como seu apelo à regulação da inteligência artificial. Francisco se encontrará com outro arcebispo que foi criado cardeal em 2022 (o primeiro na história de Cingapura), o cardeal William Goh Seng Chye, que faz parte do Conselho Presidencial para a Harmonia Religiosa de Cingapura e trabalha em estreita colaboração com a comunidade budista, a maior comunidade religiosa do país. O Papa Francisco admira o compromisso explícito das autoridades de Cingapura em garantir a liberdade religiosa e cooperar com todas as confissões. Como explicou o cardeal Goh à rede televisiva EWTN: “O Estado nos vê como parceiros. Somos colaboradores do governo porque é pelo bem comum do povo. Cuidamos das necessidades espirituais, ajudamos o Governo a governar com justiça, expressamos nossas opiniões e o governo nos é muito grato”. O Papa também admira a política externa de Cingapura, que evita depender de qualquer potência mundial, o que corresponde à sua visão de um mundo multipolar que respeita a autonomia das culturas. Muitas vezes descreve essa visão da globalização recorrendo metaforicamente à imagem do poliedro ou do futebol: todas as culturas, como as faces de um poliedro, devem coexistir e poder florescer, sem que prevaleça o domínio homogeneizador de nenhum Estado. O princípio é que a realidade é superior às ideias. Como explica a Evangelii Gaudium, “é perigoso viver no reino da sola palavra, da imagem, do sofisma” (§ 231).
O Papa se aprofundará na realidade com sua viagem apostólica à Ásia e Oceania nesta semana. Milhões de cristãos, muçulmanos, budistas e pessoas que não professam nenhuma fé serão testemunhas alegres e receberão as bênçãos do Sucessor de Pedro. Que Deus continue a abençoar seu ministério no mundo.
Logotipo da viagem a Cingapura
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A ousada peregrinação do Papa e os quatro princípios de 'Evangelii Gaudium'. Artigo de Victor Gaetan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU